Passada a euforia, passada a alegria, passada a comemoração de uma grande conquista, no caso a maior de todas, a de uma Copa do Mundo, a vida do jogador de futebol continua.
Cada participante tem seu momento de reflexão e de autoavaliação. As boas lembranças são permanentes; a carreira profissional, sendo na seleção ou em clubes, não.
Ao relembrar a história da Copa de 1970, Clodoaldo se emociona ao falar da amizade mantida entre os companheiros, que ganhou contornos de família.
"Nós sempre nos chamamos de irmãos nessa seleção. E isso ficou eternizado. Quando a gente se encontra é "ô, irmão, ô, irmão". A gente quase não fala o nome."
Piazza é saudosista ao recordar a campanha de seis jogos, seis vitórias, no intervalo de 18 dias.
"Já acabou? Mas tava tão gostoso. Já imaginou a gente ter a chance de jogar mais 20 partidas com aquela equipe, com Pelé, com Tostão, com Gerson, com Jair, do jeito que tava? Que coisa maravilhosa seria! Poderíamos fazer as 20 partidas tão lindas como foram as outras."
Dos cinco personagens que contaram a história do tricampeonato no México, em 1970, alguns tiveram continuidade na equipe nacional, outros a deixaram pouco depois.
Da Copa de 1974, na Alemanha, na qual o Brasil, de novo sob o comando de Zagallo, chegou em quarto lugar, apenas Piazza participou, capitaneando o time na primeira fase.
A idade pesou para Gerson; ele já era trintão e encerrou sua participação pelo Brasil em 1972. Tostão, com problemas no olho que tinha operado em 1969, parou de jogar futebol em 1973.
Carlos Alberto e Clodoaldo sofreram contusões que os impediram de ir ao Mundial alemão e não foram incluídos na relação do técnico Cláudio Coutinho para a Copa de 1978, na Argentina.
Seleção FIFA da copa
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Mazurkiewicz
Uruguai
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Beckenbauer
Alemanha
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Piazza
Brasil
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Carlos Alberto
Brasil
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Facchetti
Itália
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Gerson
Brasil
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Bobby Charlton
Inglaterra
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Cubillas
Peru
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Jairzinho
Brasil
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Gerd Müller
Alemanha
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Pelé
Brasil
Eu não tenho nenhuma lembrança material daquela Copa do Mundo
Eu continuei na seleção, apesar de que em 1971 eu tive um problema, operei o joelho, inclusive não participei da despedida do Pelé da seleção, apesar de que eu fui convocado e estava lá, mesmo com o joelho operado, com os jogadores na concentração. Mas não joguei.
Depois, tive poucas participações na seleção porque é aquela tal coisa, a seleção não jogava como se joga hoje. Tinha um ou outro jogo, um ou outro torneio, e eu não participei por causa da recuperação. Eu tive uma contusão séria no joelho que na época era sinônimo de encerramento de carreira.
Depois, em 1974, eu voltei à seleção. Fui convocado e, infelizmente, no primeiro treino de preparação para a Copa, eu tive uma contusão. O Zagallo, eu lembro perfeitamente do primeiro treino, disse: "Para descontrair, vamos armar dois times aí, fazer uma pelada".
Aí eu levei uma porrada no peito do pé, foi o Luís Pereira, o calcanhar dele pegou no peito do meu pé, e não consegui me recuperar. A impressão que eu tive foi de ter quebrado o pé.
O massagista era o Mário Américo, ele era um daqueles caras chatos que ficavam em cima do jogador. Muito gelo, muita água quente, muita infiltração, gesso no pé. Mas eu não consegui me recuperar e por isso eu fui cortado e não fui pra Copa do Mundo.
Depois eu ainda joguei alguns jogos pela seleção. Em 1977, joguei a primeira fase das eliminatórias, os jogos contra a Colômbia e o Paraguai. Depois eu fui pro Cosmos e não participei mais de nenhuma seleção.
*
Eu não tenho nada de lembrança daquela Copa, não tenho absolutamente nada. Lembrança material, do uniforme... Até mesmo pela dificuldade que se tinha naquela época de se ter uniforme. Não é como hoje.
Eu lembro que eles até pediam: "Não dá a camisa". Porque o material era contado. Hoje, não. Hoje os caras levam 500 mil camisas, calções. Naquela época era tudo contadinho.
Então eu não tenho nenhuma lembrança material daquela Copa do Mundo. Acredito que o Pelé deva ter, porque o Pelé era exceção. Se os caras davam uma camisa pra nós, davam dez pra ele. Porque ele merecia, claro.
