A cozinha caipira nasceu a meio caminho das minas de ouro, entre o Vale do Paraíba, o Vale do Rio Doce e o que hoje é o sul de Minas. Ergueu-se sobre os escombros dos indígenas, escravizados ou massacrados.
Deles, foram incorporados pelos bandeirantes o milho, as abóboras, o feijão, as batatas-doces, o amendoim, os peixes de rio, aos quais os portugueses somaram o porco, a galinha, o sal, o açúcar e a salsinha. A cozinha caipira tem esses signos distintivos: não tem o coentro e nem a mandioca como importantes. É uma cozinha sobretudo de conservas cozidas: a farinha de milho, as carnes na banha, as compotas de frutas.
A função dessas conservas, ou a cozinha "seca", era permitir aos bandeirantes irem longe, sertão adentro, sem ter que recorrer a expedientes culinários mais trabalhosos. Foram primeiro pelos antigos caminhos dos índios (os peabirus), depois por rotas que hoje são as rodovias Anhanguera, Fernão Dias e Raposo Tavares, além do curso do rio Tietê.
Pelo caminho se fixaram moradores, abrindo sítios, e surgiram "pousos", que depois se transformaram em vilas e cidades. Aí se abasteciam os bandeirantes e viajantes, e se podia cozinhar e descansar.
Quando terminou a mineração, esses lugares no caminho das minas entraram em decadência. Viveu-se então só para a subsistência. E se fixou a dieta pobre baseada nos elementos antes citados. Assim se estabilizam os hábitos e o "gosto" do que chamamos "cozinha caipira". Centenas de receitas foram geradas sob esse enquadramento.
Não houve influência negra notável nessa cozinha. Nela, o milho é soberano como farinha beiju e fubá. O porco é essencial, a horta e o pomar completam a dieta. Há pouca carne de boi, rara a carne seca, trazida pelos tropeiros que vinham do Rio Grande do Sul para a feira de Sorocaba e, de lá, se espalhavam pela Paulistânia, que até o século 18 englobava São Paulo, Minas, Goiás, Mato Grosso e Paraná, indo até a região das missões guaranis no Rio Grande.
Com o ciclo do café, a vinda dos italianos e as estradas de ferro que uniam os antigos "sertões" ao porto de Santos, essa culinária desmoronou.
O decadente Vale do Paraíba recebeu, ainda, no século 20, a rodovia Dutra. O mundo caipira se dissolveu nas novas influências e o "caipira", como tipo humano, foi rechaçado, ridicularizado, desprezado. O Jeca Tatu de Monteiro Lobato expressa essa fase da história.
Foi só nos anos 1970 que o governo de Minas resolveu investir recursos públicos e se apropriar por inteiro da tradição caipira como "cozinha mineira". Começou, assim, a desaparecer a "cozinha paulista", que era a mesma coisa. Hoje, paulistas vão a Minas para comer sua própria comida!
A cozinha caipira opõe a Paulistânia à sertaneja do Nordeste, à negra do Recôncavo e à Amazônica. Embora a estima de que goza varie -paulistanos se veem herdeiros de italianos, espanhóis, árabes, mas não de "caipiras"- ela é peça central na construção do mosaico culinário do país.
Como a antiga cozinha ficou distante, é preciso reaprender a fruir seus sabores e processos. O cuscuz paulista ao vapor, por exemplo. Pouco contato mantém com o cuscuz comercial paulista de hoje. Outras coisas se perdem: a farinha de milho, tão importante no passado, tem as antigas fecularias desaparecendo. O mesmo com as frutas, como o cambuci, o cambucá e outras da mata atlântica.
Estamos em fase de reconstrução do que já foi. É preciso pesquisa, experimentação, reencontros com o público para que isso seja factível. É o papel de iniciativas como o Fartura.
Carlos Alberto Dória é doutor em sociologia e autor de "Formação da Culinária Brasileira" (2014)