Funcionários usam gruas para checar mercadorias no depósito da Receita Federal em São Paulo

Funcionários usam gruas para checar mercadorias no depósito da Receita Federal em São Paulo (Eduardo Knapp/Folhapress)

A escalada do contrabando

Comércio ilegal sofistica sua logística e se expande prejudicando a indústria, os cofres públicos, o bolso e até a saúde do consumidor

Capítulo 4
Onde tudo isso vai parar

Comércio online turbina o crime e dificulta repressão

Entidade contra pirataria aponta alta na oferta de itens falsificados em plataformas de ecommerce nos últimos anos

Júlia Zaremba
SÃO PAULO

Portais de ecommerce e redes sociais viraram vitrines de produtos contrabandeados e descaminhados. A fiscalização é falha, tanto por parte das autoridades quanto dos próprios sites.

A internet é mais explorada para a oferta de produtos descaminhados, segundo Alan Towersey, chefe da vigilância e repressão ao contrabando e descaminho da Receita Federal de São Paulo.

Nas redes, muambeiros ofertam importados por valores abaixo dos de mercado porque não pagam tributos.

Em um perfil no Instagram com mais de 58 mil seguidores, cujos donos dizem ser de Minas Gerais, há vários tipos de iPhone à venda.

O 8 plus com 256 GB de memória é anunciado por R$ 4.230. Na Apple, é vendido a R$ 5.399. O produto viria lacrado com garantia de um ano, segundo a "loja", que também vende perfumes, relógios e câmeras GoPro, com descontos de até 30% em relação aos preços de lojas.

No Facebook, um grupo com 32 mil membros vende perfumes até R$ 300 mais barato do que em lojas. A administradora da página diz só trabalhar com "produtos originais", comprados "na Argentina, em importadoras oficiais e lojas autorizadas".

Mas não existe mágica. "Fabricantes adotam preços padrão para produtos novos. Se os valores nas redes forem muito abaixo daqueles, os itens podem ter sido contrabandeados, descaminhados, até roubados", diz Towersey.

Nos últimos quatro anos, houve um boom na venda de produtos falsificados em plataformas de ecommerce, segundo Rodolpho Ramazzini, diretor de comunicação da ABCF (Associação Brasileira de Combate à Falsificação). Nos últimos dois anos, o crescimento foi de mais de 40%.

Segundo ele, a crise, a alta carga tributária do país e o próprio aumento das vendas online contribuem para a expansão do comércio ilícito.

As plataformas mais usadas no Brasil, segundo Ramazzini, são OLX, Mercado Livre, Facebook e Instagram. Produtos de luxo, como bolsas e óculos, lentes de contato, eletrônicos, cosméticos e autopeças são os mais frequentes nesses sites.

Em geral, custam em torno de 30% do valor de um original, de acordo com a ABCF.

Edson Vismona, presidente do FNCP (Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade), lembra que outro problema são os importados que não têm as certificações da Anatel, do Inmetro e da Anvisa. A maioria dos itens, segundo ele, vem da China.

Para Vismona, é preciso aperfeiçoar o controle nos Correios, que entregam mercadorias adquiridas online.

Em nota, os Correios afirmam que atuam em parceria com governo e órgãos de segurança na fiscalização dos produtos importados. Para saber se estão dentro das normas, contam com equipamentos como raio-X e espectrômetro de massa.

DEPÓSITO DIFÍCIL DE ACHAR

Os canais de ecommerce e as redes sociais dificultam o combate aos crimes de contrabando e descaminho, segundo Towersey. "Ficou mais difícil de localizar o depósito do vendedor", diz.

O auditor critica o Marco Civil da Internet. "Funcionou como uma proteção para o mercado ilícito. Quebrar o sigilo dos usuários é uma via crucis processual."

A lei determina que empresas de tecnologia devem disponibilizar dados de usuários mediante ordem judicial.

Leandro Bissoli, advogado especializado em direito digital, não acredita que a lei tenha prejudicado investigações. "Ajudou a evitar o abuso de autoridade".

Frederico Meinberg, coordenador da comissão de proteção dos dados pessoais do Ministério Público do Distrito Federal e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Digital, diz que um dos maiores desafios no combate aos crimes é conseguir dados de usuários do Facebook.

"A lei é clara: se a empresa presta serviços aos brasileiros, em língua portuguesa, tem que se submeter à legislação brasileira", diz.

O Facebook diz que baseia suas ações no MLAT ("Mutual Legal Assistance Treaty"), acordo de assistência judiciária entre o Brasil e EUA para processos criminais, não no Marco Civil. Logo, só compartilha mensagens e postagens em grupos mediante autorização da Justiça dos EUA.

Para especialistas, já há jurisprudência favorável à aplicação do Marco Civil nesses casos. "Se for para investigar estrangeiro, o MLAT pode ser usado, por questão de soberania nacional. Mas, se for brasileiro, deve-se cumprir o Marco Civil", diz Meinberg.

Em fevereiro, o Superior Tribunal de Justiça multou a rede social em R$ 4 milhões por não cumprir ordens da 5ª Vara Federal de Guarulhos para fornecer dados de suspeitos de envolvimento na venda de anabolizantes e remédios sem licença da Anvisa. O caso será julgado no Supremo Tribunal Federal.

NOVA CARA DE CRIMES ANTIGOS

A fiscalização dos crimes de contrabando e descaminho na internet desafia as autoridades. Towersey afirma que o trabalho da divisão que dirige na Receita é correr atrás das estruturas maiores por trás dos crimes. "Não dá para atacar todos os casos que chegam, os menores acabam passando", diz.

O procurador Paulo Marco Lima, que coordena o núcleo de combate a crimes cibernéticos do Ministério Público de São Paulo, diz que o monitoramento das redes é quase impossível. "Fazemos a investigação a partir de denúncias recebidas".

Para ele, faltam juízes, promotores e policiais preparados para lidar com a criminalidade por meio eletrônico.

"É importante porque, no dia a dia, são criadas novas formas de cometer crimes antigos, com o anonimato e a capacidade destrutiva potencializados", afirma.

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo disse que o Departamento Estadual de Investigações Criminais da Polícia Civil só atua em casos isolados.