Fileiras de palafitas, casas construídas elevadas sobre estruturas de madeira, algumas coloridas, em frente a casas de alvenaria, no bairro Educandos, no centro de Manaus
Fileiras de palafitas, casas construídas elevadas sobre estruturas de madeira, algumas coloridas, em frente a casas de alvenaria, no bairro Educandos, no centro de Manaus

Natureza do Desastre

Governos falham, e brasileiros são forçados a deixar suas casas e conviver com desastres naturais recorrentes

Capítulo 1
Introdução

Política de prevenção de desastres naturais definha no país

Sete anos após temporais matarem mais de 900 no Rio, apenas metade de R$ 15,6 bilhões prometidos foram gastos

Marina Estarque
Amazonas e Santa Catarina

Pouco mais de cinco anos depois do lançamento do Plano Nacional de Gestão de Riscos e Resposta a Desastres Naturais, na esteira da tragédia de 2011 na região serrana do Rio de Janeiro, políticas públicas na área estão ameaçadas por cortes de orçamentos e redução de equipes. Promessas da época, como a de investir R$ 15,6 bilhões em obras de prevenção, não foram cumpridas até hoje.

Em 2011, mais de 900 pessoas morreram no Rio naquele que foi considerado o pior desastre natural da história do país. A tragédia, após a cobrança da sociedade civil, acabou impulsionando políticas de prevenção. Foi criado o Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden) –órgão vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e houve uma melhoria no mapeamento das áreas de vulnerabilidade, realizado pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM).

Da mesma forma, em agosto de 2012, o governo federal lançou o Plano Nacional de Gestão de Riscos e Resposta a Desastres Naturais, que previa ações em quatro eixos: obras de prevenção; resposta; mapeamento de áreas de risco; e monitoramento e alertas.

Rua destruída pela lama em Nova Friburgo, na região serrana do RJ, após chuvas de 2011
Rua destruída pela lama em Nova Friburgo, na região serrana do RJ, após chuvas de 2011 - Felipe Dana - 15.jan.2011/Associated Press

Na ocasião, o então governo Dilma Rousseff (PT) prometeu investir R$ 15,6 bilhões em obras de prevenção até 2014, o que, em valores atualizados pela inflação até dezembro de 2017, equivale a cerca de R$ 22 bilhões.

A meta, no entanto, não foi cumprida até hoje. De 2012 a 2017, somente R$ 11,2 bilhões, corrigidos pela inflação, foram gastos de acordo com dados do Ministério do Planejamento, obtidos via Lei de Acesso à Informação. Ou seja, pouco mais da metade do previsto. Até 2014, o governo havia desembolsado apenas R$ 7,3 bilhões –cerca de 33% do prometido para o período.

Neste total, o ministério inclui obras relacionadas ao abastecimento de água para consumo humano e produção de alimentos, inclusive do projeto de integração do rio São Francisco, que por si só já custou mais de R$ 9 bilhões aos cofres públicos desde 2007. Obras ligadas mais diretamente à prevenção de desastres, como contenção de encostas e drenagem urbana, representam uma parcela ainda menor dos investimentos: somam apenas R$ 1,9 bilhão, de 2012 a 2017.

Sobre a questão, o Ministério das Cidades disse que repassa as verbas para as obras, que são de responsabilidade de estados e municípios. "A baixa evolução financeira observada nos anos de 2012 e 2017 está relacionada ao ritmo lento de execução das obras, que é de responsabilidade dos estados e municípios. A liberação de recursos financeiros por parte do ministério ocorre de acordo com a evolução física das obras".

Também como parte do plano, o governo prometeu destinar 50 mil unidades do Minha Casa Minha Vida para famílias de baixa renda atingidas por desastres naturais. Questionado por meio da Lei de Acesso à Informação e pela sua assessoria de imprensa, o Ministério da Cidades disse não saber quantas casas foram entregues para esse público específico desde 2012. "[Os números] poderão ser solicitados às instituições financeiras federais, responsáveis pelo gerenciamento desses dados", disse a pasta, por meio de nota.

