Marisvalda Batista dos Santos, 48, nunca esqueceu do seu primeiro celular. O aparelho só fazia chamadas de voz e foi encontrado no lixão de Itabuna (BA), onde ela trabalhou 16 anos com o marido até que o local fosse fechado durante a pandemia.
Sem trabalho fixo desde maio de 2021, Marisvalda não conta mais com os R$ 1.250 por mês que conseguia vendendo latinhas, garrafas pets e outros artigos encontrados no lixão.
Foi com esse dinheiro que equipou sua casa ao longo dos anos e comprou um telefone novo com acesso à internet.
O aparelho quase se foi pelas águas na enchente que devastou Itabuna há seis meses, ameaçando colocar abaixo a casa humilde herdada da mãe.
Enfrentando dificuldades, Marisvalda conseguiu secar o chip, que foi instalado no aparelho de dois cartões de uma das filhas.
Hoje, o telefone compartilhado serve para entreter uma das netas que mora com a avó, e com o qual ela passa as tardes vendo desenhos animados em vez de brincar na rua.
Para Marisvalda, o celular agora ajuda a encontrar bicos como doméstica, lavadeira e passadeira.
"Quando tem bastante serviço, faço uns R$ 400 por mês", diz.
A quantia, segundo ela, ajuda a reforçar o auxílio emergencial (agora Auxílio Brasil) que recebe do governo desde o ano passado. O marido só conseguiu ser habilitado para o recebimento neste mês.
A filha instalou o aplicativo da Caixa Econômica Federal que evitou as idas ao banco para sacar o dinheiro. Ela também cuida do acesso ao sistema, porque Marisvalda não sabe ler. No Whatsapp, ela se comunica por mensagens de áudio.
"Isso mudou a minha vida. Hoje é muito melhor, consigo pedir ajuda, me virar mais rápido", disse.
Mas nem sempre foi assim. Comprar um telefone é fácil, mas, há 25 anos, quando só existia a Telebras, a estatal das telecomunicações, havia filas que levavam anos até a aquisição de uma linha.
Quem quisesse furá-la precisava desembolsar algo como R$ 26 mil no mercado paralelo (em valor atual). O bem era tão valioso que constava em declarações de renda à Receita Federal.
Naquele tempo, as linhas eram fixas, não havia mobilidade, nem internet. Foi com a privatização, em 1998, que essa realidade começou a mudar.
O então ministro das Comunicações, Sérgio Motta, vislumbrou a venda da Telebras como forma de destravar investimentos para que a telefonia, ainda por meio de fios, chegasse a todos os domicílios brasileiros.
No auge, a estatal investiu o equivalente a R$ 7 bilhões. Até para contrair dívida, era preciso autorização do Congresso Nacional.
Naquele momento, poucos no governo acreditavam que o celular, um serviço caro e elitista, e a internet, ainda incipiente no país, cairiam no gosto popular.
"A privatização ocorreu em 1998, mas, antes, o Sérgio Motta vendeu as licenças da telefonia celular, já prevendo que a competição viria daí", diz Juarez Quadros, ex-ministro das Comunicações que, à época, era secretário-executivo do Ministério das Comunicações e coordenador do processo de privatização.
"O Sergião, como ele era chamado, vislumbrava a telefonia celular como algo popular. Ele dizia: 'Isso vai vender até em posto de gasolina'."
E vendeu. Hoje, existem mais linhas de celular ativas no país do que brasileiros –muitos são titulares de mais de uma linha móvel, uma alternativa para quem quer contornar problemas de conexão.
Segundo levantamento da UIT, a agência da ONU para telecomunicações, o minuto médio do celular no Brasil custou US$ 0,08 (R$ 0,44) em 2021; e 1 GB (gigabite) de internet, US$ 1,70 (R$ 9,48).
Essa média é bem menor em pacotes que combinam voz e dados e em planos pré e pós-pagos, cujos preços variam conforme a operadora.
Na comparação com 205 países avaliados pela UIT, o Brasil vem avançando. Em 2021, passou a ocupar a 24ª colocação com o menor preço de internet móvel do mundo; e a 76ª em relação ao minuto de celular. Em 2014, ocupava as posições 123 (internet) e 150 (celular).
Sem o salto na comunicação, seria impossível que empresas seguissem trabalhando de forma remota na pandemia, e que alunos pudessem ter aulas à distância.
