O Brasil das várias pandemias

Série de reportagens da Folha mostra um tempo em que as relações sociais, a economia, a expressão de fé, a cultura, a comunicação e o luto foram alterados pela pandemia do novo coronavírus

cadeiras de plástico enfileiradas com capacetes e bolsas em seus acentos. Mulher deitada no chão entre as cadeiras

A faxineira Francimeire Martins da Silva, 51, deitada sobre papelão no chão em fila para pegar senha de atendimento para o saque do auxílio emergencial em Crateús, no Ceará Karime Xavier/Folhapress

Crateús a cidade que dorme no chão pelo auxílio emergencial

A cidade que dorme no chão pelo auxílio emergencial
Crateús

Moradores do interior do CE enfrentam 12h de fila por auxílio emergencial

Grande procura pelo benefício criou 'máfia da fila', com venda de senhas para atendimentos na única agência da Caixa em Crateús

Dhiego Maia Karime Xavier
Crateús (CE)

Sobre um pedaço de papelão esticado no asfalto, a faxineira Francimeire Martins da Silva, 51, fingia tirar um cochilo. A coberta, desnecessária no calor do sertão, fazia as vezes de travesseiro. Numa sacola, uma garrafa de suco e biscoitos.

Isso era tudo o que ela tinha para enfrentar uma jornada de 12 horas que acabara de iniciar numa noite de setembro, na cidade de Crateús (CE), a 350 km de Fortaleza.

E a faxineira ria. "Chorar não adianta, porque tem que enfrentar isso mesmo", dizia, ao tentar uma posição mais confortável no chão duro.
Passadas as 12 horas de espera, Francimeire cruzaria a rua para pegar uma senha numérica que só seria distribuída aos primeiros 200 da fila –ela ocupava a 5ª posição naquela noite.

A disputada senha garantiria o atendimento ao saque do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) na única agência da Caixa Econômica Federal de Crateús. Francimeire buscava a senha não para ela, mas para o sogro do filho. "Desta vez, não vou ganhar nada. Mas já teve outras vezes que eu ganhei um trocado aqui na fila", conta.

Na frente de Francimeire, sentada, estava a nova amiga de fila Francisca Fernanda Soares, 55. A dona de casa aguardava o amanhecer pelo mesmo motivo: uma senha para outra pessoa. "Estou aqui pelo meu genro que está com o coronavírus e precisa receber o auxílio emergencial", afirmou.

Nem a recomendação de ficar em casa segurou a aposentada Francisca Carlos da Silva, 74. Ela não temeu a aglomeração do local e se arriscou guardando um lugar para o filho "sacar o auxílio do governo". "Ele vai tirar os R$ 600 dele e aí me ajuda", diz.

Wesley Lima, 27, era o 14º da fila, mas cansou de ficar sentado. Ele achou um jeito bem típico de sua terra para enfrentar a espera. Instalou uma rede na calçada e, quando acordado pela reportagem, que queria saber qual atendimento ele buscava, reclamou.

Lima é pedreiro, mas perdeu o emprego na pandemia. Ele deixou Novo Oriente, cidade a 44 km de Crateús, em busca de uma senha para também sacar o auxílio emergencial do governo que, naquela ocasião, era de R$ 600.

O número de brasileiros em busca de uma vaga de trabalho aumentou em 700 mil entre a terceira e quarta semanas de setembro, totalizando 14 milhões de desempregados. O crescimento foi puxado, principalmente, pelo Norte e Nordeste, segundo dados da Pnad Covid.

Por isso, o anúncio do benefício concedido pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido) para aliviar o rombo criado pela pandemia na renda das famílias provocou uma corrida sem precedentes às agências da Caixa, que ficaram sobrecarregadas. Filas e muita confusão foram registradas de norte a sul do país, mas nada se compara a Crateús.

Moradora de Crateús é vista no chão em fila por auxílio emergencial; sobre cadeiras, capacetes marcam lugares que serão vendidos por até R$ 50

Moradora de Crateús é vista no chão em fila por auxílio emergencial; sobre cadeiras, capacetes marcam lugares que serão vendidos por até R$ 50 Karime Xavier/Folhapress

Na cidade cearense, a busca pelo atendimento gerou uma máfia da fila , que já virou alvo de fiscalização da Guarda Civil Metropolitana local.

Funciona assim: pessoas entram na fila, ocupam lugares com objetos pessoais e depois vendem as senhas por até R$ 50. Quem realmente necessita dos serviços bancários acaba pagando porque, naquela agência da Caixa, os atendimentos são feitos com agendamento e levam em média dois dias para acontecer.

As primeiras 90 pessoas da fila não ficam ao relento. A prefeitura instalou tendas que as protegem da chuva e do sol. Os lugares são preenchidos rapidamente e quem chega tarde precisa se virar do lado de fora.

Na noite em que a Folha esteve no local, algumas cadeiras de plástico tinham capacetes guardando os lugares. "Isso é o sinal de que alguém vai vender esses lugares amanhã", disse Francisco Ferreira da Silva, 25, que comercializava café para os madrugadores.

O próprio Francisco afirmou que também recebia o seu "trocado" quando alguém pedia para ele guardar lugar. "Mas nunca cobrei um valor específico, a pessoa paga o quanto pode."

Severino de Souza Gomes, inspetor da Guarda Civil de Crateús, considera a venda de senhas da Caixa um comportamento de "espertalhões que se aproveitam da boa-fé das pessoas para se darem bem".

"Mas estamos coibindo e fiscalizando. Um desses espertalhões foi levado à delegacia", contou o inspetor. "Acredito que essa condução à delegacia fez diminuir a prática."

Gomes disse que mantém uma equipe de guardas-civis no local todas as noites. "Não é algo muito agradável. Mas a falha está no próprio atendimento da rede bancária, que deveria adotar outras medidas mais adequadas."

A Caixa, por meio de sua assessoria de imprensa, disse que os atendimentos agendados, que demoravam até dois dias, seguiram determinação de um decreto da prefeitura.

O banco afirmou ainda que aprimorou seu sistema de atendimento, escalonou os saques do auxílio emergencial e abriu as agências aos sábados - todas essas medidas foram implementadas após a passagem da Folha pela cidade.

Segundo a Caixa, atualmente, todos os clientes que procuram a agência de Crateús são atendidos no mesmo dia, sem necessidade de agendamento e sem limite de senhas.

No Ceará, cuja taxa de desemprego atingiu 12,1%, já foram pagos R$ 12 bilhões em auxílio emergencial. A Caixa não informou, porém, quantos benefícios foram concedidos à população de Crateús.

As reportagens da série O Brasil das várias pandemias contaram com apoio financeiro do Instituto Serrapilheira