No livro "História da Alimentação no Brasil", considerado a bíblia da cultura gastronômica nacional, o antropólogo Luís da Câmara Cascudo não foi lá muito simpático ao ingrediente.
"O arroz é popular, mas não indispensável no Brasil", vaticinou. Até podia ser verdade nos idos de 1967, quando saiu a primeira edição do livro. Mas quem se atreveria a repetir tal afirmação hoje em dia?
E não se fala apenas, que fique bem entendido, do arroz branco soltinho, fundamental à mesa brasileira na companhia do feijão.
Basta uma olhada no cardápio do Fartura São Paulo para entender que o país inteiro se farta de arroz. Nos dois dias do evento, o público vai conhecer oito receitas regionais que têm o ingrediente como base.
O arroz aparece com roupa de gala, nas mais diversas formas e preparos, carregado das tradições de cada lugar.
Norte
A cozinha amazônica será representada por dois arrozes de respeito. Diogo Sabião, do Pannino, em Porto Velho (RO), vai transformar a paella com os ingredientes de sua região para apresentá-la no espaço Cozinha ao Vivo.
Grãos de arroz do tipo bomba, usados na receita espanhola, serão cozidos em tucupi e caldo de verduras, para que adquiram sabor bem ácido. Sabião ainda vai acrescentar camarão de água-doce, pirarucu fresco e jambu, erva que adormece a língua.
"Escolhi levar um prato bem conhecido, como a paella, para que o público prove os ingredientes amazônicos sem medo", diz Sabião.
Os mesmos sabores aparecem no arroz tapajônico, prato que o paraense Saulo Jennings, da Casa do Saulo, em Alter do Chão (PA), vai levar ao espaço Chefs e Restaurantes.
A receita reúne os quatro ingredientes que, na opinião de Jennings, melhor traduzem a Amazônia: o microcamarão aviú, o camarão de água-doce, o pirarucu fresco e o feijão manteiguinha de Santarém.
Os grãos de arroz agulhinha serão cozidos em caldo de peixe e tucupi, junto com chicória-do-mato, pimenta cumari e jambu. "Esse prato é a mais pura expressão da região do Tapajós", diz Jennings.
Nordeste
No Piauí, onde vive a chef Maria de Jesus Carvalho, galinha d"angola se chama capote. A ave é a base do arroz que faz sucesso em seu restaurante, o Longá -os grãos são cozidos junto com os cortes e os miúdos, temperados com alho, cebola, pimenta, orégano, louro, tomate, semente de coentro e cominho. Só os pés do capote ficam de fora.
Em sua aula no Espaço Conhecimento, Maria de Jesus vai cozinhar e contar a história do prato. Ninguém melhor do que uma autêntica cozinheira da terra para explicar por que é preciso deixar o arroz grudar no fundo da panela.
"Se a gente serve o arroz de capote sem o "pegado", o cliente se recusa a pagar", brinca.
Sul
O chef catarinense Alysson Muller vai preparar arroz caldoso de polvo no Espaço Cozinha ao Vivo -o molusco é um dos ingredientes principais em seus três restaurantes (Artusi, Rosso e D.O. Pescador, todos em Florianópolis).
A receita, Muller conta, se inspira na história da ilha. "Fomos colonizados por açorianos e damos muita importância ao arroz. São versões ricas, geralmente servidas como prato principal. Eu até troco o chouriço português pela linguiça Blumenau, típica do estado, mas não deixo o coentro de fora."
Sudeste
Duas receitas vão disputar o apetite do público. No Espaço Cozinha ao Vivo, os chefs Bárbara Verzola e Pablo Pavón, do Soeta, em Vitória (ES), servirão o arroz meloso de siri.
Os grãos de arroz italiano Vialone Nano, que garantem a textura cremosa, vão receber os mesmos temperos da moqueca capixaba, mas com um toque contemporâneo: vinagrete de coentro e abacate.
"Vitória tem os maiores mangues urbanos do Brasil e um bairro inteiro, a Ilha das Caieiras, que vive da pesca do siri. Esse prato traduz a nossa identidade", diz Pavón, brasileiramente, apesar do forte sotaque equatoriano.
Pertinho dali, no Espaço Interativo, o professor do Senac São Paulo Tiago dos Reis Brugnerotto vai apresentar uma iguaria que está sendo salva da extinção. Seu risoto de carne-seca leva jaracatiá, fruta nativa da mata atlântica que, por pouco, não sumiu do mapa.
Centro-Oeste
A chef Ariani Malouf, do restaurante Mahalo, em Cuiabá, vai levar ao Espaço Conhecimento uma releitura de um dos pratos mais famosos de Mato Grosso: o arroz maria isabel.
O prato original, à base de carne-seca, é feito com arroz agulhinha e servido com farofa de banana e ovo frito.
Na versão de Ariani, rebatizada de maria isabel exibida, a banana foi parar dentro do arroz, com uma série de temperos, para acompanhar um bife de chorizo curado.
O prato ainda inclui farofa cítrica e revirado, espécie de pirão de carne bovina picada na ponta da faca.
Do estado vizinho, Goiás, o arroz de puta rica foi a escolha da chef Márcia Pinchemel para sua apresentação no Espaço Ao Vivo.
À receita tradicional, que leva frango, linguiça suína e legumes, ela adicionou cagaita, baru e cúrcuma, três itens que refletem a identidade do cerrado.
"Manda a tradição que o arroz seja temperado com cheiro verde, mas sou baiana e não resisto a colocar coentro", confessa a chef.