UM TIPO DE JORNAL
O objetivo de um jornal como a Folha é, antes de mais nada, oferecer três coisas ao seu público leitor: informação correta, interpretação competente sobre essa informação e pluralidade de opiniões sobre os fatos.
Por informação correta entende-se a descrição de tudo aquilo capaz de afetar a vida e os interesses que se acredita serem os dos leitores.
Essa descrição é realizada na forma mais sintética, despojada e distanciada possível (embora seja quase sempre impossível atingir a neutralidade absoluta. Ao contrário, isso é raramente factível. Existem, na realidade, descrições mais neutras, ou seja, mais objetivas que outras; de onde se deduz que a neutralidade é uma quimera, mas aproximar-se de neutralidade não é).
Por interpretações competentes a respeito dos fatos entendem-se os comentários e análises redigidos por profissionais que, conforme os critérios adotados pelo jornal, aliam o domínio sobre uma determinada área do conhecimento ou da atividade humana ao domínio sobre a técnica de escrever, combinando em seus textos ambas as habilidades.
Por pluralidade de opiniões sobre os fatos entende-se a publicação de textos, artigos, depoimentos, entrevistas etc. que, tomadas em seu conjunto, funcionem como uma reprodução mais ou menos fiel da forma pela qual as opiniões existem e se distribuem no interior da sociedade.
É evidente que, uma vez fixado o objetivo assim definido, não há um meio automático que permita saber se os critérios utilizados em cada caso estão atendendo às finalidades propostas ou não; só parece possível ter alguma certeza sobre essa questão por meio de processos demorados de discussão interna, combinados à observação atenta das reações dos leitores, que podem punir ou premiar o jornal.
Mas para o tipo de jornal que a Folha parece decidida a ser não basta o atendimento daquelas três finalidades mencionadas no primeiro parágrafo.
Em outras palavras: não é suficiente oferecer ao leitor uma amostra representativa da pluralidade real das opiniões que existem.
Se o jornal se satisfizer com isso, nunca passará de um mero repositório, sem forma nem vontade, das opiniões que a sociedade vai produzindo (o que, no caso do Brasil, já significaria a prestação de um grande serviço).
É necessário que o jornal, sem discriminar opiniões diversas das que adota (e, ao contrário, estimulando polêmicas com elas), tenha as suas próprias convicções sobre os fatos e os problemas. Elas é que transformam o jornal em um ser ativo, com uma identidade visível e um certo papel a desempenhar.
São, também, as opiniões oficialmente expostas pelo jornal que possibilitam o desenrolar de um importante diálogo silencioso entre o leitor e o seu jornal, diálogo que, com o passar do tempo, cimenta os laços de respeito e de estima entre o jornal e seu leitorado.
UM PONTO DE PASSADO E DE FUTURO
No início da década passada, a Folha começou a aproximar-se mais rapidamente do modelo de jornal esboçado no item anterior deste documento interno. Não cabe aqui inventariar as condições que permitiram ao jornal fazê-lo, nem cabe tampouco sumariar os passos que vem dando e a estratégia geral que vem seguindo desde então.
Ressalta-se, apenas, a existência de alguns ingredientes que parecem muito importantes e mesmo imprescindíveis nesse processo: saúde economia e financeira da empresa, firme disposição para a independência jornalística e para a superação das tradições paroquiais da imprensa tradicional, senso de oportunidade para saber avançar somente quando as circunstâncias ao mesmo tempo permitem e reclamam, e –por fim, mas não menos importante– a existência de uma idéia que mereça ser posta em prática: no caso, o projeto de um jornal estabelecido em linhas muito gerais no item anterior.
Para a discussão que se propõe no momento, interessa que nos detenhamos um pouco sobre esse projeto, essa "idéia de jornal". Pode haver inúmeras coisas por trás de uma idéia; normalmente, porém, elas são ou coisas que se prometem ou coisas que se oferecem.
Quando, na década passada, deu começo à sua "revolução política", "abertura" ou que outro nome se queira dar a esse processo que nos é conhecido, a Folha nada tinha a oferecer à opinião pública, aos leitores, anunciantes e mesmo aos profissionais e colaboradores que nela trabalhavam e atuavam, a não ser intenções.
É claro que já havia a solidez empresarial, fruto de uma concepção administrativa e comercial ao mesmo tempo austera, diligente e por vezes agressiva; já havia uma infra-estrutura industrial moderna e um sistema de distribuição de exemplares reconhecidamente bem-sucedido em São Paulo e Estados adjacentes. Havia, ainda, um número de leitores bastante elevado (para os padrões brasileiros), fiéis ao jornal.
No entanto, com relação ao projeto, à "idéia de jornal" propriamente dita, nada havia além de intenções e, portanto promessas a oferecer. Era natural, dessa maneira, que a Folha lançasse mão de todo e qualquer recurso que pudesse auxiliar na sua caminhada, ainda que precária e provisoriamente; era natural, por exemplo, que aproveitasse os ventos da abertura que sopravam já no período 1974-1978 para concentrar a maior parte de seus esforços na criação de impacto opinativo ("agora sim a Folha tem opinião", dizia-se com alguma frequência, pouco importa neste momento se acertada ou equivocadamente) que permitisse ao jornal alçar-se no conceito público.
Houve, ao longo dos anos, muito trabalho, algumas crises (o chamado "caso Diaféria", a greve praticamente integral da categoria dos jornalistas em 1979, entre outras), sucessos, decepções etc. Hoje a situação não é mais a mesma.
A Folha já tem, afora as intenções ainda por realizar, intenções já realizadas. Embora haja um sem-número de críticas que merecemos e que com frequência nos fazemos, o jornal representa atualmente muito mais do que já representou através de sua atuação e imagem públicas no passado.
