Fileiras de palafitas, casas construídas elevadas sobre estruturas de madeira, algumas coloridas, em frente a casas de alvenaria, no bairro Educandos, no centro de Manaus
Fileiras de palafitas, casas construídas elevadas sobre estruturas de madeira, algumas coloridas, em frente a casas de alvenaria, no bairro Educandos, no centro de Manaus

Natureza do Desastre

Governos falham, e brasileiros são forçados a deixar suas casas e conviver com desastres naturais recorrentes

Capítulo 3
Santa Catarina

Palco de desastres, SC tem cheia com toque de recolher, porto improvisado e pouca estrutura

Pequenas cidades do Vale do Itajaí paralisam atividades e contam prejuízos durante cheias

Marina Estarque
Santa Catarina

O monumento em homenagem aos pioneiros de Rio do Oeste, desbravadores sobre uma canoa de ferro, naufraga quase todos os anos nas grandes enchentes que atingem a cidade, no Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Perto da estátua submersa, a prefeitura monta um pequeno porto improvisado, para manter a circulação no município –que fica com 70% da sua área inundada.

Desde 2011, o pacato município de pouco mais de 7.000 habitantes a cerca de 200 km de Florianópolis tem sido afetado por cheias quase anuais, que mudaram a rotina da cidade. Comércios, fábricas e até os Correios são esvaziados e fechados por semanas, órgãos públicos mudaram de lugar, e o crescimento urbano se afastou do centro tradicional.

"Depois de 1983 e 1984 não houve grandes enchentes, mas, desde de 2011, já tivemos nove. Só em 2014 foram quatro. Acreditamos que é um efeito das mudanças climáticas", explica o coordenador da Defesa Civil de Rio do Oeste, Josnei Moser.

Monumento aos fundadores de Rio do Oeste (SC), em frente à antiga prefeitura da cidade
Monumento aos fundadores de Rio do Oeste (SC), em frente à antiga prefeitura da cidade - Eduardo Knapp/Folhapress

Segundo o pesquisador do Centro de Estudos em Engenharia e Defesa Civil (Ceped) da Universidade Federal de Santa Catarina, Rafael Schadeck, vários fatores podem estar relacionados a essas cheias. "Estamos registrando mais desastres no estado, mas se é um fator climático, aumento da ocupação ou mesmo melhora nos registros é difícil dizer."

Em 2017, Rio do Oeste decretou situação de emergência –1.332 pessoas ficaram desabrigadas e desalojadas. Segundo pesquisa do Instituto Igarapé, 6,4 milhões de brasileiros foram forçados a deixar suas casas por desastres naturais desde 2000, o equivalente a um a cada dois minutos.

O Amazonas, seguido de Santa Catarina, foram os estados mais afetados no período. Blumenau é apontada como a cidade brasileira com o maior número absoluto de desabrigados e desalojados. Já Rio do Oeste aparece como o sexto município no país com a maior proporção de deslocamentos por habitante, o equivalente a 133% da sua população –há quem tenha sido afetado mais de uma vez no período.

A região do Vale do Itajaí, onde Rio do Oeste e Blumenau estão localizados, é considerada a mais propensa a desastres naturais no estado, pelas suas características geográficas e por ser uma área populosa. O vale, cortado por rios, está sujeito a inundações e, próximo a encostas, a deslizamentos.

Em Rio do Oeste, a Defesa Civil precisa tomar uma série de medidas para lidar com as enchentes, como o porto improvisado na rua principal. Com oito barcos pequenos, transportam pacientes ao posto de saúde ou funcionários ao trabalho, das 5h da manhã até a noite. "O translado dos trabalhadores é feito em casos de empresas que estão fora de área de enchente e continuam funcionando", diz Moser. Já as escolas interrompem as aulas, porque uma fica alagada e a outra é usada como abrigo temporário.

Plantação de arroz em Rio do Oeste, próximo ao rio Itajaí do Oeste
Plantação de arroz em Rio do Oeste, próximo ao rio Itajaí do Oeste - Eduardo Knapp/Folhapress

Além disso, a Defesa Civil, da gestão do prefeito Betão (PMDB), decreta um toque de recolher, para evitar acidentes. "Isso é para o pessoal não ficar andando de 'batera' [barco pequeno] para cima e para baixo, sem colete e proteção, sem necessidade", afirma o coordenador.