Mas as lembranças são as melhores possíveis. Ganhar uma Copa do Mundo... E com aquela coisa especial que teve aquela seleção de 1970, né?
Foi uma alegria, acho que realmente não tem igual. Os jogadores comemorarem a conquista de uma Copa do Mundo, cara, é muito complicado isso aí, pô.
Complicado no sentido de que a emoção que toma conta... Você faz coisa sem pensar que tá fazendo. Porque é uma coisa realmente indescritível ganhar uma Copa do Mundo. Você conta nos dedos quem já ganhou uma Copa Mundo. Não é todo o mundo. Então foi uma conquista que, realmente, está marcada até hoje.
Em todos os lugares que eu vou, é o Capitão, o Capita, o Capitão. Ninguém me chama pelo meu nome no Brasil. Então, as lembranças não são apagadas, pelo carinho que as pessoas têm por mim, pela lembrança da Copa de 1970. As pessoas começam a falar dos lances, do gol, da taça, enfim, é uma lembrança gostosa.
A gente sempre almeja chegar ao ápice da carreira, corre atrás desde o início
A Copa de 1970 significou muito, porque o atleta almeja entrar numa seleção brasileira, ir a uma Copa do Mundo e, se possível, ser campeão. Isso aconteceu. E isso muda a vida, naturalmente.
Depois da Copa... Eu já era jogador do São Paulo desde as eliminatórias, em 1969. Voltei pra São Paulo, fui campeão, bicampeão paulista e aí fiquei voltado pro São Paulo.
Comemorações... Aonde o São Paulo chegava me prestavam homenagem pela conquista da Copa do Mundo e tal.
Eu acho que [o tricampeonato] foi pra todo mundo muito bom. Eu acho que pra mim, pro Félix e pro Pelé, que já tínhamos 29 anos, 30 anos... Era a última Copa, praticamente.
Mas pros garotos, Edu, Paulo Cézar, Clodoaldo e todos os outros, nos seus clubes e depois durante a carreira toda, foi uma conquista sensacional porque era a taça [Jules Rimet] definitiva aqui no Brasil. Isso também faz parte dessa seleção.
Embora eu tenha sido campeão já com 28 para 29 anos, e eu joguei mais três anos, mais quatro anos, valeu pelo esforço de toda uma vida de atleta.
A gente sempre almeja chegar ao ápice da carreira, e sendo campeão do mundo eu acho que o atleta atinge a sua principal meta. Então eu acho que valeu muito. A gente corre atrás disso desde o início.
O futebol me trouxe tudo.
Ser reconhecido aonde você vai, em qualquer lugar vem alguém parabenizar
Quando você joga no clube, você só tem o assédio do torcedor do seu clube, mesmo que você consiga destaque. Mas, quando você vai pra seleção, passa a ter o assédio também dos torcedores dos outros clubes.
Então, você passa a ter uma importância também porque passa a ter um contato com todo torcedor, de qualquer clube. Isso aumenta a sua responsabilidade, mudam o seu comportamento e as suas atitudes.
Mas, profissionalmente, no Santos não mudou nada. Eu permaneci no clube, nunca tive desejo de sair, permaneci aqui durante 14 anos. Então, profissionalmente, [a conquista do tri] não mudou muito. O que mudou foi, logicamente, você passar a ser uma pessoa mais do povo, mais pública.
Ser reconhecido aonde você vai, e em qualquer lugar que você está vem alguém falar com você, parabenizar. E essa coisa te enche de orgulho e de alegria.
A qualquer lugar que eu ia, um passeio, um cinema, um restaurante, eu percebia que havia acontecido alguma coisa diferente. Lógico, a Copa do Mundo. Isso fica eternizado.
*
Eu tive uma fase até 1974 excelente. Eu, em 1973, fui o melhor jogador da Minicopa, no Rio de Janeiro. Fui eleito o melhor jogador da competição,
ganhei todos os prêmios.
Só que depois, em 1974, eu me machuquei. Infelizmente, num treinamento tive um estiramento muscular [na coxa] que me deixou fora da Copa.
Eu fui pra um teste. Na época, o Gerson não estava jogando e até me aconselhou a não fazer o teste. Mas eu falei: "Tenho uma dúvida, ainda estou com uma região muito sensível".
Se eu não faço o teste... Aí eu acho que foi o grande erro da comissão técnica. Me preservar e dizer: "Não, você não vai pro teste. Nós vamos te inscrever para a Copa do Mundo". Faltavam alguns dias.
