Cláudia, 58, sorri enquanto assiste TV deitada em um sofá de tecido desgastado. Ela e outras nove mulheres vivem desde março deste ano na Casa Alegria, em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.
A moradia é uma das residências terapêuticas que fazem parte da Rede de Atenção Psicossocial do município. Nelas, pacientes que tiveram longos períodos de internação em hospitais psiquiátricos tentam reconstruir seus laços afetivos e a referência familiar e recuperam a cidadania.
O programa, ligado à Secretaria Municipal de Saúde, conta com mais de 30 unidades básicas de saúde (UBS), nove centros de atenção psicossocial (Caps) e oito residências terapêuticas, além de um pronto-atendimento para pacientes em crises ou estado alterado de consciência. Inclui também oficinas, como marcenaria e costura, e atividades ao ar livre.
A rede virou modelo nacional de atendimento de saúde mental. Criada na década de 1990, segue as diretrizes da reforma psiquiátrica, que prevê o uso moderado da internação, a terapia e a reinserção do indivíduo na sociedade.
O diferencial em relação aos demais municípios é que o ingresso do paciente ocorre em qualquer estabelecimento da rede. Os psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais acompanham todo o atendimento e auxiliam os médicos generalistas do SUS (Sistema Único de Saúde).
São assistidos desde casos leves e moderados até os mais graves, como os egressos de instituições psiquiátricas, diagnosticados, em sua maioria, com deficiência mental e esquizofrenia.
De acordo com a psiquiatra e coordenadora técnica do programa, Cíntia de Azevedo Marques, a equipe acompanha todas as etapas. "Os casos leves e moderados têm atendimento diurno.
Nos casos mais graves, o acompanhamento é mais intenso; o paciente é medicado, faz terapia e abordagem familiar", ela explica. "Quando melhora, passa a ir de uma a duas vezes por semana ao Caps, e, depois, vai ser atendido na UBS. Se piorar, volta a ter acompanhamento dia e noite."
A maioria dos pacientes que foram internos nos antigos manicômios por muito tempo perdeu o vínculo familiar e tem dificuldade para falar. "Recebemos pessoas que foram internadas ainda de chupeta", afirma a psicóloga Deise Kuroiwa, coordenadora administrativa da rede.
Mas a condição debilitada não impede o contato. Muitos buscam no tato ou por meio de gestos dizer o que não conseguem expressar em palavras. Cláudia (todos os nomes foram trocados) desvia os olhos da TV e faz um coração com as mãos para a funcionária que a trouxe para a Casa Alegria.
Sandra, 61, foi levada ainda jovem pelos pais à Clínica Psiquiátrica Salto de Pirapora, no interior de São Paulo. Desde então, não sabe o paradeiro do filho, que era pequeno na época de sua internação.
Quando perguntada sobre como era viver naquele hospital, seus olhos se enchem de lágrimas. Diz estar mais feliz agora na casa, onde "pode comer comida boa".
Assim como no caso de Sandra, a internação pelos próprios familiares é recorrente. A sensação de abandono agrava ainda mais o quadro, dificultando a reinserção social.
Para Rodrigo Fonseca Martins Leite, psiquiatra e coordenador ambulatorial do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, existe um estigma muito grande associado a ter um transtorno psiquiátrico. "A possibilidade de saírem dessa condição e voltarem a ter autonomia, cuidarem de si próprias e de suas casas é fundamental para o tratamento", explica.
O convívio nas novas casas ajuda a recuperar as referências familiares, e muitos criam laços afetivos com a equipe. "Aqui somos uma família", diz Elizete Borges de Oliveira, 42, cuidadora da Casa Vida, onde vivem dez homens.
De acordo com o secretário de Saúde de São Bernardo do Campo, Geraldo Reple Sobrinho, o sucesso da rede, que existe há mais de 15 anos, deve-se à parceria entre a Faculdade de Medicina do ABC e a secretaria.
Segundo ele, o orçamento municipal para o setor atinge R$ 1 bilhão por ano. "A rede recebe, inclusive, pacientes de outros municípios, que vêm buscar nosso atendimento diferenciado", afirma.
No Brasil, entre 2008 e 2018, mais de 2,5 milhões de pessoas foram internadas pelo SUS em decorrência de transtornos mentais, como dependência química, esquizofrenia, deficiência mental ou demência. A enfermidade psíquica que mais registrou internações nos últimos dez anos foi a esquizofrenia, com mais de 900 mil casos.
A psicóloga Deise Kuroiwa afirma que o diagnóstico de esquizofrenia é demorado e que a maioria dos pacientes não recebe o tratamento adequado. Além disso, muitos profissionais têm preconceito.
"Eles sofrem com a exclusão dentro e fora dos hospitais. As pessoas têm medo e se afastam. Entender os problemas relacionados à doença é o primeiro passo para buscar soluções para o atendimento desses pacientes", explica.
Programa de atenção à saúde mental de São Bernardo conta com 438 profissionais e mais de 16 mil atendimentos por mês
Unidade Básica de Saúde (UBS) - 34 unidades
Pacientes com transtornos mentais leves são tratados na unidade básica; os casos mais graves são encaminhados aos Caps
Centro de Atenção Psicossocial (Caps) - 9 centros
Os pacientes são encaminhados pela rede municipal de saúde ou atendidos por demanda espontânea; as equipes traçam um projeto terapêutico específico para cada paciente
Pronto-atendimento (PA) - 1
Dispõe de 16 leitos para atender pessoas com delírios, alucinações ou distúrbios de comportamento que possam causar risco a si próprias ou aos demais
Unidade de Acolhimento Transitório (UAT) - 1
Acolhimento temporário (máximo de 6 meses) para pessoas em situação de vulnerabilidade e usuários de álcool e drogas
Residências Terapêuticas (RT) - 8 residências
Moradias destinadas a pessoas que tiveram longos períodos de internação em instituições psiquiátricas e podem reconstruir seus laços familiares e se reabilitar socialmente; as residências são divididas em masculinas e femininas e cada uma tem capacidade para dez moradores
Nutrarte (Núcleo de Trabalho e Arte)
Destinado a pacientes encaminhados pelos Caps, propõe oficinas para o desenvolvimento de habilidades manuais e a geração de renda
Remando para a vida
Programa terapêutico de promoção de esportes aquáticos (como caiaque e stand-up paddle) para pacientes com recomendação de prática de atividades físicas
Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de São Bernardo do Campo
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*Esta reportagem foi produzida pela equipe do Programa de Treinamento em Jornalismo de Saúde, patrocinado pela Roche.