O município é cortado por dois rios, o Itajaí do Oeste e o das Pombas. Quando chove, as águas sobem e inundam a cidade, a começar pelo centro, por cerca de dez dias. A Defesa Civil monitora o nível dos rios e, segundo Moser, informa a população de forma gradativa, por meio das redes sociais e rádios locais. "Como a cidade é pequena, em dez minutos eu aviso todo mundo, porque tem o diz-que-diz-que. Damos um alerta pelo menos 24 horas antes."

Como a Defesa Civil de Rio do Oeste se resume a um funcionário –o próprio coordenador–, muitos moradores atuam como voluntários, dirigindo barcos ou carretas. Segundo especialistas, é comum que municípios brasileiros tenham defesas civis pouco estruturadas. Muitos nem sequer possuem Defesa Civil constituída. Moser admite que, em períodos de cheia, fica "sobrecarregado", mas, para ele, a coordenação com os voluntários "funciona bem".

Centro abandonado

Na pracinha da cidade, ao lado do monumento aos pioneiros, o prédio histórico da prefeitura está desativado. Após ser atingida por várias enchentes, a administração se mudou para um ponto mais alto do município em 2011. "Não tem como prestar um serviço se a gente estiver ocupado tentando se socorrer", resume Moser.

Assim como a prefeitura, vários comerciantes já deixaram a via principal, a Sete de Setembro, deslocando o eixo de crescimento da cidade. Em alguns locais, a rua parece abandonada. Quem permanece no centro precisa amargar semanas de comércio fechado e gastos com frete.

Nos Correios, os funcionários retiram todos os móveis, cartas e encomendas quando o rio começa a subir. Os pacotes ficam guardados em um caminhão, "no alto do morro", até a enchente acabar. No ano passado, a água atingiu 1,5 metro de altura dentro da agência. "Em 2011, não estávamos acostumados e perdemos todas as cartas. Depois aprendemos", explica um funcionário, que não quis se identificar.

Rio do Oeste, cortada pela rua Sete de Setembro, uma das primeiras a ser atingida pelas cheias
Rio do Oeste, cortada pela rua Sete de Setembro, uma das primeiras a ser atingida pelas cheias - Eduardo Knapp/Folhapress

Dono de uma farmácia na rua principal, Gilmar Frainer, 60, sabe exatamente quantos centímetros o rio precisa subir, por hora, para que ele acione seu plano de contingência. "Aqui chega a enchente quando o rio está com 8,5 metros. Então, quando dá 8 metros, subindo 5 cm ou 10 cm por hora, eu começo a tirar tudo. Ano passado entrou 1,2 metro de água na loja", explica.

Tudo significa produtos, móveis e documentos da farmácia, que são levados para a sua casa, em um local protegido de enchentes. A loja fica em média 15 dias fechada em cada cheia. Para reabrir, é preciso limpar, dedetizar e pintar as paredes. "Gasto uns R$ 5.000 para fazer isso. Já chegamos a pintar a farmácia três vezes em um único ano. Fora os prejuízos por ficar parado", diz.

Gilmar só não abandona a rua principal porque, além de ser dono da loja, os moradores já conhecem o ponto da farmácia. Mas o agravamento das cheias o tornou um homem endividado. "Fiz um financiamento em 2014, que só acaba em 2019. Mas, no ano passado, precisei de outro, de R$ 100 mil. O de 2011 eu só quitei agora, em 2017", conta. "Antes não tinha enchente assim, e eu não vivia endividado", diz Gilmar, que mora na cidade desde criança.

Alguns metros adiante, na mesma rua, outro comerciante precisou de empréstimos para sobreviver às enchentes. O empresário Dante Perini, 72, perdeu metade do estoque da sua loja de móveis na cheia de 2011. O empresário calcula um prejuízo de cerca de R$ 400 mil. "Peguei um empréstimo de R$ 100 mil que estou pagando até hoje", afirma. Após o trauma, Dante construiu um mezanino de três metros de altura, onde armazena os objetos em períodos de cheia.

Ele também não pretende abandonar a rua principal. "Nós, proprietários, não vamos desistir tão fácil. Temos esperança de que o governo faça as obras nos rios". Moser, no entanto, diz que o projeto de barragem no rio das Pombas está parado. O governo do estado, comandado por Raimundo Colombo (PSD), afirma que a proposta está em fase de captação de recursos e depende "da aprovação local da população".

Outra solução para comerciantes da Sete de Setembro é alugar depósitos. Uma loja da rua, com roupas e bolsas de grifes famosas, paga para usar o andar de cima com esse fim. "Em 2017 subimos tudo e ficamos quase um mês fechados", diz a gerente Nicheli Fossa, 30. A loja e a fábrica de roupas vão se mudar para um local fora da área inundável. "Desde 2011 que a fábrica de jeans tira todas as máquinas, quase todo ano, e coloca em caminhão", afirma.

