Funcionários usam gruas para checar mercadorias no depósito da Receita Federal em São Paulo

Funcionários usam gruas para checar mercadorias no depósito da Receita Federal em São Paulo (Eduardo Knapp/Folhapress)

A escalada do contrabando

Comércio ilegal sofistica sua logística e se expande prejudicando a indústria, os cofres públicos, o bolso e até a saúde do consumidor

Capítulo 2
Fronteiras abertas

Desempregada ganha até R$ 20 para transportar produtos

Precariedade alimenta base da pirâmide de organização criminosa

Movimento na Ponte da Amizade, sobre o rio Paraná, que separa Ciudad del Est e Foz do Iguaçu (Bruno Santos/Folhapress)

Movimento na Ponte da Amizade, sobre o rio Paraná, que separa Ciudad del Est e Foz do Iguaçu (Bruno Santos/Folhapress)

Marcelo Toledo Bruno Santos
CIUDAD DEL ESTE

Ela se considera uma pequena parte da engrenagem que movimenta o contrabando na Tríplice Fronteira, mas avalia seu trabalho de formiguinha como essencial para o sustento de sua família.

Diariamente, Maria Marta de Oliveira, 45, deixa São Miguel do Iguaçu, percorre de ônibus os 41 quilômetros até Foz do Iguaçu, atravessa a Ponte da Amizade e se posta numa escadaria de Ciudad del Este à espera de clientes.

E eles surgem. Um quer que ela passe a fronteira com um iPhone, pendrives e perfumes. Ela cobra R$ 10.

Pega a mercadoria, guarda em bolsas ou no corpo, percorre os 552 metros da ponte, passa pela fiscalização do lado brasileiro e entrega os produtos no local combinado com o contratante.

Em seguida, volta ao Paraguai, fica postada novamente na escadaria ao lado de pelo menos outros dez brasileiros que atuam como laranjas e espera o próximo cliente.

Não importa se é videogame, boneca, eletrônico, bebida ou peças de vestuário. Ela topa passar tudo -menos drogas e armas, diz- e chega a fazer a travessia 15 vezes num só dia. O que muda é o preço. Quanto mais difícil, mais caro. O teto é R$ 20.

"Minha mãe fraturou o fêmur e preciso ajudá-la. Esse é o meu ganha-pão, não faço nada errado", afirmou.

Maria de Oliveira, desempregada que transporta produtos de Ciudad del Este para Foz do Iguaçu
Maria de Oliveira, desempregada que transporta produtos de Ciudad del Este para Foz do Iguaçu - Bruno Santos/Folhapress

A Folha a encontrou numa base policial na BR-277, após ser retirada do ônibus no fim do dia, quando retornava para São Miguel, por portar numa mala um lote de essências para narguilé que tinham objetivo comercial, de acordo com a Receita Federal.

Ela confirma: "Mas são só algumas essências, não dá R$ 1.000". Auditores afirmaram que foi a segunda apreensão com ela em 15 dias.

Figuras como Maria formam a base da pirâmide do contrabando, cuja base salarial em média é de R$ 1.000, segundo dados do Idesf (Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteira).

O contrabando é fortemente estruturado na região, e o crime organizado opera como uma empresa, atraindo pessoas que não conseguem empregos em outros setores.

"Há hierarquia, com uma larga base que se alimenta dessa falta de emprego, e a pirâmide vai se estreitando, até chegar aos cabeças, que lucram muito", afirma Luciano Stremel Barros, presidente do Idesf (Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras).

Caixas de cigarro ilegal apreendidas e guardadas no depósito da Receita Federal em São Paulo
Caixas de cigarro ilegal apreendidas e guardadas no depósito da Receita Federal em São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

CIGARRO

O crime organizado atrai principalmente devido à alta possibilidade de ganho.

O cigarro é o principal produto contrabandeado pelas quadrilhas, por render pelo menos 180% de lucro na ponta final para venda em São Paulo, o que atrai grupos criminosos como o PCC (Primeiro Comando da Capital).

Policiais federais afirmam que o grupo está infiltrado principalmente na região da Vila Portes, bairro de Foz próximo à Ponte da Amizade.

Mas, pelo fato de o cigarro ser volumoso, também é um dos itens identificados com maior facilidade. A estimativa do Idesf é que de 5% a 10% dos lotes sejam apreendidos. Há uma máquina na delegacia da Receita em Foz exclusiva para destruir cigarros.

Em outros itens contrabandeados, como agrotóxicos, eletrônicos de pequeno porte e medicamentos, o índice estimado de apreensões não chega a 2%.

Carro carregado de cigarro de origem paraguaia é achado pela PF em operação na fronteira com o Paraguai
Carro carregado de cigarro de origem paraguaia é achado pela PF em operação na fronteira com o Paraguai - Bruno Santos/Folhapress

Dados da Receita Federal mostram que o total de mercadorias apreendidas em Foz do Iguaçu em 2017 chegou a US$ 80,1 milhões, dos quais US$ 30,5 milhões foram em cigarros ilegais.

Em seguida, apareceram eletrônicos, que englobam os smartphones (US$ 18,2 milhões), veículos (US$ 7,9 milhões) e equipamentos de informática (US$ 6,3 milhões).

Foram presas 107 pessoas, das quais 84 com drogas. Outras 15 estavam com armas ou munições.

A Folha ouviu seis pessoas que atuam como laranjas no contrabando. Entre elas, havia um estudante universitário que diz pagar a mensalidade da faculdade com o transporte de produtos para contrabandistas.

Sob a condição de anonimato, eles disseram em geral que prefeririam ter um emprego fixo com carteira assinada e direitos trabalhistas como férias e 13º salário, mas afirmaram que o contrabando paga corretamente. Também afirmaram não ver a atividade que praticam como ilegal, mas sim como típica da região da fronteira.