A mochila de trabalho do jornalista turco Kamil Ergin era a inveja dos colegas. Todos os equipamentos necessários para uma reportagem estavam lá: tripé multifuncional, notebook, três baterias sempre carregadas, cartões de memória, leitor de cartões, pilhas, carregador de pilha, iluminação, três tipos de microfone, câmeras, lentes, bloquinhos de anotação, colete, credenciais.
"Eu estava sempre com tudo organizado, pronto para ir para a rua [fazer reportagens]", lembra Kamil, 36. "Mas, há quatro anos, essa mochila está em casa, como uma memória para mim."
A última vez em que Kamil usou sua mochila foi durante uma reportagem sobre os preparativos para as Olimpíadas do Rio, em março 2016. Depois disso, a agência de notícias onde ele trabalhava como correspondente no Brasil, a Cihan, sofreu intervenção do governo turco; o jornal para o qual ele escrevia, o Zaman, que tinha circulação de 600 mil exemplares, foi interditado e fechado pela polícia; e 46 jornalistas que trabalhavam nesse grupo de mídia foram presos.
De 2010 a 2016, enquanto era correspondente da Cihan, Kamil fazia pelo menos uma reportagem por dia –cobria política, economia, esporte, cultura, história. Acompanhou a operação Lava Jato, as manifestações de 2013, o ocaso do governo Dilma Rousseff. Sua mulher, Sema, é fotógrafa e trabalhava com ele.
A Cihan e o jornal Zaman eram ligados ao Hizmet, movimento liderado pelo clérigo Fethullah Gülen. Gülen e o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, eram aliados até 2013, quando o líder turco se voltou contra o Hizmet após uma série de investigações de corrupção atingir aliados do governo e até familiares do político. Erdogan acusou Gülen de manter infiltrados no Judiciário e na polícia, para tentar derrubá-lo.
A partir daí, o governo turco passou a perseguir os integrantes do Hizmet, que tinha milhares de escolas e cursinhos pré-vestibular na Turquia e ao redor do mundo, além de milhões de integrantes na polícia, academia, mídia e judiciário turcos.
Erdogan passou a considerar o Hizmet uma organização terrorista. Fechou escolas e interveio nos veículos de mídia ligados ao grupo.
Em março de 2016, em visita à Turquia com jornalistas brasileiros, Kamil passou em frente ao prédio do Zaman. "Estava tudo fechado, com policiais à frente, aquelas fitas de isolamento. Foi uma cena muito forte. Era como se tivesse sido invadido por um outro país. Seis meses antes, eu havia estado lá, e ainda era o 'meu' jornal, entrei, falei com as pessoas...", lembra Kamil.
Logo depois da intervenção do governo nos veículos de comunicação em que trabalhava, Kamil recebeu um email dizendo: "Nossa linha editorial mudou. Caso os correspondentes estrangeiros continuem leais e respeitem a nova linha editorial, serão mantidos".
Em 15 de julho de 2016, uma tentativa de golpe na Turquia deixou 250 mortos e 2.000 feridos. O governo culpou seguidores de Gülen de terem arquitetado o golpe –o clérigo, que está exilado nos EUA desde 1999, nega.
O episódio foi usado como álibi para expurgos generalizados no país –mais de 50 mil pessoas foram presas, e 150 mil funcionários públicos, entre eles juízes, professores e promotores, foram demitidos. Fecharam as portas mais de 150 jornais, revistas, TVs, rádios e sites. Mais de 1.500 jornalistas foram processados, e 11 mil ficaram desempregados.
"Hoje, se eu pegar um avião e desembarcar na Turquia, vão me receber no aeroporto com rosas", brinca Kamil. "Não, eu serei preso", completa, mostrando seu nome em uma lista de jornalistas acusados de "terrorismo".
"Não sou terrorista, minha única arma sempre foi a caneta. Meu coração está partido e não tem cura, fui acusado e castigado por algo que não fiz", diz o jornalista.
Após a tentativa de golpe, o Zaman e a Cihan foram fechados definitivamente, e Kamil ficou desempregado. Ele montou um site de notícias sobre a Turquia para brasileiros, o Voz da Turquia. Mas tinha poucos anúncios e não conseguiu sobreviver. Kamil mandou cartas pedindo emprego em vários veículos de mídia brasileiros. Não conseguiu se recolocar.
Com os boletos vencendo, começou a trabalhar como motorista de Uber. Chegava a dirigir 16, 17 horas por dia para ganhar o suficiente para o aluguel e as faturas.
Pouco tempo depois, foi assaltado no carro. Não conseguiu voltar a dirigir e arrumou um emprego em uma loja de joias.
Em 2018, Kamil abriu o restaurante Casa Turca com dois sócios, também turcos refugiados. No início, ele era garçom, cozinheiro, entregador e o que mais precisasse. Agora, cuida do marketing e do serviço de delivery, que se expandiu na pandemia. O carro-chefe do Casa Turca é o pidé (espécie de pizza turca) de sujuk, uma linguiça com condimentos.
