A reprovação do ponta-direita Garrincha em um teste psicológico antes da Copa do Mundo de 1958, resultado que deveria ter sido sigiloso, é o início de uma relação conturbada entre psicologia e a seleção brasileira. Após 60 anos, o conflito continua.
O Brasil vinha da tragédia futebolística de 1950, quando perdeu a final para o Uruguai, no Maracanã. Em 1954, na Suíça, nova derrota, agora nas quartas de final contra a Hungria, pelo placar de 4 a 2.
Coube ao psicólogo João Carvalhaes (1917-1976), que trabalhava na estatal paulistana CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos) e no São Paulo, cuidar da preparação psicológica da seleção brasileira que jogaria na Suécia em 1958.
"Foi revolucionária a atenção com a questão psicológica. O Carvalhaes era meticuloso, tinha um grande rigor ético e era consciente", afirma Katia Rubio, professora da USP e especialista em psicologia do esporte.
Pelos testes psicomotores aplicados pelo psicólogo na época, o craque Garrincha não teria condições intelectuais de jogar na Copa do Mundo.
O fato de os resultados dos testes feitos terem vazado para o público chateou o psicólogo da seleção. Ele explicaria várias vezes no futuro que o teste psicomotor era apenas uma das ferramentas usadas.
A metodologia atual da psicologia do esporte mostra que os testes usados por Carvalhaes não serviam para competições esportivas. Mas, para Rubio, a análise da mentalidade infantil de Garrincha estava correta.
Para a especialista, o trabalho de Carvalhaes ia além dos polêmicos testes.
"Ele estava sempre perto dos jogadores, para ouvi-los. Havia uma escuta clínica, uma interação psicológica", afirma.
Reportagem do dia 10 de julho de 1958 da Folha da Manhã, após o título, atestava a importância do trabalho psicológico. "Aprendemos com ele a entrar em campo sorrindo", afirmou Nilton Santos.
Seis décadas após o trabalho pioneiro, Katia afirma que não houve grandes evoluções na aplicação da psicologia esportiva em Mundiais. Segundo ela, pela falta de profundidade das ações e pelo preconceito generalizado.
"O desencantamento entre psicologia e o futebol vem desde os anos 1990", diz a pesquisadora. Segundo ela, qualquer trabalho com jogadores precisa ser constante e a longo prazo.
"Muitos que atuam nem são psicólogos. Apenas motivadores. Os trabalhos têm pouca eficácia metodológica", afirma.
Outro obstáculo está dentro das próprias comissões técnicas. Treinadores se definem como psicólogos dos times. "Então fazem bobagens", afirma a pesquisadora.
O cenário, porém, muda dependendo do país. Na Alemanha, os treinadores de alto nível têm aulas de psicologia em curso obrigatório da federação local.
Nas eliminatórias da Copa de 2018, a preparação psicológica foi avaliada como decisiva pelo treinador do Peru, Ricardo Gareca. O argentino levou para a comissão técnica da equipe peruana o psicólogo Marcelo Márquez.
Segundo o treinador, o profissional teve papel determinante para a conquista da vaga no Mundial após 36 anos.
No caso do Brasil, nas duas últimas Copas e na atual, a preocupação com a preparação psicológica dos jogadores ficou de lado.
Em 2010, Dunga disse que ele seria o psicólogo do grupo. Em 2014, no Brasil, Luiz Felipe Scolari até chamou a psicóloga e amiga pessoal Regina Brandão.
"Sou eu o psicólogo, ela (Regina) me dá uma ideia, e aí eu vejo se vou agir mais forte com determinado jogador", disse Scolari, antes do Mundial.
Durante o torneio, após admitir desequilíbrio emocional dos jogadores de sua equipe, chamou a psicóloga para um trabalho pontual. Nas oitavas, o Brasil passou, mas a imagem que mais marcou foi a do capitão do time, Thiago Silva, chorando.
"Felipão tinha preocupação há mais de um ano com o Chile [rival nas oitavas]. Talvez isso tenha sido um pouco demais, colocou muita pressão nos jogadores. Ele [Scolari] reconhece isso", afirmou Brandão à TV Cultura.
A goleada para a Alemanha por 7 a 1, na semifinal, indica que o acordo de curto prazo não ajudou. Tite também abriu mão de psicólogos na Rússia. Para ele, a Copa do Mundo é curta e não há tempo hábil para um trabalho mais profundo.