Era meio-dia de 25 de agosto e a família Rodrigues rezava por Antônio Izabel, 78, cujo quadro de saúde só piorava.
O idoso batalhava para não perder a luta para a Covid-19 fazia uma semana no Hospital Regional de Betim, cidade da região metropolitana de Belo Horizonte. Naquele dia, os rins dele entraram em colapso e, na sequência, uma parada cardíaca fulminante paralisou o coração.
A batalha de Antônio pela vida terminou por volta das 12h30 no meio da corrente de oração que, feita de forma remota, atraiu uma centena de amigos.
Antônio morreu no mesmo horário e no mesmo dia em que se completava um ano e sete meses da maior tragédia ambiental do Brasil, que criou na cidade dele um clima de tristeza permanente.
No calendário, 25 é um dia de dor e protestos em Brumadinho, cidade também localizada na Grande Belo Horizonte.
Foi nesse dia do mês de janeiro de 2019 que 270 pessoas foram engolidas pelo tsunami de lama formado após o rompimento da barragem Córrego do Feijão, da Vale.
De lá para cá, ainda restam "11 joias" desaparecidas, forma como as famílias das vítimas nomeiam seus entes queridos que estão sob a lama.
Não é preciso entrar na cidade para notar o clima mórbido. Fotos das vítimas estão fixadas no letreiro de cimento branco com o nome da cidade junto a mensagens, cruzes e corações.
A chegada da pandemia do novo coronavírus é a mais nova cacetada, diz a advogada Claudiana Izabel de Menezes Silva, 33, uma das nove filhas de Antônio. "Meu pai já havia perdido dois sobrinhos, um cunhado do primeiro casamento dele e o noivo de uma prima no rompimento da barragem. Agora, entrou nessa nova estatística", diz, chorando. "Não conseguir ver o meu pai morto foi a maior tristeza da minha vida."
Brumadinho já vivenciava, desde a tragédia ambiental, um protocolo desolador que entrou no cotidiano do mundo pandêmico: enterros sem velório com caixão lacrado.
É essa despedida pela metade que, segundo os familiares das vítimas da barragem da Vale, fez aumentar o sentimento de dor coletiva.
Antônio era uma "instituição" da cidade, segundo a filha. Tinha o apelido de "Antônio Barbeiro" por ter exercido o ofício por décadas. Ao montar um tradicional bar-mercearia, criou um point na cidade.
O lugar, frequentado por políticos e equipes de cinema, ficou sob a responsabilidade de um dos filhos. E permanecerá aberto até a última gota de cachaça sair de uma das garrafas compradas pelo patriarca dos Rodrigues.
O barbeiro costumava escrever bilhetes para si mesmo para expurgar a dor que sentia. Num deles, achado pela família em sua carteira, escreveu que nunca se esqueceria dos cinco filhos pequenos que perdeu quando eles ainda eram crianças.
Em outro, escrito já na pandemia e endereçado ao neto caçula, Rafael,3, pediu: "Deus é poderoso e não vai deixar essa doença [Covid-19] pegar em ninguém da minha família".
Antônio não teve sorte. Morreu pela temida doença e a mulher, Neuza, 66, três filhos e mais um neto também foram infectados. A viúva ficou assintomática, mas hoje trata das dores nas pernas, uma possível sequela da Covid-19.
"A situação foi tão rápida: a gente se despediu no almoço do dia dos pais. Ele piorou dali para frente e morreu. E minha mãe e meus irmãos tiveram que ficar isolados", lembra Claudiana.
Brumadinho está na região mais afetada pela Covid-19 em Minas Gerais, segundo a Secretaria de Saúde do estado. A cidade de 40 mil habitantes acumula 2.813 casos confirmados da doença para cada 100 mil habitantes –em Belo Horizonte, essa taxa é de 1.749 casos por 100 mil pessoas, segundo a Brasil.IO. A plataforma contabiliza números da doença a partir de boletins das secretarias de saúde.
Em números absolutos, Brumadinho registrou 1.133 casos de Covid-19 e 14 óbitos até a manhã desta quarta (14).
O município seguiu o mesmo script das pequenas cidades brasileiras nesta pandemia. Fechou seus acessos, interditou pontos turísticos e ergueu um hospital de campanha para tratar os infectados pelo coronavírus.
Inhotim, o museu a céu aberto de arte contemporânea localizado em Brumadinho ainda está fechado –a previsão é de reabrir no início de novembro. Cerca de 84 funcionários do espaço foram demitidos na pandemia.
Mas, além de fechar a cidade e aprofundar o clima de tristeza, o coronavírus causou outro baque: interrompeu as buscas às últimas vítimas desaparecidas no rompimento da barragem da Vale.
O Corpo de Bombeiros de Minas Gerais suspendeu os trabalhos em 21 de março, quando um dos militares que atuava na região se contaminou. O bombeiro de Brumadinho foi o primeiro a ter Covid-19 entre os 5.500 militares da corporação mineira.
Para não colocar a operação em risco, as buscas só foram retomadas em 27 de agosto.
Com megamáquinas que revolvem a lama –que é empilhada, seca e vira montanhas de terra–, os bombeiros não precisam mais dos cães farejadores, por causa do estado dos corpos. "Não há mais a possibilidade de achar um corpo inteiro. Estamos encontrando, no momento, apenas partes", diz o major Bruno Barbosa de Menezes, líder da operação.
O portão de acesso à área onde hoje as buscas são realizadas, na comunidade Córrego do Feijão, virou um ponto de concentração de turistas aficionados por lugares trágicos e mórbidos. No local, além de excursões, já houve até celebração religiosa de casamento, segundo a equipe de segurança.
A engenheira civil Joseani Melo, 39, uma das funcionárias da Vale que sobreviveu à tragédia porque estava de férias, diz que a empresa é também uma das responsáveis pela explosão de casos de Covid-19 em Brumadinho. Ela perdeu a irmã e cinco colegas.
"De uma hora para outra, a população de Brumadinho inflou. São cerca de 5.000 a 7.000 homens de outros estados nos canteiros de obras de reparação ambiental", diz ela, que é uma das coordenadoras da Avabrum (entidade formada por familiares das vítimas da barragem da Vale).
Em nota, a Vale não revela o número de trabalhadores infectados pelo coronavírus, e diz que as frentes de obras da reparação foram mantidas, por serem emergenciais ou de segurança. E diz que os funcionários são submetidos a cuidados para prevenir o contágio.
Para a família Rodrigues, o alento foi seguir uma tradição deixada por Antônio. Acima de uma gôndola de produtos da mercearia do idoso, colocaram uma faixa dizendo: "Você foi o melhor esposo, pai e avô do mundo. Obrigado por tudo o que nos proporcionou".
As reportagens da série O Brasil das várias pandemias contaram com apoio financeiro do Instituto Serrapilheira