O Brasil das várias pandemias

Série de reportagens da Folha mostra um tempo em que as relações sociais, a economia, a expressão de fé, a cultura, a comunicação e o luto foram alterados pela pandemia do novo coronavírus

O barqueiro Flávio da Silva Gadelha, 35, atravessa o rio Acaraú, em Sobral Karime Xavier/Folhapress

Sobral a cidade em que a violência atrapalha a saúde

a cidade em que a violência atrapalha a saúde
Sobral

Em bairro mais populoso de Sobral (CE), moradores lidam com vírus e violência ao mesmo tempo

Com 2ª maior taxa de infectados no país, cidade quer criar programa de saúde mental para famílias atingidas

Dhiego Maia Karime Xavier
Sobral (CE)

A Maria que ficou chora pela Maria que partiu. A que ficou não vê mais graça na vida. A que partiu dizia que a graça está nas coisas de Deus.

Maria Assunção, 55, lamenta há quatro meses a ausência da mãe, Maria da Conceição, 85, uma das mais de 159 mil vidas perdidas para a Covid-19 no Brasil.

Pertencente ao grupo de risco pela idade e por ser hipertensa, Maria da Conceição enfrentou outro problema: a falta de leitos no hospital. Ficou quatro dias em uma UPA [Unidade de Pronto Atendimento] até conseguir uma vaga. Morreu cinco dias depois.

"A minha bichinha não andava, não falava, não comia. Foi tudo tão forte", conta, chorando, a filha Maria Assunção, que teve sintomas leves da doença. A família acha que a idosa foi contaminada pelo neto que não queria usar máscara.

Mãe e filha moravam na rua dr. Thomaz de Aragão, no bairro Terrenos Novos, o mais populoso de Sobral, cidade a 231 km de Fortaleza (CE).

Se estivesse vivo, o médico Thomaz de Aragão (1910-1998), que ajudou a combater nos anos 50 a epidemia de leishmaniose visceral, ficaria triste com a situação da rua que leva seu nome. Ali nenhum morador passou incólume ao coronavírus. Procurados, não quiseram falar com a Folha por causa do luto.

O bairro de 30 mil habitantes era até a quarta (28), o 2º mais atingido pela Covid-19, com 913 casos e 27 óbitos, segundo a Secretaria Municipal de Saúde. Dos 210 mil habitantes da cidade, 7,2% já haviam sido contaminados, a segunda maior taxa de infectados do Brasil, segundo dados de setembro da pesquisa Epicovid.

Até a última quarta-feira (28), o município cearense registrava 314 mortes em suas unidades de saúde.

Sobral, que tem IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) alto, de 0,714, é um polo industrial entre 18 municípios da região norte do Ceará. E, até 2019, a cidade administrada por Ivo Gomes (PDT), irmão de Ciro e Cid Gomes, ocupou a 1ª posição do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) no país.

Maria da Assunção Sabino da Silva, 55, com máscara, na sala de sua casa em Terrenos Novos 2, bairro de Sobral (CE)

Maria da Assunção Sabino da Silva, 55, com máscara, na sala de sua casa em Terrenos Novos 2, bairro de Sobral (CE) Karime Xavier/Folhapress

Os moradores de Terrenos Novos dizem que falta infraestrutura e a presença das forças de segurança no combate à guerra entre facções criminosas, cujas balas perdidas têm matado inocentes.

Uma agente de saúde, que integra a equipe da UBS do bairro, diz que lida diariamente com a violência. "Tem hora que está calmo e, do nada, começam a atirar", diz. E cita o caso do adolescente de 17 anos que morreu atingido por uma bala perdida quando brincava na rua no início da pandemia.

A Folha percorreu de carro o bairro. A recomendação foi manter os vidros abertos e andar em baixa velocidade. No trajeto, muitos pontos de vendas de drogas eram tomados por mulheres que fingiam fazer a unha na calçada. A prefeitura não disse o que tem feito para coibir as facções.

A UBS (Unidade Básica de Saúde) de Terrenos Novos 2, se estruturou para proteger os funcionários dos constantes tiroteios. Cada consultório possui uma saída de emergência que dá acesso a um corredor que leva os profissionais para fora da unidade.

Além da violência, a unidade entrou em colapso quando 94% dos seus 49 servidores foram contaminados e afastados da função no ápice da pandemia. "Tivemos de limitar as visitas às casas e reduzir os atendimentos", conta a gerente da unidade Bruna Oliveira.

A oito quilômetros dali, também na periferia, o projeto de uma enfermeira busca proteger a parcela da população mais vulnerável ao coronavírus: as gestantes e puérperas.

Na Cohab 2, bairro de 9.000 habitantes, Vitória Amaral, 25, usou as videochamadas para substituir as visitas presenciais para monitorar qualquer alteração de saúde nos recém-nascidos.

Uma das monitoradas foi a servidora pública Jordali Matos, 28, que viu seu bebê de 40 dias apresentar sintomas de Covid-19. "A Vitória recomendou que eu o levasse para fazer exames que confirmaram que ele estava contaminado", conta ela, que também foi infectada e se recuperou. O bebê ficou internado por sete dias.

O projeto de monitoramento de gestantes e puérperas de Vitória concorre a um prêmio da Opas (braço da Organização Mundial da Saúde para as Américas) para iniciativas inovadoras contra o coronavírus.

Em Sobral, 3 gestantes e puérperas já morreram de Covid-19 e 139 foram infectadas.

A secretária de Saúde da cidade, Regina Carvalho, reconhece os desafios para conter a pandemia. "É uma cidade movimentada e atravessada por problemas sociais. Era natural ter tantos casos."

Agora, Carvalho quer criar um programa de saúde mental para famílias como a dela, atingidas pela Covid-19. "Sei o que a minha gente viveu porque também senti na pele a falta de leitos", diz ela, que perdeu um irmão.

A ideia, segundo a secretária, é fazer com que os atingidos voltem à vida.

O desafio de Maria Assunção após a morte da mãe, Maria da Conceição, é reativar sua venda de balas, lápis e potes de plástico na rua onde mora em Terrenos Novos.

As reportagens da série O Brasil das várias pandemias contaram com apoio financeiro do Instituto Serrapilheira