Então, achei que a comissão, aí, poderia ter corrido esse risco. E não correu. Preferiu fazer que eu corresse esse risco, de fazer um teste num jogo, no último jogo antes de começar a Copa. Aí eu fui pro jogo, com 15 minutos saí, porque aí puxou mesmo [o músculo]. Toda aquela preparação que eu tinha feito até aquela data eu joguei fora.
Depois, em 1978, não fui também. Eu poderia ter participado de três ou quatro Copas do Mundo, mas aí eu tive uma sequência de contusões, depois um problema de joelho, aí realmente isso encurtou muito a minha carreira dentro do futebol.
*
Sempre que eu falo da seleção de 1970, eu gosto de falar da união que aconteceu durante todo o período da Copa do Mundo. Isso foi fundamental para que o sucesso da seleção tivesse sido alcançado.
Nós sentíamos dentro desse grupo... Primeiro, que não existia individualidade, as vaidades. Isso era uma coisa que não existia na seleção de 1970.
Nós tínhamos como espelho o Pelé. O exemplo partia do maior de todos, com a sua simplicidade, com a sua humildade. Isso contagiava o grupo.
E nós tínhamos os nossos momentos, dentro desse grupo, nas nossas reflexões, nas nossas orações, respeitando cada um a sua religião, mas todos participavam, mesmo que tivesse outro tipo de religião.
A gente tinha esse momento dentro da seleção, todos os dias. E ali nós nos entendíamos e percebíamos que realmente o grupo estava no caminho certo porque estava bem espiritualmente.
Nós sempre nos chamamos de irmãos nessa seleção. E isso ficou eternizado. Quando a gente se encontra é "ô, irmão, ô, irmão". A gente quase não fala o nome. É "ô irmão, como é que tá, tá tudo bem?".
É assim o nosso reconhecimento dessa amizade que se criou na seleção de 1970.
Você passa a ser mais cobrado. As pessoas comemoram, mas depois querem o mesmo nível
Na média, eu fiz algumas grandes jogadas na Copa. E jogadas, inclusive, em jogos decisivos.
Os dois jogos mais difíceis do Brasil na Copa, quando o Brasil correu risco de perder, foram contra Inglaterra e Uruguai. Foram os jogos em que eu fiz as grandes jogadas que foram decisivas em gols do Brasil.
Em dois gols contra o Uruguai, os dois primeiros, dei dois passes que foram talvez os passes mais bonitos que já dei na minha vida, os mais tecnicamente bem feitos. Tive esses momentos.
No restante, eu mantive o mesmo padrão em todos os jogos, um padrão assim: joguei bem, sem fazer nada excepcional individualmente, fora essas jogadas.
Eu tive uma presença coletiva importante. Eu era o jogador de referência na frente, que segurava a bola, que tocava pra quem tava chegando, que prendia os zagueiros. Então eu tive essa participação coletiva importante.
Quando eu jogava no Cruzeiro, vindo de trás com a bola, tocando, driblando, tabelando e aparecendo, eu tinha muito mais chance de fazer gol do que jogando lá na frente.
Paradoxalmente, parece que você, jogando na frente, tem mais chance. Mas não. Porque eu ficava numa posição muito de costas pro gol, com a função mais de preparação de jogadas.
Eu gosto de dizer o seguinte: eu não fui na Copa nem o armador que eu era no Cruzeiro, um meia, e nem o centroavante que teoricamente eu fui, porque eu fui escalado de centroavante. Eu fui um centroavante armador, joguei mais como um jogador de apoio na frente.
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É emoção mesmo, é uma coisa catártica. É uma coisa que sai... Uma catarse de movimento, de choro, de tudo. E foi uma Copa que o Brasil ganhou com todo mundo jogando um futebol maravilhoso, todo o mundo gostando. Deu tudo certo.
Foi, assim, uma coisa espetacular. Quando o Brasil fez o terceiro gol na final, eu lembro que eu comecei... Antes de o jogo com a Itália acabar eu já tava chorando de emoção. Emocionado, assim, lágrimas querendo já... Não chorando, mas com a sensação de que já tava chorando. A emoção do título.
E era um troféu bem emblemático, né, aquela figura de Jules Rimet. Era um troféu bonito. Eu lembro que nós ganhamos do governo de São Paulo uma miniatura, uma cópia, que eu guardo até hoje.
Todo mundo levantou a taça. Eu não lembro... Eu não tenho nenhuma foto, nenhuma imagem de eu levantando a taça. Gozado, eu nunca vi. Quando tem imagem da Copa, eu não vi nenhuma.