Há dois anos, para falar ao telefone, os moradores do assentamento de Dom Osório, em Mato Grosso, precisavam dirigir por 50 quilômetros até chegar a Campo Verde, a cidade mais próxima.
Nos últimos cinco anos, as grandes fazendas da região –conectadas por antenas próprias de celular– abriram o sinal e os moradores compraram seus primeiros chips.
Muitos já surfam na onda do Whatsapp e do Facebook para falar com parentes ou fazer negócios.
Dom Osório vem recebendo o sinal de uma das fazendas do grupo Bom Futuro, que mantém 90% da propriedade coberta com sinal 4G.
A comunidade abriga cerca de 600 famílias que se dedicam à pecuária (suínos e asininos) e ao plantio de hortaliças.
O assentamento, que há quatro anos começou com barracas de lona e plástico, agora exibe casas de alvenaria, poços artesianos, vias por onde passam carros e motos.
"Pagamos para a construção da rede, mas as antenas pertencem às operadoras com quem fizemos parcerias", afirma Alexandre Carvalho, gerente de Tecnologia da Informação do grupo. "Por isso, o sinal é aberto."
Nas metas de cobertura da Anatel impostas às operadoras, localidades com mais de 30 mil habitantes, caso de Campo Verde, só receberiam o 4G no final deste ano –quase uma década após o lançamento do serviço, que ocorreu em 2012.
Em novembro do ano passado, o governo realizou o leilão do 5G, que começou a ser implantado comercialmente com a promessa de velocidade de navegação na internet até dez vezes mais rápida que no 4G. Lugares menos populosos só devem receber o sinal em 2029.
Para reduzir custos e melhorar a produtividade, a SLC Agrícola já instalou sua primeira antena 5G em caráter experimental na Fazenda Pamplona, que fica a cerca de 100 km de Brasília.
A ideia do grupo é fazer monitoramento por robôs, com automação do plantio e da colheita.
"Hoje, com a conexão 4G, já controlamos o gasto de combustível e o uso dos tratores", afirma João Aranda, gerente de Infraestrutura, Governança e Serviços de TI da SLC. "As máquinas não ficam mais paradas e conseguimos prever até se haverá redução na estimativa da safra."
O grupo é um dos maiores produtores agrícolas do país, com 22 fazendas localizadas na região conhecida como Matopiba (na fronteira entre MA, TO, PI e BA) e no Centro-Oeste, das quais 16 propriedades estão cobertas com telefonia 4G –uma área total três vezes maior que a cidade do Rio de Janeiro.
Na Jalles Machado, um dos gigantes da produção de etanol e açúcar do país em Goiás, todos os funcionários no campo operam com celular.
As antenas permitem que uma central controle as duas propriedades 24 horas. Se as máquinas sofrem alguma pane, enviam um sinal. O motorista só precisa aguardar o socorro.
Esse aparato já permitiu aumentar a moagem da cana e a quantidade transportada para os centros de distribuição.
"A tecnologia nos ajuda, mas também atende os ribeirinhos, que hoje têm telefone e demorariam para ter se não tivéssemos implantado esse projeto", disse Eduardo Junqueira, gerente de tecnologia da Jalles.
Tanto progresso, no entanto, não chega a áreas distantes da mesma forma. Na Amazônia, embora a cobertura e o acesso tenham aumentado desde a privatização, a qualidade do serviço continua precária.
"Aqui é zero internet. Para conseguir fazer chamada de voz é bem difícil", diz Rubeney de Castro Alves, dono de uma pousada em Atalaia do Norte (AM).
O empresário construiu seu empreendimento com recursos de um fundo de desenvolvimento, depois de fechar uma parceria com o governo estadual.
"A ideia é fomentar o turismo na região", disse Alves. "Tem gente dos EUA e de outros países querendo vir, mas a falha de comunicação quase impossibilita. É muito ruim mesmo. E temos três operadoras aqui."
A Folha passou quatro dias tentando entrevistá-lo, sem sucesso. Ao final, perguntas e respostas foram trocadas por mensagens de áudio do Whatsapp, depois que uma ONG no local liberou o sinal de sua antena via satélite para o empresário.
Mesmo assim, para Juarez Quadros, que pilotou a privatização, valeu a pena.
"Claro que houve falhas. Criamos um fundo setorial, o Fust, que deveria ter levado bilhões e bilhões para essas regiões afastadas, para conectar a Amazônia, mas o dinheiro virou superávit primário [cobriu outras despesas para ajudar a conta do governo a ficar no azul]", disse Quadros.