Um pequeno mercado clandestino tem como alvo clientes dispostos a gastar mais de R$ 1 milhão em um automóvel comprado ilegalmente.
Os supercarros vêm principalmente dos Estados Unidos. Segundo a Receita Federal, 11 veículos foram apreendidos no ano passado, sete a mais que em 2016.
Esse número está longe da quantidade real de automóveis importados de forma irregular. O auditor fiscal Roberto Mascarenhas, responsável pela coordenação geral de combate ao contrabando da entidade, diz que de 10% a 15% dos bens irregulares que entram no país são retidos.
"Não podemos dizer quanto o Brasil perde com a chegada desses carros porque não sabemos o tamanho do universo. Só é possível ter conhecimento do que apreendemos, não do que passa", afirma Mascarenhas.
O objetivo do contrabando é deixar de pagar tributos que aumentam o preço do carro em cerca de 50% sobre o valor do bem nos EUA. No caso de uma Ferrari 488 Italia, por exemplo, significa deixar de pagar o equivalente a R$ 450 mil em taxas.
De acordo com o auditor, as quadrilhas agem de duas formas: declaram valores abaixo dos reais, para que a incidência de imposto seja menor, ou comercializam automóveis usados como se fossem novos.
A lei brasileira só permite a importação de carros zero-quilômetro. A única exceção são os automóveis antigos, para coleção, que devem ter, no mínimo, 30 anos desde a fabricação.
"Carros usados são muito baratos nos Estados Unidos. Os criminosos compram o automóvel com pouca quilometragem, sem indícios de uso, e zeram o hodômetro", diz Mascarenhas. O auditor afirma que a Receita Federal tem trocado informações com autoridades americanas para tentar rastrear os contrabandistas.
Os veículos apreendidos vão a leilão e o dinheiro é destinado aos cofres públicos.
Em 2011, uma operação da Polícia Federal em 14 estados e no Distrito Federal lançou luz sobre esse comércio. Na época, descobriu-se que uma concessionária na Barra da Tijuca (zona oeste do Rio) tinha entre seus clientes jogadores de futebol e artistas da música.
Escutas feitas com autorização da Justiça revelaram negociações de até R$ 1,7 milhão por um modelo Lamborghini. Foram apreendidos um Chevrolet Camaro, um BMW X6, um GMC Hummer e um Cadillac Escalade. Todos já usados, mas com documentos falsos que atestavam ser novos.
As quadrilhas importam os automóveis já com a documentação adulterada ou contam com a conivência de funcionários de portos brasileiros, em especial os de Recife, Vitória e Rio de Janeiro.
Daniel Valério, diretor-executivo da loja Direct Imports, de São Paulo, diz que a importação de um carro precisa cumprir uma série de exigências. O trâmite, segundo ele, demora cerca de 90 dias desde a escolha do modelo até sua chegada à casa do cliente.
Ao desembarcar no porto, o automóvel é cadastrado na Receita Federal. Essas informações são enviadas para o Denatran (Departamento Nacional de Trânsito), que checa a motorização e a cor da carroceria. O passo seguinte é o emplacamento, feito pelo Detran da cidade em que o carro será registrado.
"Temos tido problemas com a burocracia, mas nada além disso. A Receita e a Polícia Federal têm trâmites bem estruturados, se há qualquer problema nos portos, é porque alguém errou na papelada", afirma Valério.
ADMISSÃO TEMPORÁRIA
Durante a edição de 2006 do Salão do Automóvel de São Paulo, a Polícia Federal apreendeu 17 carros das marcas Lamborghini e Mercedes.
Segundo a PF, os esportivos chegaram ao país por meio de uma empresa de fachada, como admissão temporária -nesse caso, os impostos não precisam ser pagos. O importador alegou que os automóveis retornariam ao exterior após testes de emissões de poluentes, explicação que não convenceu as autoridades.
Os investigadores dizem crer que a empresa contava com a anuência de funcionários da Receita Federal, da Secretaria da Fazenda do estado de São Paulo e do Detran para passar a frota para o regime de admissão definitiva, apesar de os tributos não serem quitados.
O advogado tributarista Gabriel Quintanilha explica que a importação temporária é adotada, por exemplo, por fabricantes em exposições.
Os carros são liberados para permanecer no Brasil por um prazo específico e obrigatoriamente devem deixar o país quando o período se esgota, a não ser que os responsáveis arquem com os impostos.
"Outra forma de importação, mais comum, é a independente. Qualquer um pode fazer, para uso próprio ou venda, desde que o bem não seja proibido pela Legislação e os trâmites sejam todos cumpridos", diz Quintanilha.
O advogado afirma que os casos citados nesta reportagem podem ser enquadrados como sonegação fiscal, crime tributário, evasão de divisas e formação de quadrilha. Ainda de acordo com ele, a Receita Federal tem até cinco anos para investigar o comprador do carro. Se for comprovada a má-fé, o proprietário terá o bem apreendido e responderá à Justiça.
O aumento no número de crimes relacionados com o contrabando acendeu o alerta de entidades que atuam no combate ao comércio ilegal. O Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade ressalta que essas quadrilhas, de forma geral, também financiam o tráfico de drogas, armas e munição.
O bando que vendia carros de luxo a jogadores de futebol e cantores, entre outros clientes, teve o bloqueio de R$ 50 milhões determinado pela Justiça. Segundo a Polícia Federal, essa quantia em parte vinha da exploração de máquinas caça-níqueis.
PEÇAS
Dados divulgados pela ABCF (Associação Brasileira de Combate à Falsificação) mostram que as autopeças perdem apenas para os cigarros no ranking de falsificação e contrabando. Velas, cabos de ignição, rolamentos, lâmpadas e anéis estão na lista dos produtos mais adulterados.
Uma estimativa feita pela entidade indica que o setor perde cerca de R$ 2 bilhões por ano com os componentes fraudados, que aumentam o risco de ocorrer um acidente.
"Esses produtos são feitos com matéria-prima de baixíssima qualidade, sem passar por qualquer critério de fabricação. Um rolamento que trinca pode fazer o carro capotar", afirma o advogado Rodolpho Heck Ramazzini, diretor da ABCF.
Segundo Ramazzini, grande parte desse material vem da China. Um volume considerável passa antes pelo Paraguai, onde os produtos ganham numeração falsa e embalagens que imitam as de grandes fabricantes.
Para o consultor Fábio Arruda, especializado no setor automotivo, a queda na venda de carros novos e o consequente envelhecimento da frota têm exigido maior manutenção. Isso aumenta a demanda por peças de baixo custo, o que abre espaço para o contrabando de peças falsas.
O consultor afirma ter comprado peças falsificadas para um Mitsubishi TR4 sem saber. Ele encomendou na internet um par de coxins hidráulicos para o veículo, no valor de R$ 400 -um desconto de 25% sobre o valor original praticado no mercado.
"Quando abri a caixa, os coxins eram secos, não tinham o fluído especificado pela fábrica. O original dura cinco anos, enquanto esse chegaria, no máximo, a três meses", afirma Arruda, que conseguiu trocar as peças.