A expressão "menos é mais" não se encaixa na área da saúde, sobretudo durante uma pandemia. É preciso ter infraestrutura, de equipamentos de proteção a ventiladores, e profissionais para atender à alta demanda nesse período.
Em João Pessoa (PB), a UBS (Unidade Básica de Saúde) do Grotão, na periferia, precisou lidar de uma hora para a outra com um problema: dos 50 profissionais trabalhando ali, entre médicos, técnicos de enfermagem e agentes comunitários de saúde, 12 foram afastados ou por terem sido infectados pelo novo coronavírus ou por integrarem o grupo de risco.
Isso aconteceu quando os atendimentos por suspeita de Covid-19 não paravam de subir.
No auge da pandemia, muitas UBSs, que funcionam como a porta de entrada aos atendimentos do SUS (Sistema Único de Saúde), entraram em colapso pelo país.
O que fez do Grotão um exemplo a ser seguido foi a forma como ela enfrentou essa redução de equipe. "Foi preciso um cronograma especial para darmos conta do imprevisível", diz o fisioterapeuta Márcio Moreno e Silva, gerente da unidade do Grotão. O novo cronograma exigiu mais horas de trabalho.
A enfermeira Ana Karina Torres, 26, lembra que, durante algumas semanas, foi preciso dizer não para pessoas que não tinham sintomas graves ou suspeita de Covid-19, já que só metade dos profissionais estava atendendo.
"Eu era xingada cotidianamente porque os pacientes que chegavam, muitos deles numa situação mais tranquila, queriam ser atendidos no mesmo dia. Mas o nosso esforço ali era dar conta dos casos de Covid-19 e de outras doenças mais graves", afirma.
Torres diz também que faltou equipamentos de proteção na UBS, como o capote, um tipo de jaleco importante usado pelos profissionais.
No dia em que estava sem o equipamento, a enfermeira conta que viveu uma situação que a deixou em pânico. "Eu estava colhendo o sangue de um paciente para fazer o teste de Covid-19. Só que num dado momento, fui apertar o dedo dele e o sangue espirrou com força no meu braço. O teste dele deu positivo e, por muita sorte, eu não peguei o vírus", diz.
O número reduzido de profissionais também impactou o principal trabalho da unidade: as visitas feitas de casa em casa pelos agentes de saúde.
Essas visitas são importantes para monitorar o estado de saúde dos moradores. Na pandemia, esse contato serve para saber se as famílias têm condições de fazer o isolamento social e para identificar pessoas do grupo de risco.
"Mas as famílias se fecharam às nossas abordagens por medo de contágio", diz a agroecóloga Maria do Carmo de Amorim, 47, responsável por desenvolver práticas interativas na rede municipal de saúde.
Para furar essa blindagem, Ela então fez uma vaquinha e conseguiu dinheiro para produzir máscaras para as pessoas que não tinham e assim conseguir entrar nas casas.
A costureira Maria José Soares Costa, 61, que vive no Grotão, confeccionou 600 das quase 2.000 máscaras distribuídas. "Foi muito gratificante. Com meu trabalho ajudei as agentes de saúde a terem contato com as famílias", fala.
Com as visitas retomadas, foi possível criar um banco de dados e monitorar as suspeitas de Covid-19 no local. Essa coleta de dados mostrou que. em média, de quatro a seis pessoas moravam em casas de até dois cômodos.
Também foram cadastrados todos os moradores assintomáticos e os com diagnóstico positivo de Covid-19. Os doentes foram sendo monitorados por meio de um aplicativo de mensagem, conta o médico André Bonifácio.
"A Covid-19 é essencialmente uma doença da atenção primária. O que fizemos foi usar a nossa expertise para monitorar e isolar todos os casos nas condições possíveis do território", afirma.
A UBS criou um código para monitorar os casos de Covid-19 por meio de mensagens. Respondia com o número 1 aqueles que estivessem melhorando; com 2, quem apresentava alguma alteração no quadro de saúde; e 3, aqueles que sentiam uma piora –estes então recebiam telefonemas dos médicos.
O trabalho da UBS do Grotão concorre a um prêmio da Opas (braço da Organização Mundial da Saúde para as Américas) para iniciativas eficientes contra o coronavírus.
O Grotão acumula 171 casos e oito mortes por Covid-19. Já a capital paraibana tem 31.826 registros e 971 óbitos, segundo dados da Secretaria de Saúde de João Pessoa.
Entre as pessoas que perderam a vida está o pastor Raimundo Pereira Lima, 57, que comandava uma igreja de ao menos cem fiéis no bairro. Sua mulher, Maria de Fátima de Oliveira Lima, 49, diz que o marido continuou a comandar os cultos, apesar dos riscos. "Toda a nossa família pegou, mas só ele Deus levou. Era para ser assim, né?"
A UBS do Grotão responde com flores, ervas medicinais e plantas ornamentais à pressão da violência que sofre.
Na pandemia, por exemplo, a unidade precisou fechar três vezes por tiroteios entre grupos rivais ou em operações de busca da polícia.
A entrada da unidade parece um quintal de vó. No canteiro, plantas como cavalinha, amora e penicilina crescem com plaquinhas que informam para quais tratamentos elas são indicadas.
Na rua da UBS, um grupo de mulheres transformou pneus em vasos de plantas, que tomaram o canteiro central e expulsaram um lixão. A meta agora da agroecóloga Amorim é revitalizar a fonte usada no bairro como área de lazer – atualmente tomada por lixo e até porcos.
As reportagens da série O Brasil das várias pandemias contaram com apoio financeiro do Instituto Serrapilheira