"Eu consegui sucesso na área da gastronomia, mas, como jornalista, eu poderia fazer a diferença. Tenho muitos amigos jornalistas que hoje estão dirigindo Uber, entregando pizza, é um desperdício", diz.
Segundo o ranking do Comitê de Proteção a Jornalistas (CPJ), a Turquia é o segundo país que mais prende jornalistas no mundo –atualmente 47 estão presos; só perde para a China, que é uma ditadura de partido único e tinha 48 jornalistas presos em 2019. Inúmeros jornalistas turcos recorreram de julgamentos e aguardam decisões, mas podem ser presos; outros outros foram condenados e fugiram do país.
"Há muitos jornalistas presos há quatro anos sem nem data marcada para seus julgamentos. Não há justiça", diz Kamil.
O Código Penal turco prevê crimes como "insultar o presidente", "ofender a nação turca e suas instituições", "insultar agentes do Estado". Tudo isso tem sido invocado para criminalizar a atividade jornalística.
"Muitos refugiados fugiram por mar e acabaram morrendo, ou estão na prisão. Tenho amigos morando escondidos com identidade falsa há cinco anos, passaporte cancelado, nome na lista de terroristas. Eu até que não sofri tanto", diz Kamil. "Mas eu perdi minha profissão e minha liberdade de viajar." Seu passaporte foi cancelado pelo governo turco.
O cerco do governo a jornalistas e a integrantes do Hizmet se espalhou pelo mundo, com vários pedidos de extradição.
Em 2019, o comerciante Ali Sipahi, 31, que mora em São Paulo, foi preso de modo preventivo a pedido do governo turco, mas teve sua extradição negada pelo Supremo Tribunal Federal.
Kamil solicitou refúgio ao governo brasileiro quando seu visto de jornalista estava para vencer, no ano passado. Mas cancelou o pedido em agosto de 2019, quando nasceu sua filha, Ayla, e pôde obter o Registro Nacional Migratório. Em novembro, vai entrar com pedido de naturalização. Planeja ter um passaporte brasileiro em 2021.
"Já me considero brasileiro", diz Kamil, que veio ao Brasil pela primeira vez em 2007 e trabalhou como professor de inglês em uma escola ligada ao Hizmet durante três anos.
Pretende ficar no Brasil para sempre?
"Ainda não sabemos, penso no futuro da minha filha. Como será criar uma criança aqui? Ela é muçulmana, quero que cresça com os valores da nossa cultura", diz. "Ao mesmo tempo, em outros países, como os da Europa, os refugiados sofrem discriminação. No Brasil, nós somos super bem-vindos."
Kamil sente muita falta do jornalismo, mas não tem esperanças de voltar a trabalhar na área.
Atualmente, muitos dos veículos de mídia tradicional na Turquia estão sob controle de empresas que pertencem a aliados ou parentes de Erdogan.
"Vejo no Brasil de hoje a situação que havia na Turquia cinco, seis anos atrás, com ameaças contra imprensa e jornalistas", afirma.
Ele diz que, enquanto houver democracia no Brasil, fica aqui. "Se eu sentir que o Brasil está começando a virar uma Turquia, preciso achar outro lugar. Depois de passar por algo tão brutal, nunca mais dormi tranquilo."
De vez em quando, ele abre sua mochila de trabalho para matar as saudades do jornalismo e tirar o pó dos equipamentos. Mas a bolsa está bem mais leve. Quando a situação apertou, Kamil teve que vender uma das câmeras profissionais, duas lentes e um microfone. Tudo bem, diz ele. "Hoje só uso a câmera para fotografar a filha e os pratos de meu restaurante."
Outro lado
A Folha pediu uma resposta à embaixada da Turquia a respeito da perseguição a jornalistas no país.
Em um comunicado, a representação afirma que as acusações de violações contra a imprensa se originam de notícias fabricadas pelo movimento Hizmet, que o governo considera uma organização terrorista armada –à qual denomina FETO– e acusa de ter se infiltrado em cargos públicos estratégicos para destruir a democracia no país.
A nota cita a organização como responsável pela tentativa de golpe de 2016, que deixou 251 mortos, e por uma série de outros crimes e acrescenta que seus membros se apresentam como vítima de violações de direitos humanos para manipular a opinião pública internacional.
Segundo a embaixada, algumas pessoas que se intitulam jornalistas agiram "sob ordem direta do FETO" para cometer atos ilegais.
"A Turquia é um país governado pelo Estado de Direito e ninguém está acima da lei. Nenhuma profissão, incluindo "jornalismo", dá imunidade a pessoas contra processos se há suspeita razoável de que um crime é cometido", diz a nota.
O texto também afirma que há uma "comunidade midiática ativa e pluralista beneficiando-se de padrões internacionais de liberdade de mídia e expressão na Turquia".
"Propaganda terrorista, glorificação do terrorismo, incitação ao ódio e violência não são protegidas pela liberdade de expressão em lugar nenhum", acrescenta.