O Brasil das várias pandemias

Série de reportagens da Folha mostra um tempo em que as relações sociais, a economia, a expressão de fé, a cultura, a comunicação e o luto foram alterados pela pandemia do novo coronavírus

Casais dançam no Forró do Albano na periferia de Fortaleza Karime Xavier/Folhapress

Fortaleza a cidade que trocou corpos na pandemia

a cidade que trocou corpos na pandemia
Fortaleza

Fortaleza vive pós-pandemia antes de mortos descansarem

Capital cearense volta a ter alta de casos de Covid-19 e esquece regras

Dhiego Maia Karime Xavier
Fortaleza

José Valdir da Silva, 50, caminhava pelo chão sem mato aparente de uma área do maior cemitério público de Fortaleza.

Dos dois lados do local onde o administrador do espaço estava, placas azuis informavam nomes e datas de vida. No vazio, restavam ser fixadas as placas de identificação. "Faltou tempo", diz ele.

Sob seus pés, o lugar estava com lotação máxima. Foi esse o terreno usado no Parque Bom Jardim, cemitério da periferia da capital cearense, para o enterro de ao menos 2.000 mortos desde o início da pandemia, em março -a maioria por Covid-19.

Cada sepultura abriga três corpos. Eles ficam sob a terra de três a cinco anos e, depois, são levados para o ossário. Com 26 anos de funcionamento, o Parque Bom Jardim guarda nas sepulturas e nos ossários ao menos 111 mil restos mortais.

O espaço concentra muitos enterros diários porque é público. Mas uma das 2.000 sepulturas do Parque Bom Jardim resume o caos enfrentado por Fortaleza na gestão da crise sanitária, ainda inconclusa.

Ela guarda um erro: uma troca de corpos de pacientes de coronavírus numa UPA (Unidade de Pronto Atendimento) administrada pela secretaria de Saúde municipal.

Das três famílias envolvidas, ignora onde está o corpo que deveria estar ali. As outras duas fi zeram os enterros, mas restaram as dúvidas.

Trabalhador do cemitério Parque Bom Jardim, na capital cearense, mostra onde foram enterrados cerca de 2.000 corpos na pandemia

Trabalhador do cemitério Parque Bom Jardim, na capital cearense, mostra onde foram enterrados cerca de 2.000 corpos na pandemia Karime Xavier/Folhapress

Raimunda de Paula Melo, 90, sofria de mal de Alzheimer e em 13 de maio sentiu falta de ar e perdeu apetite. A neta Sarah Melo, 20, a levou para a UPA do bairro Itaperi, mas a avó morreu em seus braços diante da unidade.

"Comecei a gritar. Uma equipe a pegou de cadeiras de rodas para tentar reanimá-la. Foi a última vez que eu vi o corpo dela", diz.

O corpo foi deixado na sala de reanimação, segundo a neta. A família diz ter saído da unidade pública de saúde sem nenhum registro e sido informada que, no dia seguinte, deveria retornar para identificar e retirar o corpo. "Mas cadê o corpo?", perguntou a neta aos funcionários da UPA. Desaparecera.

No intervalo, outra família havia registrado problemas na identificação de seu familiar. Luís da Silva, 76, morreu de Covid-19 em 14 de maio, um dia depois de Raimunda.

Seus familiares estiveram no local e encontraram no corpo do homem uma etiqueta com o nome de uma mulher. Com o problema relatado, mais quatro sacos com corpos foram abertos até que um filho do idoso, segundo o advogado da família, reconheceu o pai e partiu para o enterro, em Pacatuba, na região metropolitana de Fortaleza.

"Mas ao chegarem da cerimônia, a família foi informada pela UPA que um homônimo do Silva havia sido enterrado no Parque Bom Jardim", diz Thyago Alves de Souza Oliveira, advogado dos Silva.

Os familiares do segundo "Luís" estiveram novamente na UPA e identificaram o corpo tido como o verdadeiro de seu familiar. Só que eles já haviam feito o primeiro enterro. O caso parou na Justiça.

Sob autorização judicial, o segundo enterro foi realizado e, agora, as três famílias aguardam a exumação e exames de DNA para localizar os restos mortais de Raimunda.

A Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza foi procurada pela reportagem, mas não se manifestou. À imprensa local disse que dava "todo o suporte e orientações necessárias para que as famílias solicitem a exumação".

O advogado da família de Raimunda, Valdir Neto, diz que vai ingressar na Justiça com ação de reparação de danos morais porque "o tratamento foi indigno". "Até os animais que morreram em casa foram mais bem tratados que minha vó", diz Sarah.

A troca de corpos espelha a má gestão e a falta de estrutura da capital cearense para responder aos desafios impostos pela pandemia.

A Covid-19 chegou a Fortaleza na sequência do anúncio do caso de São Paulo -oficialmente, o primeiro do Brasil, em 25 de fevereiro.

A cidade é a segunda mais populosa do Nordeste, com quase 2,7 milhões de habitantes, e o hub aeroportuário da região que, antes da pandemia, recebia voos de Madrid, Amsterdã, Cabo Verde e Paris. Hoje, só o trecho internacional para Portugal segue.

