Logo que chegou ao viaduto Nove de Julho, Letícia do Nascimento, 20, ganhou um creme para o cabelo. O catador Valdemir Melo dos Santos, 37, que já vivia na região, resolveu lhe dar de presente -gastou R$ 16 em uma lojinha da avenida.
No dia seguinte, quando perguntou a ela onde estava o creme, recebeu uma resposta sem rodeios: "Fumei". Valdemir resolveu, então, dividir o barraco que tinha em uma das escadarias do viaduto com ela. Letícia ganhou, ali, sua confiança.
A jovem, que foi batizada como Esmerina, teve que decidir a vida desde cedo. Aos oito anos, foi viver em um orfanato -a mãe era alcoólatra, e o pai morreu atropelado por um trem.
O irmão mais velho logo foi adotado e nunca conviveu com ela. Duas irmãs mais novas foram adotadas quando Letícia ainda era criança.
Foi transferida de uma instituição a outra. "Perdi a conta, moça", diz. Até que, em 2015, fugiu de vez e abandonou o nome que o pai lhe deu ao nascer.
Letícia já viveu nas ruas de Cotia e da Vila Nova Cachoeirinha, na zona Norte de São Paulo, mas foi no centro por onde mais circulou.
Seu primeiro namorado, aos 17 anos, era ciumento. "Foi ele que me deu meu primeiro trago. Uma vez ele quase me jogou do viaduto e cortou o freio da minha língua", lembrou. Apesar disso, ela diz que não tem medo de morar na rua -nem de ficar sozinha.
Mas há dois meses mora com Valdemir. Os dois sobrevivem como catadores. "Não consigo pegar muito peso, levo uns 25 kg." O produto vale cerca de R$ 7,50. "Um bloco de cinco [pedras de crack]", compara.
Da época dos orfanatos, sobrou o aparelho fixo nos dentes. Ela ganhou o tratamento, que acabou não concluindo. Já tentou arrancar com um alicate, mas não conseguiu. "Resolvi deixar como está."
Estas reportagens foram produzidas pela equipe do 62º Programa de Treinamento em Jornalismo Diário da Folha, patrocinado pela Philip Morris Brasil.