30 anos de privatização

A Folha publica uma série de reportagens especiais em seis capítulos para detalhar o que mudou no Brasil em três décadas de privatizações e concessões de atividades públicas à iniciativa privada. Em todos os setores, os investimentos se multiplicaram, assim como o contingente de brasileiros atendidos por mais e melhores serviços.

30 anos de privatização
Energia

Abertura do mercado a consumidor residencial é etapa final da privatização

Desestatização deve ser concluída com projeto para modernizar marco regulatório, permitir mais competição e redução de tarifas

Alexa Salomão
Brasília

Favela de Paraisópolis, em 1987, quando não havia serviço regular de energia - Sérgio Tomisaki - 29.ago.1987/Folhapress; Favela de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, iluminada pelo fornecimento de energia elétrica, serviço que costumava ser precário antes da privatização - Eduardo Knapp/Folhapress

A pernambucana Helena Santos se mudou para Paraisópolis em 1971, aos 15 anos, quando se casou. Mesmo morando na maior cidade da América Latina, a luz em casa dependia da vela, o banho era de bacia, não havia geladeira e a pequena TV preto e branco funcionava conectada a uma bateria de carro. A primeira ligação elétrica na sua casa só veio em meados dos anos de 1980.

De lá para cá, a luz lhe deu as bases para uma vida mais confortável. O problema dela agora é outro, pagar a conta. A última foi de R$ 380. Helena ganha cerca de dois salários mínimos e vive com um filho que faz bicos.

"Hoje eu tenho muito mais conforto, com geladeira, máquina de lavar roupa, microondas, vários eletrodomésticos", afirma Helena. "Mas fiquei quase um ano sem conseguir pagar a luz, acertei há pouco, e ninguém consegue explicar, pois já fui na Enel perguntar, porque a luz é tão cara", afirma ela.

A universalização na oferta de luz é apontada como o grande benefício social das privatizações no setor elétrico. No início dos anos de 1990, quando prevaleciam as estatais, 12,5% dos brasileiros, cerca de 18 milhões pessoas, moravam no escuro. Agora, ainda falta luz para menos de 1%, cerca de um milhão de pessoas, que vivem principalmente em áreas isoladas da Amazônia Legal.

Esse avanço ocorreu com a associação de políticas públicas e investimentos privados, possíveis com a venda das estatais.

"Basta olhar os números para ver como o processo de abertura do setor de energia é acompanhado pelo aumento dos investimentos", afirma Venilton Tadini, presidente da Abdib (Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base). Nos levantamentos da entidade, energia aparece sempre entre os setores que mais atraem capital.

A busca dos investimentos está na raiz do processo de privatização do setor elétrico brasileiro.

"A principal motivação para a venda das estatais, nos anos de 1990, foi financeira: a oportunidade de o governo brasileiro utilizar capital privado para a expansão da geração e da transmissão", afirma Mario Veiga, um dos maiores especialistas na área e fundador da PSR, referência em consultoria para energia.

"Naquele momento, ocorreu um esgotamento de recursos estatais, e havia um grande interesse privado nessa área, relacionado com a reforma do setor que ocorria no mundo inteiro."

A desestatização acabou envolvida, no entanto, em um debate com tons ideológicos, o que tornou o processo lento, gradual e fragmentado, retardando a abertura do mercado para o consumidor residencial –e a competição que incentivaria a redução do preço para esse segmento da população.

Muitos no setor ainda avaliam que essa transformação precisa ser gradual e acompanhada de um robusto arcabouço regulatório.

O presidente Fernando Collor de Mello abriu uma frente ao incluir a capixaba Escelsa e a fluminense Light no Plano Nacional de Desestatização, em 1992, após as estatais começarem a década no vermelho. No entanto, as distribuidoras só começaram a ser vendidas na gestão de Fernando Henrique Cardoso .

