O bodó é conhecido pelos amazonenses por ser um peixe muito resistente. Com o corpo revestido por uma carapaça áspera, é capaz de respirar fora da água e "viver na lama". Por habitar áreas alagadas e barrentas, inspirou o nome pejorativo dado às favelas de palafita no estado: "bodozal". Assim como o peixe, para habitar as regiões alagadas de Manaus é preciso ser resistente.
Ali, milhares de pessoas vivem meses em casas de palafita inundadas de água suja durante o período das enchentes, entre abril e junho. "A cheia aqui sobe devagar e desce devagar. Ficamos no mínimo 70 ou 80 dias acima da cota de emergência do rio Negro", explica o secretário-executivo de Proteção e Defesa Civil de Manaus, Cláudio Belém.
Para se preparar, os amazonenses constroem as chamadas marombas –um estrado de madeira, apoiado no chão da casa, que funciona como um piso elevado de cerca de 50 cm ou um metro de altura. Como as casas são baixas, moradores ficam espremidos entre a maromba e o telhado.
"Temos que andar ajoelhados ou agachados em casa por mais de dois meses. E a água fede, fede, fede! Os bichos sobem pelas brechas da madeira, fica podre, é insuportável", conta a comerciante Lidiane da Silva, 38, que paga cerca de R$ 300 para fazer a maromba. Na pequena casa de madeira, a filha de três anos dorme em um colchonete fino no chão, em um ambiente único que funciona como quarto, sala e cozinha.
"Quando chove, balança muito, a gente fica com medo. Não dá para dormir, tem que ficar acordado esperando a chuva passar", diz ela. Para provar que a casa é instável, ela se apoia em uma das paredes, e o chão se move lentamente para o outro lado. De acordo com o secretário-executivo de Defesa Civil, muitas vezes é preciso demolir as casas. "Fazemos muito isso, porque se uma desaba é um efeito dominó, derruba várias."
Segundo ele, Manaus tem 28 mil residências em área de risco. Ao longo de décadas, populações mais pobres se instalaram na beira dos 148 igarapés que cortam o município. "A ocupação foi toda nas margens. E, quando acabaram com a cidade flutuante, nos anos 1970, milhares de pessoas foram para terra firme, mas os únicos terrenos livres eram perto de rios."
Lidiane, por exemplo, mora na beira do Igarapé do Quarenta, entre os bairros Raiz e Betânia, a cerca de 4 km de carro do centro e uma das regiões mais afetadas pelas cheias em Manaus. Como costuma ocorrer em várias favelas de palafita, a comunidade é dominada pelo tráfico e chamada pelos moradores de "área vermelha".
A poucos metros dali, as paredes da casa da cabeleireira Daniele Machado, 36, estão cheias de "furos de fuzil". Ela mora com a filha de 12 anos na casa de uma amiga, porque a sua tombou na última enchente. Daniele prefere sair do bairro e ficar com parentes durante a cheia do que fazer maromba. "Entra muito bicho, cada aranha desse tamanho", diz ela, mostrando a palma da mão.
Além disso, Daniele sabe que a água suja pode transmitir doenças. "É complicado também por saúde, aqui não tem saneamento. Então, a água entra em casa com toda a porcaria: cocô, xixi de rato, tudo", conta. Na época das enchentes, segundo a Defesa Civil municipal, aumentam os casos de hepatite, leptospirose, febre tifoide, diarreia crônica, dengue e parasitoses intestinais.
Assim como Daniele, ao menos 6,4 milhões brasileiros ficaram desabrigados ou desalojados por desastres naturais desde 2000, o equivalente a um a cada dois minutos, segundo uma pesquisa exclusiva do Instituto Igarapé.
Dentre os estados, o Amazonas aparece como o mais afetado, com 840.252 deslocados no período, seguido de Santa Catarina, com 805.726. No Amazonas, 84% dos desabrigados e desalojados foram afetados por inundações. Manaus é apontada como a 6ª cidade com maior número de deslocados por desastres naturais do país: 59.756, sendo 81% por enchentes.
Boa parte das pessoas atingidas pelas inundações em Manaus mora nos chamados bodozais. O cenário nas favelas da Raiz e Betânia, onde moram Lidiane e Daniele, é similar ao de outras regiões alagadas, como São Jorge e Educandos, também a cerca de 4 km de carro do centro.
