O avanço na mortalidade por doenças crônicas não é o único alerta no sistema de saúde.
Com a queda nas taxas de vacinação, o Brasil tem visto crescer nos últimos meses o risco de ressurgimento de doenças transmissíveis até então consideradas eliminadas -ou que estavam nesse caminho.
É o caso do sarampo. Dois anos depois de ter recebido certificado que atestava sua eliminação, dados do Ministério da Saúde já apontam mais de 1.420 casos confirmados.
O número é pouco maior do que o país havia registrado em 1999, dois anos antes do fim da transmissão local.
Para o epidemiologista Pedro Tauil, da UnB, esse avanço já era esperado devido à queda na cobertura vacinal e à ocorrência de surtos em outros continentes, como Europa, e países, caso da Venezuela.
Em 2017, a cobertura de vacinação de crianças atingiu o menor índice em mais de 16 anos, conforme mostrou a Folha em junho.
"Você vê que a doença entrou facilmente porque encontrou uma população que não estava vacinada", afirma Tauil. Segundo ele, a situação mostra que o Brasil vive um cenário hoje mais complexo em termos epidemiológicos -e com forte risco de retrocesso também em relação a outras doenças caso descuide de políticas de controle.
O alerta é reforçado por outros especialistas. Isso porque, ao mesmo tempo em que o país se divide entre a permanência de velhas ameaças e o risco de ressurgimento de outras até então eliminadas, novos fatores como a maior circulação de pessoas elevam a chance de entrada de novas doenças -o que pode sobrecarregar ainda mais a rede de saúde.
"Vemos o ressurgimento de doenças que eram consideradas resolvidas ou superadas, além do surgimento de outras que não estavam no quadro", afirma Cláudio Maierovitch, sanitarista da Fiocruz Brasília.
É o caso de arboviroses como zika, chikungunya e febre oeste do Nilo, que passaram a circular no país nos últimos cinco anos.
Já entre os desafios conhecidos e sob risco de aumento, Maierovitch cita como exemplo a malária, doença que, após atingir o menor número de casos em 37 anos, voltou a crescer no país em 2017.
Naquele ano, foram 193 mil casos, um aumento de 50% em relação a 2016. Neste ano, só de janeiro a maio, já são mais de 92 mil. A situação ameaça o plano de eliminação da malária, firmado em 2015 e previsto para ser concluído até 2030.
"É uma doença que provavelmente cresceu pela redução nas ações de controle."Alerta semelhante ao que atualmente ocorre com a febre amarela. Em 2017, o país teve recorde de casos confirmados e mortes pela doença. Neste ano, o total de registros se manteve em alta -foram pouco mais de 1.260 de janeiro a maio.
A taxa de vacinação, porém, ainda é considerada baixa: 57,5%, de acordo com dados do Ministério da Saúde.
Diretor de doenças transmissíveis do ministério, Renato Alves admite o desafio. Para ele, dados indicam que, além da dificuldade em manter a vacinação, há um novo padrão de transmissão.
"Até então, o país produzia nos anos de grandes surtos cerca de 30 a 40 casos. Mas chegamos nos últimos dois verões a cerca de 4.000 casos. Embora não tenhamos dúvida de que a febre amarela ainda ocorre apenas em âmbito silvestre, ela alcança uma magnitude nunca vista", afirma.
Agora, resta ao país aumentar a vacinação na tentativa de evitar novos casos."Em uma doença como o sarampo, vemos que a vacinação de uma parcela já gera uma proteção de grupo. Na febre amarela, como a transmissão é por um vetor, isso não ocorre", diz, referindo-se aos mosquitos Haemagogus e Sabethes, que transmitem a doença.
"Temos que vacinar todas as pessoas que podem se expor se quisermos evitar novo surto porque nada nos garante que não vai ter uma transmissão no próximo verão", alerta.
GLOBALIZAÇÃO DIFICULTA CONTROL DE SURTOS E EPIDEMIAS
Ainda segundo Alves, o avanço na globalização, as mudanças na ocupação dos espaços, com mais pessoas vivendo perto de áreas de mata, e a manutenção de condições inadequadas de saneamento são fatores que pesam no atual controle de surtos e de epidemias.
"Apesar de vivermos um cenário de transição epidemiológica, vemos que outros fatores começam a ser contabilizados", diz. "Isso acaba permitindo ou a emergência ou reemergência de doenças transmissíveis, inclusive onde o desenvolvimento foi alcançado."
Maierovitch concorda. "Vemos que os indicadores vão ficando melhores e as pessoas vivem mais, mas o quadro se torna mais complexo. Isso exige melhor formação e sistema de saúde que talvez não seja tão homogêneo", sugere.
Para ele, a entrada de novas doenças nos últimos anos leva à necessidade de aumentar a capacitação de profissionais de saúde para identificar os casos e de reorganizar as ações de controle conforme o cenário de cada região.
"É o mesmo que ocorre com a malária. Quando falamos em controle, a maioria das pessoas pensa no mosquito. Mas a principal forma é tratar os casos. Se consigo tratar mais rapidamente todas as pessoas, interrompo a transmissão em um tempo mais curto", diz.
Também é preciso aumentar as ações de vigilância, mantendo políticas continuadas e não apenas em emergências, aponta.
"Não podemos deixar para fazer uma campanha só quando indicadores estão aumentando. Se uma doença perde a prioridade, volta a crescer." A máxima vale para epidemias como a dengue, zika e chikungunya.
Segundo Tauil, da UnB, embora tenham registrado queda no total de casos nos últimos dois anos, essas doenças podem voltar a crescer.
"A redução era esperada, decorrente de uma imunidade de rebanho. Daqui a dois ou três anos, volta tudo outra vez. Quando aumenta o numero de pessoas suscetíveis, vem novamente a doença", avalia. "Enquanto não tivermos vacinas eficazes para essas doenças e eliminação do mosquito, não tem jeito."