Victorios Shams começou a atuar pra valer como repórter em meio a tiros e bombas. Formado em ciência política, o sírio só havia trabalhado com jornalismo de modo esporádico até então.
Mas quando a guerra que se arrasta até hoje explodiu em sua cidade natal, Daraa, em 2011, ele pegou uma pequena câmera e passou a registrar conflitos e protestos em fotos e vídeos.
Conhecida pelas majestosas ruínas romanas até uma década atrás, a cidade no sul do país foi o berço do levante sírio. Em março daquele ano, a prisão de um grupo de adolescentes que pichou frases contra o regime nos muros de uma escola intensificou a insatisfação da população com os métodos autoritários do ditador Bashar al-Assad e com a crise econômica, resultando numa guerra civil que já matou pelo menos 380 mil pessoas.
No comando da Síria desde 2000, Bashar sucedeu seu pai, Hafez, que já havia permanecido no poder por três décadas. O conflito entre as tropas da ditadura e variados grupos de oposição se arrasta há quase dez anos e não tem data pra acabar.
Victorios não estava na região nas semanas iniciais de confrontos. Morava em Beirute, no Líbano, e decidiu retornar a Daraa em setembro de 2011 justamente para acompanhar os combates que se tornavam cada vez mais violentos.
Ligado a grupos de esquerda historicamente contrários a Assad, Victorios havia participado de protestos antigoverno nos anos anteriores, o que o deixou marcado como "persona non grata" para parte das tropas do regime. Ainda assim, resolveu arriscar.
De acordo com ele, pelo menos 20 mil soldados do Exército sírio ocupavam Daraa nesses meses finais de 2011, e só cinco ou seis jornalistas se atreviam a permanecer lá. Os homens de Assad agiam com método: cortavam água, luz e telefone de toda a área urbana para atacar os rebeldes ao longo de 12 horas, sempre das 5h às 17h.
As fotos e os vídeos de Victorios eram publicados em páginas de grupos locais nas redes sociais. Ele fazia uma espécie de jornalismo comunitário, que ganhava visibilidade muito maior quando repercutido por grandes canais de TV do Oriente Médio, como Al Jazeera (Qatar) e Al Arabiya (Emirados Árabes).
As batalhas diárias ensinavam o ofício de repórter de guerra a Victorios, até que veio o grande susto. Em 27 de outubro de 2011, enquanto tirava fotos da movimentação das tropas, ele passou a ser perseguido por soldados e levou um tiro no pé esquerdo. A câmera quebrou, assim como os seus óculos.
Apesar do ferimento e da visão comprometida, conseguiu pegar emprestada uma bicicleta para fugir e, pedalando só com a perna direita, chegou à sua casa. Nunca teve tanto medo de morrer como naquele dia.
Durante a entrevista à Folha, no apartamento do amigo Fabio Bosco, em São Paulo, onde vive hoje, Victorios rememora o sufoco que passou, mas tempera as lembranças com humor.
"Se eles atirassem contra Israel tudo aquilo que atiraram contra mim, acabariam com Israel", brinca ele, hoje com 45 anos. "'Tudo isso pra mim?', eu me perguntava."
Com o pé ferido, Victorios foi, então, levado por um tio até a casa de um médico. "Ir a hospitais seria perigoso porque todos estavam sob controle dos homens de Assad. Eles me matariam, especialmente sendo um jornalista", conta.
O médico, que também estava sob perseguição, recomendou de modo enfático que o repórter deixasse o país. Foi o que Victorios tentou fazer obsessivamente a partir de então, mas havia um entrave, a falta de passaporte. Seu documento havia sido levado por membros do governo que tinham invadido sua casa em Daraa logo no início dos conflitos.
Victorios decidiu recorrer a um outro tio, este aliado do governo Assad, para ajudá-lo a resolver essas questões burocráticas. Os dias corriam sob tensão até que, no início de janeiro de 2012, o documento lhe foi entregue.
Com o novo passaporte, veio um alerta dos funcionários do serviço de segurança da capital síria, Damasco. Recomendaram que o jornalista seguisse com urgência para a fronteira com o Líbano sem levar nada além da roupa que vestia.
Em janeiro de 2012, deixava a Síria depois de cem dias entre Daraa e Damasco, sempre sob ameaça. Na noite anterior à mudança de país, comprou um cortador de unha, pelo qual pagou 25 liras (o equivalente a R$ 0,10). É o único objeto que guarda desses dias turbulentos. "Deixei tudo lá."
