Silenciosamente, com remos, o barquinho cruza de uma margem à outra do rio. Outros fazem o mesmo trajeto nos dias seguintes, sempre ao amanhecer. A cena poderia até ser poética, não fosse composta por embarcações com contrabando que cruzam a fronteira entre o Paraguai e o Brasil todos os dias.
A pouco mais de 200 quilômetros dali, onde os países são separados apenas por marcos de concreto no solo, a travessia é ainda mais corriqueira. Basta cruzar de carro com as mercadorias, drogas, armas e outros produtos ilegais por estradas rurais, graças à escassa fiscalização.
Embora a região da Tríplice Fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina seja considerada a mais fiscalizada do país, o contrabando busca maneiras variadas de evitar ou driblar as barreiras criadas por órgãos de repressão.
Por três madrugadas seguidas, a Folha flagrou barcos atravessando o rio Paraná, em Foz do Iguaçu (PR), com contrabando, a cerca de dois quilômetros e meio de uma base da Polícia Federal, às margens do rio.
A travessia ilegal é feita entre as 5h30 e as 7h, sempre no mesmo ponto, com desembarque em portos ilegais abertos às margens do rio Paraná e, dali, partem em veículos normalmente por estradas vicinais para evitar a fiscalização na BR-277, principal via de acesso a Foz.
Algumas embarcações levavam grandes volumes em sacolas iguais às oferecidas em lojas de Ciudad del Este, cidade paraguaia fronteiriça.
Na Ponte da Amizade, que conta com fiscalização da PF, da PRF (Polícia Rodoviária Federal), da Receita Federal e da Força Nacional, há laranjas do contrabando que chegam a cruzar o espaço até 15 vezes por dia em troca de R$ 10 a R$ 20 por passagem.
"A fiscalização cresceu, mas tem de avançar muito mais. Falta o país entender que, sem infraestrutura, o crime toma conta. Aperta a fiscalização em Foz, o crime migra, é só ver os dados de Mato Grosso do Sul", diz Luciano Stremel Barros, presidente do Idesf (Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras).
Em 2016, foram apreendidos 702 carros no Paraná, ante 174 no estado vizinho. Já no ano passado, foram 530 e 246, respectivamente. No período, o total de caixas de cigarros apreendidas caiu de 117 mil para 101 mil no Paraná e cresceu de 105 mil para 117 mil em Mato Grosso do Sul.
Com menos veículos flagrados, mas volume total maior, a avaliação é de que os cigarros estão entrando no Brasil em caminhões, pela região de Mundo Novo (MS). Em Foz, só é possível entrar no Brasil pela ponte, onde a Receita tem um caminhão scanner para verificar as cargas provenientes do Paraguai.
Em Guaíra, cidade paranaense banhada pelo lago de Itaipu e que forma outra "tríplice fronteira" com a paraguaia Salto del Guairá e Mundo Novo, a PF faz operações diárias na água, mas a travessia terrestre é considerada fácil pelos próprios agentes.
Dos 1.400 km de fronteira com o Paraguai, 800 km são secos, via Mato Grosso do Sul. A partir de estradas rurais sul-matogrossenses, a Folha entrou no Paraguai sem dificuldade. No país vizinho, moradores inclusive indicaram o trajeto mais fácil para voltar ao Brasil sem passar pela aduana –a reportagem, porém, voltou pela via oficial.
A falta de efetivo para combater a entrada de produtos ilegais no país é evidente nas duas fronteiras em que a Folha esteve. Em Foz, a reportagem fez 16 passagens pela fronteira, sem ser parada uma vez sequer. Em Mundo Novo, foram outras duas passagens, sem abordagem.
FUGA FRUSTRADA
Apesar dos vários meios para tentar fugir das blitze, a principal rota de saída de Foz é a BR-277, por onde sacoleiros e laranjas usam ônibus e carros –velhos, para o prejuízo ser menor em caso de apreensões, já que há a chance de perder o veículo.
Quando são avisados da fiscalização por olheiros dos contrabandistas, sacoleiros tentam se desfazer das mercadorias ou descem do ônibus antes da blitz, o que ocorreu num dos dias em que a reportagem acompanhou operação da PRF e da Receita.
Auditores saíram em busca dos três viajantes que haviam fugido do ônibus. Foram pegos ainda na BR, e os produtos foram apreendidos.
Um estudante flagrado com eletrônicos perdeu as mercadorias e, após reclamar da carga tributária brasileira, voltou para Foz, em vez de seguir viagem. O caminho faz parte do cotidiano de quem só viajaria para levar encomendas até algum destino depois do posto fiscal.
As apreensões vão para a delegacia da Receita em Foz, que armazena R$ 210 milhões em produtos tirados de circulação, segundo Jorge Domingos Dalmagro, chefe do setor.
Os produtos ficam até 110 dias no local. Eles são destruídos (caso de cigarros e agrotóxicos), destinados a entidades, incorporados ao patrimônio público (notebooks, por exemplo) ou leiloados.
MAIS HOMENS
A PF tem intensificado operações e investigações em fronteiras, e a Força Nacional está reforçando o efetivo na Tríplice Fronteira e na região de Guaíra, com ações integradas com PRF e Receita, segundo o Ministério da Segurança Pública.
O ministério, porém, reconhece que o efetivo é insuficiente. O ministro Raul Jungmann anunciou a abertura de concursos para PF e PRF, com 500 vagas cada um. Devem ser abertos ainda neste ano.
Jungmann também disse que vai discutir a situação das fronteiras com os ministros dos países da América do Sul.
Na avaliação do ministério, as operações têm dado resultado, tanto que a PF bateu recorde de apreensões. Em 2017, foram 324 toneladas de maconha e 45 de cocaína, ante as 236 e 41 toneladas de 2016, maior volume da série histórica iniciada em 1995.
Além disso, ainda conforme o ministério, tem havido conversas com outros países e mais investigação.
Já a operação Égide, desencadeada desde julho pela PRF, resultou em 7.585 prisões, 177 toneladas de maconha e 408 armas de fogo apreendidas no Paraná, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Segundo a PRF, em 2016 foram apreendidos 3,3 milhões de pacotes de cigarros no Paraná e Mato Grosso do Sul, ante 5,3 milhões em 2017.
Também cresceram apreensões de maconha, cocaína, itens de informática, medicamentos, pneus, armas e munições. O total de veículos recuperados saltou de 915, nos dois estados, para 1.200.