As perdas com as enchentes, no entanto, não atingem apenas o comércio e a indústria. Em Rio do Oeste, empresários locais têm o hábito de descontar o período não trabalhado do pagamento dos funcionários. "Em mês de enchente, a gente ganha um quarto do salário a menos. Não é certo, mas isso é comum aqui", diz um atendente de uma loja de produtos agrícolas que não quis se identificar.

A dona de casa Sueli Beltrame, 35, é casada com um motorista, que ficou 15 dias sem trabalhar em 2017. O valor foi descontado do salário em parcelas. "Todo mundo perde com a enchente, mas o trabalhador perde mais", diz ela.

A psicóloga Lana Magneski, 24, construiu sua casa sobre pilotis para protegê-la das cheias, em Rio do Oeste (SC)
A psicóloga Lana Magneski, 24, construiu sua casa sobre pilotis para protegê-la das cheias, em Rio do Oeste (SC) - Eduardo Knapp/Folhapress
A obra da casa, suspensa a três metros do chão, já consumiu R$ 200 mil, conta a psicóloga
A obra da casa, suspensa a três metros do chão, já consumiu R$ 200 mil, conta a psicóloga - Eduardo Knapp/Folhapress

Casas nas alturas

A casa de Sueli, com pilotis de três metros de altura, é um modelo cada vez mais comum em Rio do Oeste. "Aluguei aqui porque é alto. Mas, mesmo assim, tivemos que ser resgatados de barco no ano passado e passar alguns dias na casa de parentes", lembra. A rua de Sueli, chamada de Manoel Moratelli, é a primeira de Rio do Oeste a ser afetada nas cheias.

A algumas quadras dali, a psicóloga Lana Magneski, 24, já gastou R$ 200 mil na sua casa lilás, que ainda está em construção. Sustentada por pilotis de três metros, em um aterro pronunciado, a casa parece levitar, com o céu ao fundo. "A gente sabia que aqui tinha esse problema, mas o terreno foi de herança. Os pilotis e o aterro custaram R$ 30 mil", afirma a psicóloga. Mesmo com a residência adaptada, ela vai precisar ficar com familiares durante as cheias. "Aqui não consigo sair para trabalhar, vai estar tudo alagado ao redor", conta.

Quem não tem recursos para construir uma estrutura como a de Lana precisa recorrer a fretes toda vez que uma enchente se aproxima. O motorista Lauro Mangarefa, 28, passou por três cheias, uma por ano, desde que se mudou para sua casa atual, na rua Manoel Moratelli. "Aqui não tem solução, o rio está ali do lado", diz.

Lauro se recusa a ir com a esposa e os dois filhos para abrigos, onde, nas suas palavras, "as pessoas são tratadas como bichos". Por isso, a família costuma passar as cheias na casa de parentes. Em 2017, pagaram um frete para levar os móveis e objetos e ficaram uma semana fora. Já a enchente de 2011 "veio muito ligeira" e praticamente cobriu a casa de Lauro. "Perdi tudo, mas consegui recuperar aos poucos. Também ganhei muita doação", conta ele, que recebe R$ 1.200 por mês como motorista. "O povo daqui é batalhador e se ajuda, nunca se rebaixa pela enchente".

Lauro Mangarefa, 28, motorista, que esvaziou a casa em 2017 para escapar da invasão da água
Lauro Mangarefa, 28, motorista, que esvaziou a casa em 2017 para escapar da invasão da água - Eduardo Knapp/Folhapress

Laurentino

A menos de 10 km de Rio do Oeste, Laurentino vive uma situação similar. Segundo pesquisa do Igarapé, o município foi o 9º do país com a maior proporção de desabrigados e desalojados por habitante entre 2000 e 2017 –o equivalente a 120% da sua população, de cerca de 6.500 pessoas.

Segundo o coordenador da Defesa Civil de Laurentino, Scharles Schlemper Filho, 75% da cidade ficou inundada em 2017, quando foi decretada situação de emergência. O centro é quase todo atingido, incluindo a prefeitura, a Câmara, uma escola e um posto de saúde.

Assim como em Rio do Oeste, a cidade passou por várias cheias nos últimos anos. "Em 1983 e 1984 foram muito grandes, mas depois foi 2011, 2013, 2014, 2015 e 2017. A cidade criou uma cultura de enchentes recentemente", afirma Schlemper.

