A aposentada Joana Chagas se veste de branco da cabeça aos pés, incluindo a máscara de proteção com a imagem de uma santa.
Perfumada, se ajoelha diante da TV para acompanhar uma missa a distância. Por causa da pandemia, é a primeira vez em 80 anos de vida que a beata é impedida de ir à igreja de sua cidade. "Tá ruim demais. Tem horas que pelejo para não chorar", diz.
Ela conta que sai da celebração virtual com a sensação de ter comungado. Quando recebem a hóstia das mãos do padre na comunhão, os católicos creem que naquele pão consagrado estão transubstanciados o sangue e o corpo de Cristo. "Sinto falta do calor do povo crendo que Jesus está conosco", diz Joana.
A idosa está reclusa em sua casa em Juazeiro do Norte, a 549 km de Fortaleza (CE), um dos principais destinos do turismo religioso do Brasil.
É ali que homens e mulheres carregam o nome Cícero no RG, em homenagem ao padre a quem devotos atribuem milagres -a Igreja Católica ainda não reconhece os feitos atribuídos ao cearense.
O templo do religioso em Juazeiro do Norte atraía cerca de 2,5 milhões de peregrinos por ano e era, até o início da pandemia, o segundo mais visitado no país, perdendo apenas para o Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida.
Mas hoje, a terra de padre Cícero (1844-1934), está vazia e triste. As romarias foram suspensas desde o início da pandemia. Sem turistas, muitos hotéis e pousadas fecharam e as poucas lojas de artigos religiosos abertas estão às moscas.
A Folha desembarcou na cidade dois dias antes do aniversário de Nossa Senhora das Dores, a padroeira de Juazeiro e dos romeiros, comemorado em 15 de setembro.
A data era uma das mais festivas antes da pandemia, com missas especiais, romarias e eventos ao longo de um mês.
Mas o clima, desta vez, era de velório. A basílica da santa, que também já foi chefiada por padre Cícero, estava reaberta havia 12 dias.
À noite, suas portas eram fechadas para as celebrações realizadas pelo padre com transmissão pela TV e pela internet -recurso também adotado para os festejos da padroeira.
Os poucos fiéis que insistiam em ir à basílica sentavam-se nas escadarias e acompanhavam a missa pelas caixas de som do lado de fora.
Na deserta praça dos Romeiros, na entrada da basílica, a alagoana Maria José Satírito Alves, 64, comemorava sua octogésima viagem a Juazeiro e estava assustada. "Cadê os romeiros? É, certamente, um tempo de reflexão."
Na capela do Perpétuo Socorro, onde estão os restos mortais de padre Cícero, agora há espaço demarcado para se sentar e ajoelhar. Uma faixa de proteção também impede a colocação de objetos, como terços, e que se coloque as mãos no túmulo do padre.
O assistente social Paulo Roberto da Silva, 40, era o único romeiro usando chapéu de palha, uma marca entre os seguidores de padre Cícero, e que levava um rosário nas mãos.
Ele viajou 2.104 km de Mozarlândia (GO) a Juazeiro do Norte para rezar bem próximo de seu "padim Ciço". "Tive a sorte de estar aqui, mas é uma tristeza ver tudo vazio", lamenta.
Para Silva, padre Cícero atrai multidões por seu exemplo de vida. "Ele foi um santo que viveu como nós. Sentiu o sol quente, as epidemias de seu tempo, a seca e a guerra. Num tempo em que se oferecia o inferno, pregava a regeneração."
Na porta da capela, a vendedora de velas Maria das Graças Veras Teixeira, 57, tentava cumprir um lema de padre Cícero: faça de sua casa um lugar de trabalho e oração.
Oração sobra, o que falta é o trabalho, diz. "Tinha dias em que eu perguntava: meu "padim Ciço" o que vou comer amanhã? E ele mandava gente que eu nem conhecia com comida para mim. Minha vida está nas mãos dele."
A duas quadras dali, outro grupo de católicas ensaiava um plano B para manter vivo o culto à Nossa Senhora das Dores, apesar da pandemia. Em parceria com a basílica, uma imagem da santa circulou por Juazeiro em pequenos altares ao ar livre.
Um deles foi montado na calçada da casa de Geraldina de Lima, 92, que diz ter conhecido padre Cícero quando tinha seis anos. "É uma riqueza tê-la aqui bem perto de mim. Vai abençoar a todos nós."
Quem passava de carro pelo local, parava e fazia de longe pequenas orações para a padroeira, um novo costume que ficou conhecido entre os juazeirenses como "drive-fé".
Foram esses pequenos espaços de culto somados a outras ações que recolheram arrecadações que ajudaram a Basílica a não demitir nenhum dos 40 funcionários, diz o padre do local, Cícero José.
No auge da pandemia, a Diocese de Crato, responsável por 57 paróquias em 32 municípios cearenses, incluindo Juazeiro, suspendeu missas e eventos que gerassem aglomerações. Mas o esforço não livrou a cidade do novo vírus.
Dos 276 mil habitantes, 8% já haviam sido contaminados, a maior taxa de infectados do país, segundo dados de setembro da pesquisa Epicovid.
Até sábado (24), 116 pessoas haviam morrido pela Covid-19, segundo a prefeitura.
Se padre Cícero estivesse vivo, usaria máscara, afirma o paraibano Silva. Se o romeiro olhar para o alto, verá que acertou. Na imagem de 30 m de altura do religioso, na colina do Horto, uma máscara encobre parte de seu rosto.
O curioso é que, num lugar majoritariamente católico, quem confeccionou o item de proteção para o monumento, agora reaberto, foram candomblecistas contratados pela prefeitura.
"Ficou o recado: precisamos de espaço, respeito, visibilidade e livre convivência", diz a mãe de santo Herlânia Galdino, 36, de um dos 50 terreiros mapeados na terra de "padim Ciço".
As reportagens da série O Brasil das várias pandemias contaram com apoio financeiro do Instituto Serrapilheira