Ao seu redor, surge um crescente consenso de que este é, de fato, um jornal independente, confiável naquilo que publica e cujas atitudes devem ser permanentemente levadas em consideração. Vem escrevendo de modo cada vez mais nítido o seu papel real na cena política, preenchendo a função de um órgão liberal-progressista, ou seja, numa só frase: partidário dos princípios e métodos legados pelo liberalismo político e preocupado com a necessidade de introduzirmos reformas pacíficas mas profundas no capitalismo brasileiro, destinados a solucionar os problemas sociais mais graves e criar convivência social estimável para a maioria e aceitável para as minorias.
OS PASSOS NECESSÁRIOS
Para prosseguir em seu projeto, para manter e ampliar as suas posições no mundo jornalístico, para defender as estacas que já demarcou na cena pública e, especialmente, para ser cada vez mais um jornal que contas com a confiança do público leitor de jornais (porque não deturpa, ao menos deliberadamente, fatos, porque não tem preconceitos, porque não faz campanhas de linchamento moral, porque procura não ser nem elitista nem sensacionalista) –para realizar essas tarefas, este jornal precisa tornar as coisas mais claras ainda.
Precisa, sobretudo, que todas as pessoas que ocupam posições de chefia ou de grande responsabilidade individual na sua estrutura interna conheçam qual é o projeto; o que conseguimos, coletivamente, fazer até hoje e o que pretendemos para o futuro. Podemos dizer que o projeto vem dando certo: é indubitável que a Folha é hoje um jornal mais influente, mais forte e mais conhecido do que era na década passada e mesmo nas décadas anteriores. Parece especialmente fora de dúvidas que a Folha vem prestando, de forma concreta, um serviço útil à democracia pela publicação honesta dos fatos e pela divulgação de um amplo painel de idéias, em artigos ou em debates realizados no jornal.
O Brasil atravessa um período de graves dificuldades econômicas e sociais, que se justapõem a um momento de transição política. Estas circunstâncias naturalmente submeterão o jornal a duras provas, para o enfrentamento das quais ele deve estar preparado.
Nesse passo, o núcleo dirigente do jornal (editores, subeditores, diretores de Sucursal e correspondentes no exterior) precisa estar consciente e capacitado para impedir qualquer arranhão na linha de independência que vimos trilhando.
Trata-se de aprofundar essa característica numa conjuntura em que ela será atacada, em que interesses de variada natureza (legítimos, de resto, se postos em seu leito adequado) tentarão introduzir-se em nossas páginas com intenções hegemônicas ou excludentes do livre curso de opiniões e em prejuízo do registro isento dos fatos.
A manutenção do princípio da independência, portanto, exige uma atitude firme e justa, sem hesitações quanto à sua aplicação. Não se trata, frisamos, de estabelecer no jornal qualquer discriminação ideológica ou política na seleção de temas a serem abordados ou de pessoas que conosco trabalhem, mas de manter a linha independente do jornal, sem concessões de quaisquer espécies.
O que propomos, então, para esta nova fase que vivemos?
É nossa convicção de que existe, já consolidado, um projeto do jornal, apenas esboçado neste documento mas claramente desenhado nos últimos anos
Por motivos que vão vem ao caso desenvolver aqui, esse projeto nem sempre é compreendido em toda sua dimensão por todos quantos fazem o jornal. E, às vezes, é agredido ou negado, quando ocorrem falhas no plano profissional, por ação ou por omissão.
Sugerimos que todos os que exercem cargos de chefia ou funções de confiança façam uma opção permanente –disponham-se a abraçar em definitivo o projeto do jornal como uma missão a ser cumprida a cada dia, com afinco, aplicação e responsabilidade, ou que desistam do cargo, por discordância ou por inapetência.
Deve ficar claro que, no pressuposto da própria linha do jornal, os que decidirem abandonar o projeto não estarão, nem de longe, convidados a romper com ele. Devem apenas ceder o lugar, exercendo outras funções, isto é, aquelas onde não haja decisões de natureza editorial ou administrativa diretamente envolvidas.
Continuaremos o relacionamento profissional sem discriminação de qualquer espécie. Manteremos, como uma qualidade inalienável do jornal, a tolerância e o estímulo à pluralidade de opiniões.
Para os que optarem por permanecer no núcleo dirigente deve ficar claro que se elevará o nível das exigências e das solicitações.
Elevar a qualidade técnica, informativa, do jornal –essa é a meta. E os que chefiam devem tomar parte ativa na sua consecução, assumindo todas as responsabilidade ligadas a esse esforço.
Nunca será demais afirmar que a ossatura de um jornal, o que lhe sustenta o corpo dando-lhe consistência e forma, são as reportagens, os textos noticiosos e as fotos de boa qualidade. Editoriais e artigos apenas complementam essa ossatura, que segue sendo a essência do jornal. Daqueles que não exercem funções de chefia, portanto, devemos exigir isenção e correção no trabalho individual, compreendendo-se estes dois conceitos como fundamentais à constante elevação do padrão técnico do jornal.
A experiência nos demonstra à sociedade que não existe outra maneira de levarmos adiante o projeto que a Folha é obrigada a encarar como missão.
São providências, estas que apresentamos acima, imperativas na defesa do futuro do jornal, dos empregos que garante, dos melhores salários que poderá oferecer e da dignidade profissional cuja proteção não constitui monopólio de ninguém.
Se estivermos corretos, como julgamos estar, quando sustentamos tais convicções, as gerações do futuro poderão olhar para a Folha e dizer: "Eis aí algo de útil e bom, algo que deve ser preservado".