A Defesa Civil de Laurentino é constituída por apenas um funcionário, o coordenador, que também atua como secretário de Habitação. A gestão municipal de Gilberto Marchi (PSDB) tem nove barcos, mas apenas dois pilotos: um dentista e um operador de máquinas.

"Quando o rio chega a 5,9 m a gente começa a fazer alerta pelos veículos oficiais e redes sociais. Todo mundo é mobilizado, são cerca de 30 voluntários. Funciona muito bem", diz Schlemper. Apesar disso, ele admite que a área precisa de mais estrutura. "Por ser um município pequeno, o pouco investimento em defesa civil é gritante", afirma.

Em 2017, as enchentes deixaram 792 pessoas desabrigadas e desalojadas e causaram danos de R$ 4 milhões. Segundo Schlemper, a cidade recebeu apenas assistência humanitária e combustível do governo do estado. Em Rio do Oeste, a Defesa Civil tem a mesma reclamação: "Para fazer a reconstrução não veio nada", afirma Moser.

O governo do estado diz que apoiou obras contra inundações no Vale do Itajaí e menciona melhorias na barragem Oeste, em Taió, e na barragem Sul, em Ituporanga, que beneficiam Rio do Oeste e Laurentino.

O secretário da Defesa Civil de Santa Catarina, Rodrigo Moratelli, afirma que os municípios também são apoiados com a criação do Centro Integrado de Gerenciamento de Riscos de Desastres (Cigerd), cuja inauguração em Florianópolis está prevista para maio. O estado planeja abrir 20 unidades regionais do Cigerd –seis já estão em funcionamento.

Fábrica resiliente

Uma das maiores empresas de Laurentino, a fábrica de produtos alimentícios Oliveira, está instalada há 52 anos na beira do rio Itajaí do Oeste. Em 2011, a fábrica de doces, balas, temperos e conservas foi inundada e teve danos materiais estimados em R$ 4 milhões.

"Foi uma noite, ninguém esperava. Quando chegamos de manhã estava tudo nas águas. Tivemos que tirar todas as máquinas e mandar lavar em São Paulo, fazer os reparos. Perdemos estoque, matéria-prima, documentos e a parte administrativa. Ficaram só as paredes", lembra Sonia Terezinha Peters, uma das sócias da empresa. Na época, a indústria ficou fechada por um mês, com um prejuízo de mais R$ 1 milhão.

Ciclista cruza passarela sobre o rio Itajaí do Oeste em Laurentino (SC)
Ciclista cruza passarela sobre o rio Itajaí do Oeste em Laurentino (SC) - Eduardo Knapp/Folhapress

Segundo Sonia, a fábrica não costumava ser afetada de forma recorrente. "Antes dava uma enchente grande a cada 30 anos, agora é todo ano", explica. Além de ser um local que representava a herança e tradição da empresa, havia uma estrutura instalada, como caldeiras e poços, que não eram facilmente transferíveis.

Assim, a Oliveira montou um plano de contingência e investiu R$ 3 milhões para tornar a fábrica resiliente às cheias. Dentro do espaço, montou prateleiras de ferro para estocar os produtos, bem como plataformas de concreto, para abrigar as máquinas. "Tivemos que comprar empilhadeiras e guinchos, para poder subir os instrumentos nas plataformas e prateleiras", diz Sonia. A fábrica Oliveira também pediu um empréstimo e investiu em um prédio novo e alto, do outro lado da rua, para guardar a documentação e manter o setor administrativo.

Pelo menos uma vez por ano desde 2011, quando o rio sobe, a empresa interrompe a produção, suspende máquinas e materiais e, em seguida, fecha. A fábrica tem um plano de contingência com as ações detalhadas para cada altura do rio. "Quando chega a 7 m, o que nós temos que tirar? E com 8 m?", explica Sonia. "Nós adequamos toda a empresa para as cheias". Em 2017, a Oliveira fez o procedimento em junho e ficou uma semana parada.

Ainda que seja sócia de uma empresa milionária, Sonia também sofre com as cheias em casa. "Em 2011 eu perdi até as fotos de família. Agora eu coloco tudo em caminhão e levo para os meus parentes guardarem. Fico morando com eles, de favor". Sonia conta que, em dias de chuva, seu marido nem dorme mais, angustiado. Na hora de esvaziar a casa, ela leva até as portas embora. "Elas ficam inchadas com a água e depois não fecham", diz. "Deixo só a porta da rua e mais nada".