Os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff não venderam empresas, mas ampliaram leilões abertos a investidores de qualquer matiz e nacionalidade, atraindo forte capital privado nacional e estrangeiro para a expansão de linhas de transmissão e construção de novas usinas.

Também criaram as bases para a implantação de uma cadeia de fornecedores e gestores privados voltados à instalação de parques eólicos e solares.

Michel Temer retomou as vendas e leiloou as seis distribuidoras que ainda estavam no guarda-chuva da Eletrobras.

A geração e a transmissão finalmente foram privatizadas no governo de Jair Bolsonaro, em junho deste ano. Uma capitalização em Bolsas diluiu de 72% para cerca de 35% a participação da União na Eletrobras.

Poderia ser o fim do ciclo, mas o trabalho não se encerrou, explica a economista Elena Landau, que foi diretora da área de desestatização do BNDES na arrancada do processo nos anos 1990.

"Privatizou? Sim. Com a venda da Eletrobras, o setor privado agora é dominante na energia, mas a privatização de uma Eletrobras não poderia ter se resumido à capitalização da empresa. Não é isso que se faz em privatização, não foi assim na telecomunicação. Era o momento de avançar na modernização do setor elétrico. A gente deveria ter tido avanços, par e passo com a privatização, que não ocorreram", afirma Elena.

A economista tem uma lista de questionamentos. "O modelo que está aí gera a competição que gostaríamos? Não dá para reduzir tarifa? A gente esta dando subsídio para quem precisa? Qual o objetivo maior da transição energética brasileira? Essas discussões de fundo não acompanharam a privatização e estão sendo empurradas com a barriga."

Há um outro componente que pesa no custo final da energia e que é questionado por muita gente no mercado: a escolha das fontes de geração.

Após o racionamento em 2000, a térmica assumiu o posto de "seguro apagão", movida a combustível fóssil, mais caro e poluente, elevando o custo da energia.

"Desde 1998, multiplicamos por seis a quantidade de térmicas no Brasil, e os principais combustíveis, até 2008, eram óleo e diesel, diz Roberto Pereira D'Araujo, diretor do Ilumina (Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético). "Isso deixou a matriz mais poluente e cara. Precisamos rever essa estratégia. As fontes limpas e renováveis estão aí."

Na avaliação dos especialistas, um caminho para a modernização do setor é a aprovação do projeto de lei 414, que tramita na Câmara. "O projeto traz a oportunidade de revermos um modelo que se esgotou", diz Carlos Faria, presidente da Anace (Associação Nacional dos Consumidores de Energia).

Constam dessa proposta os mecanismos que vão permitir a abertura do mercado para o consumidor residencial. Qualquer pessoa poderá ​produzir e vender energia, bem como comprá-la de quem quiser. Atualmente, apenas grandes empresas têm essa autonomia, fechando negócios no chamado mercado livre, com imensas vantagens econômicas.

​​Caso da BRF, uma das maiores companhias de alimentos do mundo, dona das marcas Sadia e Perdigão. Como ordem de grandeza, ela consome 0,5% da energia do Brasil. Além de atuar no mercado livre, agora investe para participar da produção de energias limpas.

Firmou duas parcerias para isso, com investimentos de quase R$ 2 bilhões. Com a AES Brasil, entrou na construção de um complexo eólico em Cajuína, no Rio Grande do Norte. Com a Pontoon, atuará na produção de energia solar, com parques em Mauriti e Milagres, no Ceará.

"A gente pensou grande, porque teríamos o benefício da sustentabilidade e o financeiro", diz Daniel Bucheb, diretor global de suprimentos da BRF. Em 2023, quando os parques entrarem em funcionamento, praticamente 80% da energia da BRF será limpa e renovável, diz. Os outros 20% são contratos hidráulicos; energia limpa, mas não renovável.

A projeção é que haverá uma economia da ordem de R$ 1,7 bilhão em 15 anos, cerca de R$ 120 milhões por ano em relação a custos atuais, que já são competitivos.

