Em 2006, instalou-se no setor de energia o temor de que não haveria gás suficiente no mercado para ligar todas as térmicas, consideradas vitais contra o risco de apagão. Para fazer o tira-teima, veio uma resolução da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). Todas as usinas a gás do país deveriam ser acionadas ao mesmo tempo.
O governo não gostou. Silas Rondeau, então à frente do MME (Ministério de Minas e Energia), enviou correspondência ao diretor-geral da agência, Jerson Kelman, argumentando que deveriam voltar atrás, porque estavam extrapolando as suas funções. Com apoio de toda diretoria e da área técnica, Kelman manteve o procedimento. A conclusão: o boato era fato. O gás disponível atendia pouco mais da metade das térmicas.
A privatização no setor de energia foi acompanhada da criação de novas instituições, com a responsabilidade de organizar e monitorar o funcionamento do sistema à medida que ele deixava de ser centralizado pelo Estado e se tornava pulverizado em empresas privadas.
A engrenagem essencial dessa nova estrutura é o regulador, representado pela Aneel. Essa autarquia, ligada ao MME, foi criada em dezembro de 1996, empoderada com autonomia para cumprir missões como a descrita acima.
À Aneel, entre outras atribuições, cabe cuidar dos reajustes das tarifas que impactam a conta luz, dos leilões que levam à expansão da oferta de energia e dos padrões de qualidade do serviço.
No entanto, existe consenso no mercado de que a Aneel, assim como ocorreu com outras agências reguladoras, perde independência e poder de ação a partir de um impertinente aparelhamento político e avanço do lobby privado.
O próprio protagonista no embate de 2006 identifica e lamenta o esvaziamento do regulador.
"O setor elétrico acabou ficando muito fragmento em dezenas de associações, cada uma olhando seu umbigo, o que levou a essa catástrofe que vemos hoje: a substituição de qualquer decisão baseada em técnica e planejamento pelo lobby mais poderoso, sempre associado a ligações como esse ou aquele parlamentar", afirma Kelman.
Ele reforça que o arcabouço institucional preserva inteligência técnica. Além da Aneel, o setor conta com instrumentos para a negociação, via CEEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), para o seu funcionamento, com o ONS (Operador Nacional do Sistema), e para o planejamento, por meio da EPE (Empresa de Pesquisa Energética).
"Mas as instituições agora têm pouca influência nas decisões relevantes", afirma Kelman. "O poder saiu delas e está no Congresso Nacional."
Hoje é fácil saber até quem é o padrinho político, normalmente algum parlamentar, deste ou daquele diretor da agência reguladora.
"Sempre há algum envolvimento político numa indicação para uma agência, mas passou da conta, ao ponto de Aneel perder a voz nos grandes debates que envolvam interesse político", afirma Edvaldo Santana, ex-diretor da Aneel.
Um exemplo disso, afirma Santana, é o silêncio da agência quando os parlamentares incluíram no projeto de privatização da Eletrobras a exigência de construção de 8 GW (gigawattes) de térmicas a gás (onde não há gás para produzir energia nem linha de transmissão para levar ao centro consumidor) e jogou a despesa da construção desse novo sistema para a conta de luz.
A economista Elena Landau, que participou do processo de privatização nos anos de 1990, afirma que o maior prejudicado nesse aparelhamento é o cidadão. "Ao longo do tempo, a regulação se tornou especialmente passiva na defesa do consumidor", afirma ela.
"Se olhar para trás, nesses 30 anos, a minha frustração é ver como os encargos, tipo subsídio para carvão e para irrigação, por força de lobbies, deixaram a conta de luz nesse valor elevado, sem que a Aneel cumprisse o seu papel."