30 anos de privatização

A Folha publica uma série de reportagens especiais em seis capítulos para detalhar o que mudou no Brasil em três décadas de privatizações e concessões de atividades públicas à iniciativa privada. Em todos os setores, os investimentos se multiplicaram, assim como o contingente de brasileiros atendidos por mais e melhores serviços.

30 anos de privatização
Aeroportos

Terminais dão salto, com volume de passageiros e satisfação em alta

Após devolução de unidades, modelo de concessão ainda é visto como desafio por empresas e consultores

Fabio Serapião
Brasília

Aeroporto Internacional de Guarulhos, em imagem de meados da década de 1980 - João Bittar - 21.jan.1985/Folhapress; Movimento de passageiros no saguão de embarque do Terminal 2 do Aeroporto Internacional de Guarulhos - Eduardo Knapp/Folhapress

Passageiro pelos aeroportos brasileiros há mais de 20 anos, o advogado Bruno Espiñeira Lemos se recorda de quando a estrutura em Salvador, de onde viajava semanalmente, não permitia embarcar de terno sem entrar no avião ensopado. Faltava ar condicionado no terminal para conter o calor úmido da capital baiana.

Em Brasília, onde mantém um escritório, a lembrança é da dificuldade com os voos no passado e a facilidade atual em encontrar diversos serviços no terminal enquanto aguarda a viagem.

"Não dá nem para comparar. Antes era algo primitivo, descuidado. Só no voo internacional tinha o freeshop, e a malha nacional era sofrível. Hoje você consegue passar o dia nos terminais", afirma.

As rodadas de concessões de aeroportos começaram em 2011 e a previsão do governo Jair Bolsonaro é que o repasse para a iniciativa privada dos 60 maiores terminais do país, que movimentam 99% dos passageiros, seja concluído em 2024.

Os números mostram que, após uma década, experiências como a de Espñeira são maioria; e que houve melhoria na avaliação dos passageiros sobre a prestação de serviços e a ampliação da infraestrutura aeroportuária.

O percentual dos que avaliam os aeroportos como bons/muitos bons, segundo a Secretaria Nacional de Aviação Civil, saltou de 69%, em 2013, para 92% dos passageiros em 2021.

Dos 17 indicadores avaliados com notas de 0 a 5 na última pesquisa (em itens como infraestrutura, atendimento, serviço e processos aeroportuários), 16 obtiveram média superior a 4.

As concessões tiveram início cinco anos após a crise aérea de 2006, durante o governo Lula (PT), que levou o caos ao sistema às vésperas de grandes eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, que prometiam um novo colapso.

A necessidade de evitar uma exposição negativa no exterior durante os eventos e a falta de capacidade de investimento da Infraero, estatal que até então comandava os aeroportos, pressionaram o governo de Dilma Rousseff (PT) a recorrer ao investimento privado para superar o gargalo aeroportuário.

O resultado foi o início das rodadas de concessão, que até julho deste ano já repassaram à iniciativa privada 44 terminais.

O primeiro projeto foi a construção e operação do aeroporto de São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do Norte, ainda em 2011. Em 2012, foi a vez de aeroportos já em operação, com a concessão de Brasília (DF), Campinas (SP) e Guarulhos (SP). Depois, as de Confins (MG) e Galeão (RJ).

Em 2017, já no governo Michel Temer (MDB), foram quatro concessões e, em 2019, mais 12. Em 2021, a sexta rodada repassou outros 22 aeroportos e a sétima, realizada no último dia 18 de agosto, transferiu 15 terminais e arrecadou R$ 2,7 bilhões.

Principal lote da última rodada de concessões, o que englobava Congonhas (SP) e outros 10 aeroportos, foi arrematado pelo grupo espanhol Aena por R$ 2,4 bilhões. Após a sétima rodada, resta o Santos Dumont (RJ) entre os maiores do país para ser concedido.