Elenita Goncalves de Azevedo, 39, com as filhas em condomínio do Minha Casa Minha Vida que recebeu muitas pessoas atingidas por desastres naturais em Blumenau (SC)
Elenita Goncalves de Azevedo, 39, com as filhas em condomínio do Minha Casa Minha Vida que recebeu muitas pessoas atingidas por desastres naturais em Blumenau (SC) - Eduardo Knapp/Folhapress

Posteriormente, a Casa Civil, responsável por coordenar o plano, afirmou que 69.067 unidades foram entregues de 2013 a 2017 para essas famílias, mencionando dados do Ministério das Cidades. A Casa Civil não soube explicar, no entanto, por que as versões não batiam.

A redução de investimentos em prevenção e monitoramento impacta a vida de milhares de brasileiros atingidos por inundações, deslizamentos, enxurradas, entre outros. Segundo pesquisa do Instituto Igarapé, ao menos 6,4 milhões de brasileiros ficaram desabrigados ou desalojados por desastres naturais desde 2000, o equivalente a um a cada dois minutos. Dentre os estados, Amazonas e Santa Catarina são os mais afetados.

Além dos cortes orçamentários e promessas não cumpridas, centros federais criados para lidar com desastres naturais também tiveram redução de equipes ou de verbas. O Cenad (Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres), que chegou a ter 105 servidores, incluindo concursados e terceirizados, tem hoje menos da metade: 50.

Segundo o diretor do centro, Élcio Alves Barbosa, essa diminuição é "natural do serviço público". "Eles passam para outros concursos e saem. De qualquer forma vamos superando essas dificuldades com tecnologia e sistemas eletrônicos que não exigem a ação dos nossos servidores", afirmou.

O Cemaden também passa por problemas similares. Concebido para ter 180 funcionários, conta hoje apenas 103, segundo seu diretor, o doutor em física Osvaldo Moraes. Além disso, o orçamento do centro caiu cerca de 85% de 2013 a 2017, o que prejudicou a manutenção da rede de observação –o Cemaden tem atualmente equipamentos parados que custaram quase R$ 14 milhões aos cofres públicos.

"Até 2011, as políticas públicas no Brasil de desastres naturais eram só de resposta, ações humanitárias. Não tinha preparação e monitoramento. Isso avançou, mas desde que o plano foi criado, em 2012, as verbas orçamentárias para ações na área têm decrescido", diz Moraes.

Osvaldo Moraes, diretor do Cemaden, na sede do instituto em São José dos Campos (SP)
Osvaldo Moraes, diretor do Cemaden, na sede do instituto em São José dos Campos (SP) - Karime Xavier/Folhapress

Especialistas na área concordam que houve um salto em 2011 e 2012, mas muitas iniciativas importantes não tiveram continuidade. "Na época, a sociedade se mobilizou, tinha um governo novo e uma conjuntura econômica que proporcionaram essa evolução. Mas o plano nunca foi transformado em programa, não há avaliação dos resultados, tem só a apresentação em Power Point. Hoje, até pela situação do país, está em curva descendente de novo", afirma o pesquisador do Ceped (Centro de Estudos em Engenharia e Defesa Civil) da Universidade Federal de Santa Catarina, Rafael Schadeck, que também já foi diretor do Cenad.

Custos dos desastres

"Está bem claro que os gastos com prevenção se justificam. Mas infelizmente vai continuar nesse ciclo, de investimentos descendentes, até vir outra grande catástrofe. Então o poder público vai se mobilizar, vai fazer outro plano, que também vai ser pouco cumprido", afirma Schadeck.

Segundo o sociólogo e pesquisador do Cemaden, Victor Marchezini, a prevenção tem papel fundamental, porque os desastres não são naturais, e sim sócio-ambientais. "A sociedade tende a se colocar como vítima das forças da natureza, quando na verdade nós criamos as condições que nos tornam frágeis. O desastre é sempre o resultado da interação entre a vulnerabilidade e as ameaças naturais ou tecnológicas", diz.