Aberta ao mundo, Fortaleza se viu vulnerável ao coronavírus, que colapsou seu sistema público de leitos, impôs lockdown à população e fez vítimas a jato.

A capital cearense figurou de uma hora para outra como o território com a maior taxa de mortalidade por Covid-19 do Brasil. Em meados de junho, a macrorregião de saúde de Fortaleza, com mais três municípios, registrava mortalidade de 564,9 pessoas para cada um milhão de habitantes.

Em agosto e setembro, os casos caíram abruptamente, mas voltaram a subir em outubro.

Segundo boletim epidemiológico do governo do estado, o número de confirmações de Covid em Fortaleza subiu quase 14% em sete dias, chegando nesta sexta (30) a 55.467 casos e 3.973 óbitos.

Show de swingueira atrai centenas de pessoas sem máscaras sob a barraca Sorriso do Sol, na praia do Futuro, em Fortaleza (CE)

Show de swingueira atrai centenas de pessoas sem máscaras sob a barraca Sorriso do Sol, na praia do Futuro, em Fortaleza (CE) Karime Xavier/Folhapress

A principal hipótese é a campanha eleitoral, diz o governo, que causa aglomerações nas principais avenidas. Antes disso, a reportagem da Folha presenciou um "clima de Carnaval" como se a pandemia estivesse acabado.

Na praia do Futuro, uma centena de jovens requebravam ao som das swingueiras sob o teto da barraca "Sorriso do Sol". Sem máscaras e próximos uns dos outros, o único álcool que havia ali era o das garrafas de bebidas.

A 17 km dali, idosos chamegavam no forró do Albano, na periferia de Fortaleza, cujo o salão apertado os mantinha próximos. A máscara no rosto pouco servia quando os casais encostavam as testas ao som de Luiz Gonzaga.

Um dos administradores do forró, Adriano, disse que o lugar "é a única fonte de renda da família, apesar dos riscos". A direção da Sorriso do Sol não se manifestou. Segundo o governo do Ceará, bares e festas ainda estão vetados no estado que já autorizou o retorno de "95% de sua cadeia produtiva".

Foram multadas 194 pessoas que se recusaram a usar máscara. Neste Dia de Finados, os fortalezenses poderão, depois de muitos meses, homenagear seus mortos após a reabertura dos cemitérios. Menos Sarah, os quatro tios e os 16 netos de Raimunda.

O cantor Paulo Benevides, 41, na sala de seu apartamento em Fortaleza (CE)

O cantor Paulo Benevides, 41, na sala de seu apartamento em Fortaleza (CE) karime Xavier/Folhapress

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"Ainda acordo de madrugada pensando que o hospital ligou"

O cantor Paulo Benevides, 41, acumula apresentações em casamentos de luxo no Brasil, nos UA e na Europa. Ele, os irmãos e os pais tiveram Covid-19. O pai morreu após 53 dias na UTI.

Benevides deu um depoimento à Folha.

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Me infectei após ter contato com convidados do casamento da irmã da blogueira Gabriela Pugliesi, que ocorreu na Bahia, em março. A festa foi um dos primeiros focos de contaminação do coronavírus no país.

Estava em São Paulo no dia 14 de março porque cantaria num casamento cancelado na véspera porque muitos convidados haviam estado na cerimônia em Itacaré. Mas eu já tinha me encontrado com alguns.

Ao voltar para Fortaleza, me isolei. Sentindo muita falta de ar, cansaço e dores, parecia uma surra. Depois de mim, meu irmão, minha irmã mais velha e minha mãe foram contaminados. Mas nada foi tão devastador quanto o caso do meu pai.

Ele deu entrada na UTI andando e, 53 dias depois, saiu de lá em um saco para ser enterrado. O meu pai dentro de um saco? Choro muito e esse sofrimento só vai passar quando, numa exumação, puder vê-lo enterrado.

Mas o que me conforta é que fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. Cheguei a doar plasma sanguíneo -fui o primeiro a fazer isso no Ceará. Cerca de 200 ml do meu plasma foram usados num paciente com Covid-19 que estava na mesma UTI que o meu pai. Essa pessoa melhorou e saiu de lá.

Na noite de 19 de maio, nossa família rezava um terço em intenção do nosso pai. A vela acesa na sala se apagou e, no mesmo instante, o hospital ligou dizendo que meu pai havia descansado.

Para a sociedade cearense, o coronavírus matou o professor de engenharia civil Sérgio de Sá Benevides, 74. Para nós, matou o bom pai, o excelente marido e um apaixonado por música que me inspirou a viver dela -ele tinha 3.000 discos e amava Sinatra.

Ainda hoje acordo de madrugada pensando ter perdido uma ligação do hospital. Os pesadelos não passam e eu e meus três irmãos fazemos terapia para processar essa perda. No meu calendário, 2019 salta para 2021. O ano de 2020 foi enterrado.

As reportagens da série O Brasil das várias pandemias contaram com apoio financeiro do Instituto Serrapilheira