Integrantes das empresas, do governo federal e consultores concordam sobre a melhoria dos serviços, mas defendem que mantê-los nesse nível depende de uma atenção do poder público com possíveis adaptações nos contratos, segurança jurídica e resposta eficiente para os casos de devoluções de concessões.

A primeira fase do processo de concessões se deu com as três rodadas iniciais, todas no governo Dilma, com a cessão de seis terminais. São os contratos dessa primeira fase os mais criticados atualmente. São desse período todas as devoluções que precisarão ser relicitadas: Galeão (RJ), Viracopos (SP) e São Gonçalo do Amarante (RN).

Três pontos são citados como problemáticos nos contratos: a participação obrigatória da Infraero, com 49% da operação; outorga fixa; e a necessidade de antecipação de obras, mesmo sem a demanda correspondente. Outro fator, afirmam os players do setor, foi a participação de empreiteiras nos consórcios, interessadas nas obras obrigatórias no modelo anterior.

O atual secretário nacional de Aviação Civil, Ronei Saggioro Glanzmann, afirma que as devoluções são uma consequência desse modelo utilizado nas primeiras rodadas.

"Quem comprou, comprou uma carteira de obras. Ninguém estava preocupado com os 30 anos da concessão. Eles queriam fazer as obras de R$ 2 bilhões ou R$ 3 bilhões. Logo na sequência veio a Lava Jato, e a casa caiu", afirma.

O Galeão tinha participação da Odebrecht; a UTC Engenharia estava em Viracopos; e a Engevix, no aeroporto de São Gonçalo do Amarante –todas alvos de investigações na operação.

Criticada por conta do aparelhamento político e burocracias para realizar contratações, obras e investimentos, a Infraero deixou de participar como sócia obrigatória a partir da quarta rodada, em 2017, no governo Temer.

Sobre a outorga fixa, também abandonada no governo Temer, Glanzmann cita o exemplo do Galeão. Segundo ele, a outorga era de R$ 1,2 bilhão ao ano, enquanto o lucro bruto era de R$ 400 milhões. "Matemática não aceita desaforo e ideologia. Não tem milagre que faça essa conta fechar", diz.

O secretário afirma que os contratos atuais dão liberdade ao concessionário para decidir sobre o momento de ampliação e investimentos.

"Não tem prescrição de investimento pesado, é nível de serviço. Concessionário tem que atingir determinado nível de serviço. Se vai fazer com terminal redondo, quadrado, de um andar, dois ou quantas pontes, ele é que vai definir. A obra é uma consequência, não o princípio da concessão."

Segundo o diretor da FGV Transportes, Marcus Quintella, o avanço na modelagem dos contratos permitiu aos operadores dos aeroportos decidir sobre os investimentos e os gerir de acordo com as necessidades da demanda.

A antecipação das obras deu lugar a gatilhos de acordo com a demanda do terminal.

"A modelagem agora é do operador. Ele está ali gerindo o negócio como outro qualquer. Ele tem formação dos custos e preços. É muito importante que isso prossiga", afirma Quintella.​

Os problemas na Justiça, aliados aos altos pagamentos da outorga fixa, gastos com as obras previstas nos contratos e falhas na previsão de número de usuários tornaram os três aeroportos inviáveis.

O CEO da CCR Aeroportos, Fabio Russo Correa, afirma que será um desafio encontrar uma solução para os casos de devoluções.

A empresa opera 17 aeroportos e foi uma das vencedoras nas últimas rodadas, já com o novo modelo de contrato.

"Temos que ser capazes de fazer esse movimento de retomada dos contratos de maneira muito transparente, respeitando o que está escrito. O mundo inteiro está olhando o Brasil e é nosso papel manter a liderança mundial nesse tema [concessões]."

O presidente da Aneaa (Associação das Empresas Administradoras de Aeroportos), Fábio Carvalho, coloca as relicitações como desafio e cita a avaliação dos investimentos feitos e não amortizados como entrave.

Para ele, é preciso uma saída amigável e justa para o governo, usuários e para quem fez os investimentos.​