O pôr do sol tem sido pouco prestigiado em São Tomé das Letras, cidade conhecida pelo misticismo, no sul de Minas Gerais.
Numa tarde de setembro, havia apenas 15 moradores dispostos a ver a despedida do sol na Casa da Pirâmide.
A casa feita de pedra, erguida no alto da montanha, se tornou um cartão-postal quase sem gente na pandemia. É de lá que os frequentadores dizem avistar óvnis à noite, fama que colocou São Tomé na rota do turismo ufológico.
Naquela tarde, o sol foi indo embora ao som de "Vem Ver", hit local cuja letra exalta a energia cósmica da cidade, um ímã para hippies e esotéricos desde os anos 1970.
Mas, agora, o refrão da música ganhou um aviso, digamos, pandêmico.
Após entoarem o verso "vem ver como tá bonito São Tomé", os moradores emendam um "agora, não!". O sol desapareceu sob aplausos e a Folha precisou deixar a cidade que desde o início da pandemia não permite a entrada de forasteiros.
Mas esse isolamento total foi questionado na Justiça, o que abalou a vibe paz e amor dos são-tomeenses pela chegada de turistas e do coronavírus.
Há sete meses o município sacrifica sua economia, totalmente dependente do turismo, ao fechar os seus acessos e o comércio e impedir a entrada de não residentes.
A Folha conseguiu autorização para entrar na cidade porque jornalismo é serviço essencial, segundo decreto do governo federal.
A medida drástica rendeu histórias como a de uma moradora vista escondendo o namorado que não morava em São Tomé no porta-malas do carro. O rapaz foi descoberto e teve sua entrada barrada.
A denúncia partiu de um conterrâneo da motorista. Em São Tomé, os moradores criaram uma espécie de "caça ao turista". É essa rigidez que fez da cidade uma das últimas do país sem casos confirmados e óbitos de Covid-19.
De Minas Gerais, além de São Tomé, constam na lista Botumirim, Camacho, Cedro do Abaeté, Pedro Teixeira e Veredinha; do Paraná, a cidade de Laranjal; e mais duas gaúchas: Cerro Branco e Garruchos. Juntas, elas representam 0,16% das 5.570 cidades brasileiras com população unificada de 38.343, equivalente à do distrito do Cambuci, no centro de São Paulo.
Uma decisão judicial, no entanto, colocou abaixo esse muro de contenção contra o coronavírus por apenas dois dias, mas foi suficiente para virar São Tomé do avesso.
A juíza Fernanda Machado de Moura Leite, da 2ª Vara Cível da Comarca de Três Corações, a 47 km de São Tomé, autorizou a reabertura da cidade, por força de liminar. A decisão atendeu a um pedido de quatro empresários e passou a valer na última quinta (8).
Leite argumentou que São Tomé está na zona amarela, situação em que os serviços não essenciais podem ser retomados com tranquilidade. Porém, segundo a magistrada, a prefeitura vem esquivando-se de "adotar as medidas de retomada gradual, escolhendo 'isolar' a cidade".
"Não há, por ora, dados epidemiológicos locais ou regionais que permitam concluir pela razoabilidade da restrição do acesso à cidade, bem como a não abertura do comércio local", diz.
A decisão judicial, assim que tornada pública, levou parte da população a fazer panelaços e sair às ruas em protesto.
A empresária Benvinda Martorell Iborra, 60, diz que entrou em pânico. "Não temos nenhuma condição de reabrir agora. É o interesse de alguns colocando a vida da maioria da população em risco."
Iborra fechou seus três restaurantes, demitiu cerca de 40 funcionários e, hoje, vive de empréstimos bancários. "Estou endividada, mas consciente de que é o melhor a se fazer agora em nome da coletividade", afirma.
São Tomé não possui estrutura para tratar casos graves de Covid-19 –não tem UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e sempre recorre à vizinha Três Corações, cujo sistema de saúde também está sobrecarregado na pandemia.
A prefeita Marisa Maciel de Souza (PT), reconduzida ao cargo em setembro após ter sido cassada em processo administrativo na Câmara, recorreu da medida judicial de reabertura e obteve parecer favorável do Tribunal de Justiça de Minas Gerais pela volta do fechamento da cidade.
Nenhum turista pode entrar em São Tomé desde a noite deste sábado (10).
Quando a reportagem esteve na cidade, a prefeita havia dito que não queria tomar uma atitude precipitada. E que estudava um plano de reabertura gradual: primeiro, entre os próprios moradores, e, depois, aos turistas.
Mas, nos dias em que a reabertura esteve em vigor, Marisa emitiu um decreto que permitiu o ingresso de visitantes, mas sob regras que não estimulavam aglomerações
Cachoeiras públicas continuaram fechadas e as pousadas que estavam com alvarás em dia funcionaram com 20% da capacidade. Nos cálculos da prefeitura, ao menos quatro pousadas receberam turistas – ao todo, havia 580 leitos disponíveis que atendiam o decreto municipal.
Os turistas só puderam se hospedar em São Tomé com reservas feitas dois dias antes da estadia. Restaurantes seguiram funcionando apenas no sistema delivery.
No meio dessa novela judicial, quem trabalha com turismo e perdeu a renda, tem um alento: uma barraca, no centro, onde é possível pegar alimentos frescos e não perecíveis. O lema do espaço é: quem tem alimento põe, quem não tem tira. "Mais de 200 pessoas estão sendo beneficiadas", estima Edgar Teodoro, um dos 12 voluntários do projeto.
Sérgio Xavier Neto, 28, um dos quatro empresários que pediu na Justiça a reabertura de São Tomé, conta que desde então tem sido vaiado nas ruas e chamado de "genocida", por querer voltar a trabalhar.
Ele diz que, por medida de segurança, deixou a cidade. "Eu estudei uma forma de reabrir a cidade de forma segura e propus isso à prefeitura, mas nada andou."
Neto afirma ainda que também propôs a criação de um sistema online de controle de turistas. "O que também não andou. Por isso, eu entrei na Justiça. Se a vida não voltar, eu vou adoecer." Dono de hostel e de uma cachoeira privada, conta que passou a vender álcool em gel na pandemia.
A prefeita diz que a cidade já passa por capacitação para que, no futuro, muitas pessoas assistam ao pôr do sol, "mas em segurança".
As reportagens da série O Brasil das várias pandemias contaram com apoio financeiro do Instituto Serrapilheira