Funcionários usam gruas para checar mercadorias no depósito da Receita Federal em São Paulo

Funcionários usam gruas para checar mercadorias no depósito da Receita Federal em São Paulo (Eduardo Knapp/Folhapress)

A escalada do contrabando

Comércio ilegal sofistica sua logística e se expande prejudicando a indústria, os cofres públicos, o bolso e até a saúde do consumidor

Capítulo 4
Onde tudo isso vai parar

Mercado clandestino vende carros importados por mais de R$ 1 milhão

Veículos de luxo vêm sobretudo dos EUA com pouca quilometragem e tem hodômetro zerado para entrar no país

Moto Honda apreendida pela Receita e guardada no depósito do fisco em São Paulo (Eduardo Knapp/Folhapress)

Moto Honda apreendida pela Receita e guardada no depósito do fisco em São Paulo (Eduardo Knapp/Folhapress)

Marco Antonio Rocha
RIO

Um pequeno mercado clandestino tem como alvo clientes dispostos a gastar mais de R$ 1 milhão em um automóvel comprado ilegalmente.

Os supercarros vêm principalmente dos Estados Unidos. Segundo a Receita Federal, 11 veículos foram apreendidos no ano passado, sete a mais que em 2016.

Esse número está longe da quantidade real de automóveis importados de forma irregular. O auditor fiscal Roberto Mascarenhas, responsável pela coordenação geral de combate ao contrabando da entidade, diz que de 10% a 15% dos bens irregulares que entram no país são retidos.

"Não podemos dizer quanto o Brasil perde com a chegada desses carros porque não sabemos o tamanho do universo. Só é possível ter conhecimento do que apreendemos, não do que passa", afirma Mascarenhas.

O objetivo do contrabando é deixar de pagar tributos que aumentam o preço do carro em cerca de 50% sobre o valor do bem nos EUA. No caso de uma Ferrari 488 Italia, por exemplo, significa deixar de pagar o equivalente a R$ 450 mil em taxas.

De acordo com o auditor, as quadrilhas agem de duas formas: declaram valores abaixo dos reais, para que a incidência de imposto seja menor, ou comercializam automóveis usados como se fossem novos.

A lei brasileira só permite a importação de carros zero-quilômetro. A única exceção são os automóveis antigos, para coleção, que devem ter, no mínimo, 30 anos desde a fabricação.

"Carros usados são muito baratos nos Estados Unidos. Os criminosos compram o automóvel com pouca quilometragem, sem indícios de uso, e zeram o hodômetro", diz Mascarenhas. O auditor afirma que a Receita Federal tem trocado informações com autoridades americanas para tentar rastrear os contrabandistas.

Lamborghinis apreendidos no Salão do Automóvel, em 2006, viram atração no pátio da Polícia Federal, em São Paulo
Lamborghinis apreendidos no Salão do Automóvel, em 2006, viram atração no pátio da Polícia Federal, em São Paulo - Jorge Araújo - 27.out.2006/Folhapress

Os veículos apreendidos vão a leilão e o dinheiro é destinado aos cofres públicos.

Em 2011, uma operação da Polícia Federal em 14 estados e no Distrito Federal lançou luz sobre esse comércio. Na época, descobriu-se que uma concessionária na Barra da Tijuca (zona oeste do Rio) tinha entre seus clientes jogadores de futebol e artistas da música.

Escutas feitas com autorização da Justiça revelaram negociações de até R$ 1,7 milhão por um modelo Lamborghini. Foram apreendidos um Chevrolet Camaro, um BMW X6, um GMC Hummer e um Cadillac Escalade. Todos já usados, mas com documentos falsos que atestavam ser novos.

As quadrilhas importam os automóveis já com a documentação adulterada ou contam com a conivência de funcionários de portos brasileiros, em especial os de Recife, Vitória e Rio de Janeiro.

Daniel Valério, diretor-executivo da loja Direct Imports, de São Paulo, diz que a importação de um carro precisa cumprir uma série de exigências. O trâmite, segundo ele, demora cerca de 90 dias desde a escolha do modelo até sua chegada à casa do cliente.