Garoto de três anos toma banho em bacia em meio a lixo acumulado em favela de palafita atingida por enchentes em Manaus

Garoto de três anos toma banho em bacia em meio a lixo acumulado em favela de palafita atingida por enchentes em Manaus Eduardo Knapp/Folhapress

Políticas públicas mais eficientes esbarram também na falta de estrutura e de profissionalização de defesas civis municipais, que estão pouco preparadas para lidar com a resposta a desastres –e menos ainda para prevenção.

"As cidades pequenas, principalmente, dependem muito das defesas civis estaduais. Algumas não têm nem corpo técnico para fazer o registro de desastres no sistema federal, o S2ID", afirma o doutor em engenharia e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas sobre Desastres, Irineu de Brito Junior, da Universidade de São Paulo (Ceped/USP).

Questionado, o Ministério da Integração Nacional disse que as defesas civis estaduais e municipais são "diretamente responsáveis por suas ações, decisões e estruturas". A pasta afirma que investiu R$ 30 milhões nos últimos anos em capacitações, exercícios simulados, mapeamento de área de risco, apoio à produção de planos municipais, envio de kits e na estruturação do Cenad. O ministério não informou quantos municípios brasileiros têm defesa civil atualmente.

Dados fracos

Essa precariedade também afeta a qualidade dos dados nacionais sobre desastres. O S2ID, que foi reformulado em 2012, é considerado um avanço importante e a melhor base de informações sobre o tema no país atualmente. No entanto, o sistema tem uma série de problemas.

"O S2ID não tem o objetivo de ser um banco de dados, é o sistema processual para transferências obrigatórias da União para municípios e estados. O município informa que está em situação de emergência para receber recursos do governo federal e acessar diversas legislações, como liberação do FGTS, por exemplo", diz Schadeck, que participou da criação do sistema.

Assim, o S2ID reflete apenas uma parte da realidade e pode apresentar um cenário geral com números subdimensionados. Por outro lado, municípios podem exagerar dados reportados sobre prejuízos econômicos, com o objetivo de obter mais recursos do governo federal. Ou seja, o sistema pode conter distorções e erros de preenchimento.

"Várias cidades não decretam emergência, não registram no S2ID, e isso não significa que não tenha ocorrido um desastre. Precisamos de um sistema único de informação, com dados confiáveis. O S2ID ajudou muito, mas usa quem quer", diz o diretor da Defesa Civil de Campinas, Sidnei Furtado, que é promotor no Brasil da campanha da ONU Construindo Cidades Resilientes.

Para o brasileiro David Stevens, do Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres (UNISDR), a falta de dados no país prejudica a elaboração de políticas públicas. Ele afirma que pelo menos 60% dos países da América Latina têm informações amplas sobre desastres.

"Paraguai, Equador e Costa Rica têm dados melhores do que o Brasil. O que o país tem hoje supre o que ele faz, que é administrar emergência. Mas, para nortear políticas públicas de prevenção, teria que melhorar muito. O mínimo é saber a idade, o sexo e as condições econômicas das pessoas afetadas. E seria muito fácil fazer isso", afirma.

O Ministério da Integração Nacional disse, por meio de nota, que a nova versão do S2ID "trouxe agilidade e transparência" e "permite ter um levantamento de quais municípios são mais afetados por cada tipo de desastre e estabelecer regiões mais críticas".

Leis

Outro entrave para melhorar as políticas públicas de prevenção no país, segundo especialistas, é a falta de regulamentação das leis 12.608, de 2012, e 12.983, de 2014, que tratam de desastres naturais.

A primeira estabelece o sistema e a política nacional de proteção e Defesa Civil, com as atribuições e responsabilidades de municípios, estados e União, além de criar um conselho nacional. Já a segunda institui um fundo e regras de transferência de recursos.

"Assim como há o SUS, com critérios para o repasse de verbas e normas de ação, um fundo nacional de Defesa Civil seria um passo importante. Por isso a lei 12.983 é estratégica", diz Furtado.

A Casa Civil disse que regulamentação está "em fase final de discussão e análise". Segundo o Ministério da Integração Nacional, o documento está "aguardando assinatura e publicação da Presidência da República."

Colaborou Daniel Mariani