Sobre um pedaço de papelão esticado no asfalto, a faxineira Francimeire Martins da Silva, 51, fingia tirar um cochilo. A coberta, desnecessária no calor do sertão, fazia as vezes de travesseiro. Numa sacola, uma garrafa de suco e biscoitos.
Isso era tudo o que ela tinha para enfrentar uma jornada de 12 horas que acabara de iniciar numa noite de setembro, na cidade de Crateús (CE), a 350 km de Fortaleza.
E a faxineira ria. "Chorar não adianta, porque tem que enfrentar isso mesmo", dizia, ao tentar uma posição mais confortável no chão duro.
Passadas as 12 horas de espera, Francimeire cruzaria a rua para pegar uma senha numérica que só seria distribuída aos primeiros 200 da fila –ela ocupava a 5ª posição naquela noite.
A disputada senha garantiria o atendimento ao saque do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) na única agência da Caixa Econômica Federal de Crateús. Francimeire buscava a senha não para ela, mas para o sogro do filho. "Desta vez, não vou ganhar nada. Mas já teve outras vezes que eu ganhei um trocado aqui na fila", conta.
Na frente de Francimeire, sentada, estava a nova amiga de fila Francisca Fernanda Soares, 55. A dona de casa aguardava o amanhecer pelo mesmo motivo: uma senha para outra pessoa. "Estou aqui pelo meu genro que está com o coronavírus e precisa receber o auxílio emergencial", afirmou.
Nem a recomendação de ficar em casa segurou a aposentada Francisca Carlos da Silva, 74. Ela não temeu a aglomeração do local e se arriscou guardando um lugar para o filho "sacar o auxílio do governo". "Ele vai tirar os R$ 600 dele e aí me ajuda", diz.
Wesley Lima, 27, era o 14º da fila, mas cansou de ficar sentado. Ele achou um jeito bem típico de sua terra para enfrentar a espera. Instalou uma rede na calçada e, quando acordado pela reportagem, que queria saber qual atendimento ele buscava, reclamou.
Lima é pedreiro, mas perdeu o emprego na pandemia. Ele deixou Novo Oriente, cidade a 44 km de Crateús, em busca de uma senha para também sacar o auxílio emergencial do governo que, naquela ocasião, era de R$ 600.
O número de brasileiros em busca de uma vaga de trabalho aumentou em 700 mil entre a terceira e quarta semanas de setembro, totalizando 14 milhões de desempregados. O crescimento foi puxado, principalmente, pelo Norte e Nordeste, segundo dados da Pnad Covid.
Por isso, o anúncio do benefício concedido pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido) para aliviar o rombo criado pela pandemia na renda das famílias provocou uma corrida sem precedentes às agências da Caixa, que ficaram sobrecarregadas. Filas e muita confusão foram registradas de norte a sul do país, mas nada se compara a Crateús.
Na cidade cearense, a busca pelo atendimento gerou uma máfia da fila , que já virou alvo de fiscalização da Guarda Civil Metropolitana local.
Funciona assim: pessoas entram na fila, ocupam lugares com objetos pessoais e depois vendem as senhas por até R$ 50. Quem realmente necessita dos serviços bancários acaba pagando porque, naquela agência da Caixa, os atendimentos são feitos com agendamento e levam em média dois dias para acontecer.
As primeiras 90 pessoas da fila não ficam ao relento. A prefeitura instalou tendas que as protegem da chuva e do sol. Os lugares são preenchidos rapidamente e quem chega tarde precisa se virar do lado de fora.
Na noite em que a Folha esteve no local, algumas cadeiras de plástico tinham capacetes guardando os lugares. "Isso é o sinal de que alguém vai vender esses lugares amanhã", disse Francisco Ferreira da Silva, 25, que comercializava café para os madrugadores.
O próprio Francisco afirmou que também recebia o seu "trocado" quando alguém pedia para ele guardar lugar. "Mas nunca cobrei um valor específico, a pessoa paga o quanto pode."
Severino de Souza Gomes, inspetor da Guarda Civil de Crateús, considera a venda de senhas da Caixa um comportamento de "espertalhões que se aproveitam da boa-fé das pessoas para se darem bem".
"Mas estamos coibindo e fiscalizando. Um desses espertalhões foi levado à delegacia", contou o inspetor. "Acredito que essa condução à delegacia fez diminuir a prática."
Gomes disse que mantém uma equipe de guardas-civis no local todas as noites. "Não é algo muito agradável. Mas a falha está no próprio atendimento da rede bancária, que deveria adotar outras medidas mais adequadas."
A Caixa, por meio de sua assessoria de imprensa, disse que os atendimentos agendados, que demoravam até dois dias, seguiram determinação de um decreto da prefeitura.
O banco afirmou ainda que aprimorou seu sistema de atendimento, escalonou os saques do auxílio emergencial e abriu as agências aos sábados - todas essas medidas foram implementadas após a passagem da Folha pela cidade.
Segundo a Caixa, atualmente, todos os clientes que procuram a agência de Crateús são atendidos no mesmo dia, sem necessidade de agendamento e sem limite de senhas.
No Ceará, cuja taxa de desemprego atingiu 12,1%, já foram pagos R$ 12 bilhões em auxílio emergencial. A Caixa não informou, porém, quantos benefícios foram concedidos à população de Crateús.
As reportagens da série O Brasil das várias pandemias contaram com apoio financeiro do Instituto Serrapilheira