Funcionários usam gruas para checar mercadorias no depósito da Receita Federal em São Paulo

Funcionários usam gruas para checar mercadorias no depósito da Receita Federal em São Paulo (Eduardo Knapp/Folhapress)

A escalada do contrabando

Comércio ilegal sofistica sua logística e se expande prejudicando a indústria, os cofres públicos, o bolso e até a saúde do consumidor

Capítulo 4
Onde tudo isso vai parar

Produtos confiscados em malas vão a leilão nos aeroportos do país

Kits de itens disponíveis para lances incluem de joias a brinquedos, mas o que mais tem é celular; pregões acontecem pela internet

Tigre de brilhantes e outras jóias apreendidas pela Receita, que foram a leilão no Galeão (Dirceu Neto/Folhapress)

Tigre de brilhantes e outras jóias apreendidas pela Receita, que foram a leilão no Galeão (Dirceu Neto/Folhapress)

Fernanda Reis
rio

Produtos confiscados nos aeroportos internacionais em malas de pessoas que tentam trazer compras sem pagar os devidos impostos têm quatro destinos possíveis.

Os proibidos e falsificados são destruídos. Os outros podem ser doados a organizações ou incorporados por órgãos públicos, mas seu destino prioritário é o leilão.

No ano passado, os leilões com produtos apreendidos pela Receita Federal arrecadaram cerca de R$ 351 milhões, distribuídos entre a Previdência Social e o Fundo de Desenvolvimento de Atividades Fiscais.

A seleção de produtos é eclética: num leilão realizado neste mês no Aeroporto do Galeão, no Rio, cosméticos, roupas, lentes de câmeras, carrinhos de bebê e aparelhos de ginástica ocupavam as prateleiras do depósito da Receita no terminal de cargas, à espera de um lance.

Dividem o espaço grandes lotes importados por empresas que não declaram o que trouxeram ou subfaturam o preço dos produtos, em grandes caixas, e malas de passageiros, ainda com as etiquetas das companhias aéreas.

De vez em quando, conta Roberto Martins de Almeida, presidente da comissão de leilão do Galeão, aparecem por ali objetos que serão oferecidos como doação a museus –como uma estátua que dividia prateleira com os lotes do leilão de março.

Mas o que mais tem são telefones. Segundo Sérgio Policastro, chefe do Serviço de Mercadorias Apreendidas da Superintendência da Receita em São Paulo, eletrônicos são o tipo de mercadoria mais comum em leilões.

Os interessados podem ir até o depósito manusear os produtos antes de fazer uma oferta. Mas a ação mesmo acontece longe dali.

Há cinco anos os leilões são feitos pela internet, com lotes menores, para que mais gente possa participar, diz Alexandre Magdalena, chefe da divisão de análise e gestão de riscos aduaneiros da Receita. Desde então, a arrecadação aumenta a cada ano –de 2016 para 2017 houve um crescimento de 60,3%.

O presidente da comissão de leilão da Receita Federal do Brasil abre lote de jóias apreendidas
O presidente da comissão de leilão da Receita Federal do Brasil abre lote de jóias apreendidas - Dirceu Neto/Folhapress

Tanto pessoas físicas quanto jurídicas podem arrematar os produtos confiscados, mas só as empresas podem revendê-los. Primeiro, há uma fase de propostas, em que é necessário fazer uma oferta acima do preço mínimo determinado pela comissão, até 50% abaixo do de mercado.

A maior proposta e aquelas com valor 10% abaixo dela vão para a fase de lances, que dura cerca de uma hora. É preciso levar um lote inteiro, montado pela comissão de leilão e muitas vezes desconexo: um lote no Rio, com iPhone 7, óculos escuros, kit de maquiagem, massageador, jacaré de pelúcia e blusa feminina saiu por R$ 2.650.

Explica-se: como a Receita tem custo para armazenar ou destruir objetos, se algo não é vendido num leilão é colocado num lote com produtos mais populares no seguinte, diz Martins de Almeida.

No leilão do Galeão, o lote mais caro era de joias, visitado por vários interessados e arrematado por R$ 836 mil por uma empresa. Dos 60 lotes disponíveis, foram vendidos 40, com arrecadação de cerca R$ 1,6 milhão.

APREENSÃO

Quem seguir a lei ao chegar ao aeroporto pode passar tranquilo pela Receita: os produtos que vão a leilão são todos descaminhados. Ou seja, entraram no país sem que seus donos tenham seguido os trâmites legais e pagado os impostos devidos.

Passageiros podem trazer na mala um valor de até US$ 500 em compras no exterior. Quem passa disso deve pagar 50% de imposto sobre a diferença. Se o valor não for declarado e a mala for pega pela Receita, deve-se pagar 50% de multa, além do tributo.

Quando o valor não é pago em até 90 dias, é aplicada a pena de perdimento e a mercadoria fica com a Receita.

Estátua apreendida pela Receita Federal e armazenada no terminal de cargas do Aeroporto do Galeão, oferecida a museus
Estátua apreendida pela Receita Federal e armazenada no terminal de cargas do Aeroporto do Galeão, oferecida a museus - Dirceu Neto/Folhapress

Não é só o valor que importa. Se a Receita constatar que o conteúdo da mala tem "clara e manifesta destinação comercial", pode tomar tudo, pois é proibido a pessoas físicas importar para revenda.

O caminho legal é abrir uma empresa, trazer os produtos ao país via terminal de cargas, declarar o conteúdo e pagar os tributos.

Há também um limite de quantidade: uma mala pode ter até 20 itens de valor acima de US$ 10 -até três idênticos- e até 20 itens abaixo de US$ 10 -até dez idênticos. Trazer dez bolsas, independentemente do valor, é um sinal de alerta para a Receita.

Essa norma tem o objetivo evitar sacoleiros vindos de outlets americanos, diz Roberto Meyer, advogado especialista em direito aduaneiro.

"Chegaram à conclusão de que o monitoramento apenas da cota de US$ 500 não era suficiente para proteger o mercado nacional do produto importado por passageiros de via aérea", diz.

A análise do que é intenção comercial, no entanto, é subjetiva. Se você convencer o fiscal de que as bolsas na mala são para você ou os sete iPhones são presentes para seus funcionários, poderá seguir adiante.

O último exemplo, dado por Magdalena, é real. "O passageiro morava numa casa de 1.200 m², tinha dez empregados e provou. Mas, como regra, quantidades desse tipo saltam aos olhos", diz.

Caso a mala seja apreendida, há possibilidade de recorrer, mas o julgamento acontece em instância única, pela própria Receita. Reverter a pena é difícil, diz Meyer.

Na opinião de Magdalena, tentar evitar os impostos devidos pelas compras no exterior é uma questão cultural: as pessoas preferem correr o risco de burlar o fisco a pagar os tributos que deveriam.

"Mesmo que você pague o imposto, um computador vai ser quase metade do valor que pagaria aqui. Infelizmente, a população não pensa desse jeito."