Começava a longa jornada de Victorios Shams, pseudônimo adotado por razões de segurança depois da deflagração do que chama de Revolução Síria –ele prefere não usar a expressão "guerra da Síria".
Durante períodos bem curtos, passou por Líbano e Turquia. Viajou em seguida para a Jordânia, onde ficou por cerca de três meses. Embora os sinais de perseguição continuassem, manteve o trabalho como jornalista, reportando para diferentes veículos os conflitos que aconteciam na Síria.
Retornou novamente para o Líbano, onde permaneceu por poucas semanas. Em junho de 2012, chegou ao Egito, onde a situação política parecia mais calma, e encontrou amigos sírios, com quem alugou uma casa no Cairo.
Até então, andava de muletas. Aos poucos, foi deixando-as de lado, mas caminhava com dificuldade. Não era, contudo, uma limitação que o impedisse de trabalhar. Fez reportagens para jornais, revistas e TVs da Síria.
Pouco mais de um ano depois, a política egípcia sofreu uma reviravolta com o golpe que derrubou o presidente Mohammed Morsi. Assumiu o poder o general Abdel al-Sisi, que havia sido ministro de Morsi. O país entrou em ebulição, com troca de ataques entre grupos rivais. Era a hora de Victorios, outra vez, mudar de país.
Cogitou ir para a Venezuela, onde vivem alguns de seus familiares. Dificilmente ele conseguiria visto para o país, disseram esses parentes, que o aconselharam que viesse para o Brasil.
Em 21 de janeiro de 2015, o jornalista desembarcou em São Paulo, cidade que o recebeu bem, ele diz. Está na situação de refugiado e busca a nacionalidade brasileira.
Uma de suas atividades tem sido a produção semanal de boletins em árabe, com legendas em inglês, para o site da central sindical Conlutas.
Também colabora com TVs como a Al Jazeera, para a qual foi meses atrás a Salvador para produzir reportagem sobre a Revolta dos Malês (1835), levante de escravos, em sua maioria, muçulmanos.
Do Brasil, ele acompanha com atenção o Oriente Médio e a Europa. Está, na medida do possível, tranquilo em relação aos seus familiares mais próximos, que conseguiram refúgio na Alemanha. Por outro lado, é tomado pela tristeza ao se lembrar dos mais de 20 amigos mortos pelo Exército do seu país.
Passaram-se mais de oito anos desde que ele deixou a Síria. Embora goste do Brasil, seu maior desejo é voltar a sua terra natal. Victorios sabe, no entanto, que agora é inviável. "O país ainda será perigoso por mais três, quatro anos. Em Daraa, fala-se numa semana da morte de um jornalista, na semana seguinte, da morte de um médico, depois um advogado", diz.
"A situação na Síria será instável como era no Iraque depois da morte de Saddam Hussein, com um incidente todos os dias", afirma.
Ciente da impossibilidade de voltar ao país enquanto Assad estiver no poder, planeja viajar o quanto antes para algum país vizinho, como Jordânia ou Qatar. Victorios acredita que só assim –mais perto dos seus conterrâneos e das cidades devastadas pelas batalhas- vai conseguir concluir seu livro sobre a guerra. O título ele já tem: "Cem Dias na Síria".
Outro lado
A Folha pediu uma resposta à embaixada da Síria a respeito da perseguição a jornalistas no país.
Em um comunicado, a representação afirmou que a organização Repórteres sem Fronteiras (RSF) apoia grupos midiáticos sírios de oposição e "correspondentes fictícios" que abasteceriam a imprensa ocidental com informações fabricadas por serviços de inteligência apoiados pelos governos britânico e americano.
O texto citou veículos como os americanos New York Times e Washington Post e os britânicos Guardian e BBC e acrescentou que o relatório da RSF é "politizado e não profissional" e ignora o ambiente de "liberdade, abertura e diversidade" na Síria.
"Documentos vazados, recentemente, mostram como os serviços de inteligência ocidentais atuaram junto aos veículos de imprensa ocidentais e criaram uma infraestrutura avançada de propaganda para angariar apoios ocidentais à oposição na Síria", diz a nota.
Segundo a embaixada, o exercício do jornalismo está garantido pela Lei de Imprensa do país e correspondentes estrangeiros não encontram empecilhos para trabalhar lá.