Bucheb tem painéis solares em sua casa e é um entusiasta na evolução da legislação rumo à abertura de mercado para o cidadão comum.

"O Brasil vai ser pioneiro nessa nova frente", diz Bucheb. "Muito mais rápido do que a gente imagina, a energia limpa e renovável vai ser muito acessível, e as pessoas vão poder ter seus painéis solares, produzir e vender no Brasil, onde há espaço e sol para esse tipo de produção."

Helena, a moradora de Paraisópolis, aguarda com ansiedade esse desfecho para o ciclo de privatizações do setor elétrico.

SETOR NASCEU PRIVADO, FOI ESTATIZADO E REPRIVATIZADO

A história do setor de energia é marcada por uma peculiaridade quando se leva em consideração o acionista das empresas. Nasceu privado, foi estatizado e, depois, reprivatizado. O vai e vem no controle entre privado e público é marcado por rupturas tecnológicas, explica o fundador da consultoria PSR, Mario Veiga, um dos maiores especialistas na área.

A lâmpada de Thomas Edson, inventada em outubro de 1879, era baseada em corrente contínua. A eletricidade vinha de pequenos geradores e não ia muito longe.

Naquele mesmo ano, o imperador Dom Pedro 2º concedeu a Edson o direito de utilizar seus equipamentos no Brasil. O primeiro sistema de iluminação pública da América do Sul foi instalado em Campos de Goytacazes, 1883, com a presença do entusiasta Dom Pedro.

Por força do espírito empreendedor nessa largada precoce, na primeira metade do século 20, o setor no Brasil foi dominado por empresários privados, seguindo a tendência internacional.

"Tudo era privado e descentralizado, com uma concorrência brutal lá no início", diz Veiga. "O gerador ficava no porão das casas, e se você fosse rico levava junto um engenheiro para fazer a manutenção."

Quando Nikola Tesla viabilizou o uso da corrente alternada em 1887, veio a alta tensão, e foi possível transportar energia a longa distância. Isso viria a abrir espaço para a construção de grandes usinas, mudando a estrutura do negócio, levando à economia de escala, o monopólio natural e a estatização.

As disputa entre os dois sistemas entrou para história como guerra das correntes.

Em 1889, a hidrelétrica Marmelos, em Juiz de Fora (MG), estabeleceu-se como a primeira usina de porte da América do Sul. Foi construída pelo empresário Bernardo Mascarenhas para atender suas tecelagens. A canadense Light começou a operar no Brasil em 1905, atuando na geração e na distribuição no Rio e em São Paulo.

Foi só depois da Segunda Guerra Mundial que as usinas de maior porte, que exigiam grande volume de capital, atraíram a atenção do Estado, dando início à estatização e à nacionalização de empresas privadas. O ciclo se fechou em 1979, com incorporação dos ativos da Light.

Na mesma época, porém, ocorreu outra mudança tecnológica, a termoelétrica de ciclo combinado a gás. Ela deu eficiência a pequenas unidades geradoras, trouxe de volta a competição e iniciou a reforma do setor no mundo rumo a reprivatizações que presenciamos nas últimas décadas.

No caso do Brasil, as privatizações ocorreram em paralelo ao estrangulamento dos recursos públicos após a crise financeira nos anos de 1980.

O novo ciclo de ruptura ainda está em andamento. Trata-se do avanço na tecnologia dos painéis fotovoltaicos e das baterias, acompanhado de redução de custos dos equipamentos. Isto popularizou a produção de energia limpa nas residências –como no século 19, lembra Veiga.

"Em pouco mais de um século, é como se a gente tivesse andado em círculo e voltado ao ponto inicial, com produção privada, descentralizada e muita concorrência."

Erramos: Legenda da segunda foto da abertura deste texto indicava a favela de Heliópolis, e não Paraisópolis. A legenda foi corrigida.