As casas de palafita ficam apoiadas umas nas outras, lado a lado, formando corredores estreitos. As paredes mostram as marcas e o histórico das últimas enchentes: a tinta desbotada e as linhas horizontais de cor marrom indicam o nível da água em cada ano. Para se locomover pelas ruelas, é preciso andar sobre pontes rudimentares de madeira, que ficam no nível das casas. Ao pisar nas tábuas, elas balançam, estalam e algumas cedem –fazem um arco para baixo com o peso do caminhante.
Essas pontes, algumas com vários metros de altura, são colocadas de forma provisória pela Defesa Civil antes das enchentes, para permitir a circulação. No entanto, acabam se tornando permanentes e conferem mais um aspecto de precariedade aos bairros alagados. A prefeitura disse que, em fevereiro, recuperou 70 metros de pontes na cidade, de forma preventiva.
Nessas ruelas, o colorido das paredes e das roupas nos varais contrasta com o cheiro forte de lixo, esgoto e fezes de animais. As casas costumam ter canos para fora, que servem para jogar os dejetos diretamente na lama. Em Educandos, as pontes passam por cima de um mar de lixo e esgoto, com plásticos e objetos que boiam em um líquido escuro. É essa água que invade as casas durante os meses de enchente.
A Prefeitura de Manaus afirma que o município está menos vulnerável a enchentes e que intensificou ações de dragagens de igarapés e drenagens. A administração destaca o plano preventivo, chamado de Operação Cheia, que antecipa serviços em áreas críticas. "A Operação Cheia 2018 já teve início, com a retirada de lixo da orla do rio Negro, limpeza e dragagem de igarapés, cadastramento de famílias em situações vulneráveis e construção de pontes em áreas de alagações", disse, por meio de nota.
MUDANÇAS CLIMÁTICAS
O Amazonas tem sofrido com uma maior recorrência de eventos climáticos extremos nos últimos anos. Em áreas urbanas, cada vez mais pessoas precisam sair de suas casas, alagadas, ou viver sobre marombas. Nas áreas rurais, ribeirinhos usam boias de plástico e macacos hidráulicos para enfrentar enchentes anormais.
Segundo o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Philip Fearnside, os eventos climáticos extremos aumentaram nos últimos 20 anos e ficaram mais graves recentemente, com inundações e secas recordes. "Com as mudanças climáticas, a probabilidade de esses eventos extremos ocorrerem é muito maior", afirma ele, que é ganhador do Prêmio Nobel da Paz junto a outros cientistas do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC). Fearnside cita ainda os fenômenos El Niño e La Niña, o aquecimento das águas do Atlântico e movimentos de zonas de convergência como motivos para as alterações.
O secretário-adjunto da Defesa Civil do Amazonas, Hermógenes Rabelo, afirma que a última vez que o centro de Manaus tinha inundado, em um "desastre de grande magnitude" tinha sido em 1953. A cena se repetiu em 2009 e logo em seguida, em 2012. "Tivemos cheias acima da cota de emergência em 2009, 2012, 2013, 2014, 2015 e 2017, quase todo ano", diz.
Além das inundações, as estiagens causam sérios problemas de abastecimento no estado, que depende primordialmente do transporte fluvial. Em muitos casos, comunidades ribeirinhas ficam isoladas, e as defesas civis precisam usar helicópteros para prestar os serviços, o que encarece a assistência. "Houve uma grande estiagem em 2005 e, em 2010, a maior já registrada no Amazonas", afirma Rabelo.
Para o secretário-executivo da Defesa Civil de Manaus, as previsões também pioraram, o que dificulta o planejamento de ações de prevenção. "As grandes cheias aconteciam de 10 a 15 anos. Esses ciclos, que duravam décadas, praticamente sumiram. No ano passado a previsão ficou bem distorcida, a curva de tendência está falhando."
Por isso, especialistas recomendam um investimento maior em pesquisa e monitoramento no estado. "Para entender com mais critério o que está acontecendo na Amazônia precisamos ter mais pesquisadores aqui. Mas o Brasil vive de costas para o Amazonas", diz o doutor em hidrologia e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Naziano Filizola.
