A congolesa Mireille Muluila, 40, trabalhava como funcionária pública quando a guerra civil que assola o país desde 2011 chegou à sua cidade, em setembro de 2014. Largou tudo e veio sozinha para o Brasil, onde sua irmã já estava havia meses.
Sem falar português e sem entender os hábitos, a cultura e a burocracia locais, fez como a irmã: procurou a Cáritas Arquidiocesana, organização humanitária da Igreja Católica que trabalha com imigrantes e refugiados no Brasil desde 1956.
No centro de acolhimento instalado numa casa no bairro do Maracanã (zona norte do Rio), ela recebeu ajuda com a documentação e foi encaminhada a uma unidade de saúde para diagnosticar e tratar um problema de visão.
Mas a conversa com os agentes de saúde não era fácil. Ela falando francês; os profissionais falando português; e as queixas e orientações se perdendo pelo caminho.
"Ainda dei sorte que a médica tinha boa vontade e traduzia a conversa pelo aplicativo do celular", conta Mireille, que aprendeu português na Cáritas e hoje fala com sotaque.
Assim como aconteceu com Mireille e sua irmã, a Cáritas é a porta de entrada para muitos imigrantes que chegam ao Brasil sem conhecer ninguém e sem saber o que vão encontrar.
Já passaram por ali aproximadamente 15 mil pessoas desde sua fundação no Rio de Janeiro em 1976. Em 1992, a organização humanitária tornou-se parceira do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) no país.
De acordo com os dados do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), órgão coordenado pelo Ministério da Justiça, no Brasil houve mais de 33 mil solicitações de refúgio em 2017. Em 2018 os números já ultrapassam os 10 mil pedidos.
A Cáritas focava o trabalho principalmente no apoio jurídico para regularização dos documentos dos estrangeiros. Nos últimos anos, com a mudança nos perfis migratórios, passou a se concentrar também no atendimento médico e estabeleceu uma parceria com a Secretaria Municipal de Saúde.
O maior nó era a dificuldade que os estrangeiros tinham para se comunicar com os agentes de saúde. "Existe um interesse e uma preocupação das equipes em garantir o atendimento dos estrangeiros.
Mas, na prática, se não houver uma sensibilização e capacitação dos profissionais, tem-se entraves para ao acesso dos refugiados à saúde", diz Débora Alves, coordenadora de integração da Cáritas.
O projeto atual consiste em treinar primeiro os profissionais das unidades municipais de saúde que mais atendem aos recém-chegados. De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, o maior fluxo está concentrado na zona norte da cidade, nos bairros da Maré, Vigário Geral e Méier.
Os médicos, enfermeiros e gestores que trabalham nesses pontos recebem materiais informativos e participam de debates e palestras sobre as diferenças culturais e questões de saúde específicas dos países de origem dos pacientes.
Segundo Bárbara Ingenito de Oliveira, responsável técnica da Policlínica Hélio Pellegrino, localizada na Tijuca (também na zona norte) e uma das unidades de referência para estrangeiros, há ainda uma preocupação em designar médicos ou enfermeiros que falem o idioma dos pacientes. "Essa ação preparou os servidores para o atendimento das pessoas que, além de falarem outra língua, vêm de culturas diferentes", afirma.
O médico de saúde da família Rodolfo Rego Deusdara, que atende na policlínica desde 2014, conta que, no início, existia um receio das equipes sobre como seriam os atendimentos. "Não sabíamos como seria a formação do vínculo com os pacientes por causa da barreira da língua."
Para ajudar o contato, a Secretaria de Saúde lançou em 2015 uma caderneta do usuário em três idiomas (francês, espanhol e inglês). Assim, os médicos conseguem acessar com mais facilidade um breve histórico de exames, remédios e atendimentos.
A venezuelana Maria Gabriela Moreno Pontes, 30, não conhecia o Brasil e não falava português quando chegou com a família em outubro do ano passado. Estava grávida de oito meses. Segundo ela, havia o risco de perder o bebê por desnutrição. Por causa do programa, foi encaminhada para a Clínica da Família Heitor Beltrão, na Tijuca.
O resultado é o primeiro brasileiro da família, um menino de sete meses que acompanha a mãe nas aulas de português na Cáritas.
Na sede da Cáritas, são organizadas campanhas de vacinação contra doenças como sarampo, poliomielite e febre amarela, e disponibilizados serviços de orientação sobre prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e métodos anticoncepcionais.
E é ali que trabalha a congolesa Mireille, contratada pela instituição desde 2015 para ajudar imigrantes como ela a se adaptarem ao país. "Apesar de haver várias nacionalidades, eu tenho facilidade em lidar com a situação, porque sou igual a eles", completa.
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*Esta reportagem foi produzida pela equipe do Programa de Treinamento em Jornalismo de Saúde, patrocinado pela Roche.
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Fotos do caderno são de Lalo de Almeida
Nascido em São Paulo em 1970, Lalo de Almeida é fotógrafo da Folha e colaborador do jornal The New York Times. Em 2017, foi premiado pelo World Press Photo pelo ensaio das crianças com microcefalia, vítimas do vírus Zika.