Cafira Foz não fez cursos ou faculdade de gastronomia, nunca estagiou em restaurante nem tem família abastada que a tenha ajudado a abrir um negócio.
Mas, valente que é, essa cearense de 34 anos já ganhou menção na quarta edição do Guia Michelin Rio de Janeiro & São Paulo com seu restaurante Fitó, em São Paulo, que tem só um ano de vida.
"Não sou chef, sou só cozinheira", costuma dizer. Cafira comanda 33 mulheres na cozinha. Sim, apenas mulheres. "É um posicionamento filosófico e político. Sempre vivi preconceito e discriminação por ser mulher e nordestina", diz.
Para ela, a igualdade de gênero, embora atravesse todos os níveis da vida, é especialmente importante na gastronomia. "Mesmo com a supervalorização desse universo, há poucas mulheres chefiando uma casa", avalia.
Segundo Cafira, sua cozinha 100% feminina é uma estratégia para jogar luz sobre um cenário em que a maioria das mulheres ocupa cargos inferiores e com salários mais baixos que os dos homens.
"Para mim, foi simples e fácil ter um negócio desenhado dessa maneira, já que mulheres cozinham para todos", diz. "Sempre tive algo de sagrado relacionado ao feminino."
Feminino e sagrado comparecem na maneira como a moça concebe sua comida: brasileira, sensorial e afetiva, mais de afetos do que de efeitos.
Quando criança, morava em Teresina, no Piauí, e partia nas folgas para a fazenda do avô, no Maranhão. Atravessava a ponte que divide os dois estados, e, 40 quilômetros depois, chegava a Brejinho. "Meu avô gostava de comer bem."
E o sentido de fartura era o do peixe fisgado na hora, das hortaliças cultivadas nas redondezas, da carne do tatupeba, do feijão-verde.
Mas a cozinha como ofício viria a partir de seu encontro com o antropólogo Tomás Foz, ex-marido e sócio do Fitó.
Cafira, que havia cogitado cursar moda, recorda o momento em que resolveu ser cozinheira. Foi durante uma viagem à França, quando comeu em um restaurante asiático.
"Fiquei emocionada com a comida e seus ingredientes, que pareciam com os que conhecia da minha terra."
De volta a São Paulo, comprou livros de cozinha e começou a estudar. Treinava as receitas com amigos e parentes.
Os jantares se multiplicaram, ficou difícil administrá-los. Quatro anos depois nascia o Fitó, um dos 33 estabelecimentos da categoria "bib gourmand" (de bom custo-benefício) no referido Michelin.
"É uma extensão da minha casa", define ela, que mantém no nome (Fitó é seu apelido de criança) e nos pratos as marcas das suas raízes. "Mas não é um restaurante piauiense num sentido folclórico", avisa.
É, portanto, uma releitura da carne da galinha-d"angola (chamada por lá de capote) cozida lentamente e misturada a arroz branco que a cozinheira apresenta no Fartura.
Na receita, ela combina influências da cozinha cajun e africana com técnicas francesas: faz uma marinada com especiarias, cozinha usando o método "sous vide" (sob vácuo, em plásticos selados em baixas temperaturas) e prepara um arroz vermelho com favas, farofa de miúdos, coco e banana-da-terra grelhada.
"Quisemos divulgar o capote, que é uma comida forte, uma comida de festa", diz. Um prato que conta uma história saborosa, afetiva e criativa.