Ao desembarcar no porto, o automóvel é cadastrado na Receita Federal. Essas informações são enviadas para o Denatran (Departamento Nacional de Trânsito), que checa a motorização e a cor da carroceria. O passo seguinte é o emplacamento, feito pelo Detran da cidade em que o carro será registrado.

"Temos tido problemas com a burocracia, mas nada além disso. A Receita e a Polícia Federal têm trâmites bem estruturados, se há qualquer problema nos portos, é porque alguém errou na papelada", afirma Valério.

ADMISSÃO TEMPORÁRIA

Durante a edição de 2006 do Salão do Automóvel de São Paulo, a Polícia Federal apreendeu 17 carros das marcas Lamborghini e Mercedes.

Segundo a PF, os esportivos chegaram ao país por meio de uma empresa de fachada, como admissão temporária -nesse caso, os impostos não precisam ser pagos. O importador alegou que os automóveis retornariam ao exterior após testes de emissões de poluentes, explicação que não convenceu as autoridades.

Os investigadores dizem crer que a empresa contava com a anuência de funcionários da Receita Federal, da Secretaria da Fazenda do estado de São Paulo e do Detran para passar a frota para o regime de admissão definitiva, apesar de os tributos não serem quitados.

O advogado tributarista Gabriel Quintanilha explica que a importação temporária é adotada, por exemplo, por fabricantes em exposições.

Os carros são liberados para permanecer no Brasil por um prazo específico e obrigatoriamente devem deixar o país quando o período se esgota, a não ser que os responsáveis arquem com os impostos.

"Outra forma de importação, mais comum, é a independente. Qualquer um pode fazer, para uso próprio ou venda, desde que o bem não seja proibido pela Legislação e os trâmites sejam todos cumpridos", diz Quintanilha.

O advogado afirma que os casos citados nesta reportagem podem ser enquadrados como sonegação fiscal, crime tributário, evasão de divisas e formação de quadrilha. Ainda de acordo com ele, a Receita Federal tem até cinco anos para investigar o comprador do carro. Se for comprovada a má-fé, o proprietário terá o bem apreendido e responderá à Justiça.

O aumento no número de crimes relacionados com o contrabando acendeu o alerta de entidades que atuam no combate ao comércio ilegal. O Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade ressalta que essas quadrilhas, de forma geral, também financiam o tráfico de drogas, armas e munição.

O bando que vendia carros de luxo a jogadores de futebol e cantores, entre outros clientes, teve o bloqueio de R$ 50 milhões determinado pela Justiça. Segundo a Polícia Federal, essa quantia em parte vinha da exploração de máquinas caça-níqueis.

PEÇAS

Dados divulgados pela ABCF (Associação Brasileira de Combate à Falsificação) mostram que as autopeças perdem apenas para os cigarros no ranking de falsificação e contrabando. Velas, cabos de ignição, rolamentos, lâmpadas e anéis estão na lista dos produtos mais adulterados.

Uma estimativa feita pela entidade indica que o setor perde cerca de R$ 2 bilhões por ano com os componentes fraudados, que aumentam o risco de ocorrer um acidente.

"Esses produtos são feitos com matéria-prima de baixíssima qualidade, sem passar por qualquer critério de fabricação. Um rolamento que trinca pode fazer o carro capotar", afirma o advogado Rodolpho Heck Ramazzini, diretor da ABCF.

Segundo Ramazzini, grande parte desse material vem da China. Um volume considerável passa antes pelo Paraguai, onde os produtos ganham numeração falsa e embalagens que imitam as de grandes fabricantes.
Para o consultor Fábio Arruda, especializado no setor automotivo, a queda na venda de carros novos e o consequente envelhecimento da frota têm exigido maior manutenção. Isso aumenta a demanda por peças de baixo custo, o que abre espaço para o contrabando de peças falsas.

O consultor afirma ter comprado peças falsificadas para um Mitsubishi TR4 sem saber. Ele encomendou na internet um par de coxins hidráulicos para o veículo, no valor de R$ 400 -um desconto de 25% sobre o valor original praticado no mercado.

"Quando abri a caixa, os coxins eram secos, não tinham o fluído especificado pela fábrica. O original dura cinco anos, enquanto esse chegaria, no máximo, a três meses", afirma Arruda, que conseguiu trocar as peças.