Eu lembro que tem uma que passa na televisão com vários jogadores, o Carlos Alberto passa pra um, passa pra outro, e eu não apareço, não. [risos]
Eu não me vejo, eu não sei onde que eu tava.
Teve muita festa, muita comemoração, muito prêmio, essa coisa toda. E a coisa depois volta ao normal. Daqui a pouco você começa a jogar mal, o pessoal vai esquecendo, vai cobrando. Volta a vida normal.
Sempre depois de uma grande glória vem um período, às vezes, ruim tecnicamente. Quando eu voltei a jogar no Cruzeiro, o Cruzeiro caiu, não foi mais o mesmo dos anos anteriores.
Eu não conseguia jogar com a mesma qualidade, alternava boas e más partidas. E você passa a ser mais cobrado. As pessoas comemoram, comemoram, mas depois querem o mesmo nível.
Em 1971, teve a Copa da Independência. O Pelé não participou. Eu joguei na posição do Pelé.
Pela seleção, fora essa Copa da Independência, eu não lembro se eu joguei. Em 1972 eu saí do Cruzeiro e em 1973 eu parei de jogar.
Voltaram os problemas no olho, eu tive de ser reoperado e parei de jogar.
Se a gente fosse tetra em 1974, eu confesso que passaria longe, em termos de emoção
Eu recebi muito mais do futebol do que eu esperava. Eu não tinha um sonho tão grande pra chegar aonde eu cheguei, principalmente até uma seleção brasileira.
O futebol é diferente dos outros esportes, e eu pratiquei tanto outros esportes... A gente observa o vôlei, o basquete... Mas o futebol te dá uma amplitude de acontecimentos, principalmente em casos de gols, de lances que às vezes não se transformaram em gols.
Você fica assim: "Peraí! Puxa vida, eu já vi mil gols, vi 2.000 gols, mas eu nunca vi isso!".
Eu tava vendo outro dia um gol do Coritiba. A bola vai, bate na trave, bate no goleiro, sobra, um cara chuta, bate outra vez na trave, aí vem o outro que bateu a primeira vez na trave e faz o gol. E eu falei: "Só o futebol pra ter isso, pra proporcionar isso". É diferente.
Por isso que no futebol você não pode afirmar categoricamente: "Podemos jogar mil vezes contra a Venezuela que vamos ganhar as mil vezes". Tem um dia da Venezuela. Você não sabe se é hoje, se é amanhã ou depois.
Por isso que esse negócio de mata-mata, principalmente numa Copa do Mundo, puxa vida, arrebenta com a gente mais do que nunca. Porque é aquele negócio: ou matar ou morrer.
Eu acho que não tinha como dar resultado diferente, não. Não podia dar diferente por aquilo tudo que nós passamos na fase de preparação, o sacrifício que nós fizemos. Nós ficamos enclausurados lá naquele Retiro dos Padres [no Rio de Janeiro, na preparação]. Foram 90 dias. Foi muito bom pra seleção. Foi bom, foi válido, era uma preparação diferente.
É muito tempo que a gente fica se preparando pra tão pouco tempo [de competição]. Por isso que eu volto a plagiar acho que o Garrincha, que disse:
"Ué, mas já acabou?". Porque a Copa do Mundo eu falo que não é um campeonato, eu falo que é um torneio, porque é tão curto, tão rápido.
E é interessante que, quando você tá bem, tendo prazer de jogar, realmente vem esse sentimento: "Pô, já acabou?". É bom você ganhar logo, mas por outro lado você para e pensa assim: "Já acabou? Mas tava tão gostoso".
Já imaginou a gente ter a chance de jogar mais 20 partidas com aquela equipe, com Pelé, com Tostão, com Gerson, com Jair, do jeito que tava? Pô, que coisa maravilhosa seria. Poderíamos fazer as 20 partidas tão lindas como foram as outras.
A vitória nossa foi muito importante pro Brasil naquele momento, claro. A gente não tinha nem consciência do quanto aquela vitória era importante pro Brasil. Era a conquista definitiva da Jules Rimet, graças a Deus.
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Na Alemanha, em 1974, eu tive a oportunidade de estar com a seleção.
Se a gente fosse tetracampeão do mundo, eu confesso que passaria longe, em termos de emoção, mesmo com o Brasil sendo tetracampeão, ganhando mais um título, não seria igual.
Existem momentos únicos na sua vida, em termos de perdas, em termos de ganhos, e não se consegue escrever a história com a mesma pena. Não se consegue. A caneta que escreveu a história do tricampeonato, ela não existiu mais pra ninguém.
Foi maravilhosa. Foi uma história escrita a pena de ouro.