De acordo com a Defesa Civil do estado, que tem números compilados apenas desde 2012, 468.270 pessoas ficaram desabrigadas e desalojadas nos últimos seis anos por enchentes e estiagens. Em Manaus, foram 18.330 deslocados de 2009 a 2017 pelos mesmos desastres, segundo a Defesa Civil municipal. Além disso, 19 municípios e 36.602 pessoas foram afetados no estado de 2005 a 2017 pelo fenômeno das terras caídas, um tipo de erosão fluvial.
Apesar de atingir milhares de brasileiros, políticas de prevenção de desastres sofreram com cortes nos últimos anos e definham no país.
PROSAMIM
Nas favelas de palafita, muitos moradores gostariam de se mudar para áreas protegidas das enchentes. "Aqui sempre teve "alagação", mas ninguém olha por nós. Tinha que tirar a gente daqui do bodozal, ajeitar o bairro. A gente padece aqui", afirma Ozanir Costa, 52, que tem uma vendinha na porta de casa, em Educandos.
Assim como ela, Lidiane e Daniela sonham com o Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus, projeto do governo do estado conhecido como Prosamim. O programa retira casas de palafita, constrói conjuntos habitacionais no lugar e faz obras de urbanização e saneamento ao redor de rios.
Da casa de Lidiane e Daniela, é possível ver algumas moradias do Prosamim. "Lá não tem risco de alagar, de doença. Tem parquinho para as crianças brincarem, tudo", diz Lidiane. Daniela afirma que, mesmo a poucos metros de distância, o conjunto habitacional é mais seguro. "É um lugar mais decente, toda mãe de família quer isso."
Para o aposentado Antônio Silva, 78, morador de um apartamento no projeto, o conjunto habitacional tem falhas, mas o saldo geral é positivo. Antônio morou durante 50 anos na favela de palafita do bairro Betânia e enfrentou várias enchentes. "Fiz muita maromba na vida, perdi muita coisa." Bom, muito não, retifica. "Já viu pobre ter muita coisa? Eu nem tinha geladeira naquela época", diz.
No Prosamim há seis anos, ele considera que a vida melhorou. "Lá eu morava na lama. Aqui tive a minha primeira casa de alvenaria, o primeiro banheiro com privada. Agora eu tenho uma vida digna", afirma.
O Prosamim costuma ser elogiado do ponto de vista social por ter mantido as populações no mesmo endereço, ao invés de construir grandes conjuntos habitacionais distantes do centro. No entanto, especialistas criticam a iniciativa pelo aspecto da conservação da natureza.
"Desde o século 19 que Manaus que vem soterrando e canalizando seus igarapés. Assim perdemos ambientes naturais e empobrecemos a biodiversidade urbana. Ao invés de recuperar e revitalizar o rio, você se livra dele", diz o professor de Ciências Ambientais da Ufam Henrique Pereira.
Segundo o Governo do Estado do Amazonas, o Prosamim não soterrou rios e nenhum igarapé deixou de existir pelo programa. "Eles continuam no mesmo leito, porém agora passam por dentro de galerias, feitas de concreto, que encaminham os igarapés até o rio Negro. Esta foi a alternativa estrutural escolhida para que se possa ter habitações próximas e condições de vida melhor para cidadãos", afirmou, por meio de nota.
FILA DE ESPERA
Na favela de palafita em São Jorge, a cerca de 4 km do centro de Manaus, a família de Cristiano da Silva, 44, espera há três anos por uma vaga no Prosamim. O auxiliar de serviços gerais mora há 16 anos no bairro e mostra nas suas paredes as marcas das últimas cheias, de cerca de um metro de altura. Ele mesmo comprou a madeira para fazer maromba, por R$ 300, nas últimas três enchentes. "Fica muito quente dentro de casa, porque você fica muito perto do telhado. E entra cobra, entra rato", conta, sobre a vida na maromba.
De acordo com o governo do estado, os processos para a conclusão do Prosamim foram acelerados, e as três fases do projeto devem estar prontas até 2020. No bairro de São Jorge, as obras foram retomadas em dezembro, mas suspensas em fevereiro pelo clima. Segundo o governo, o trabalho durante "período intenso de chuvas" é arriscado e deve ser recomeçado em março.
Quando não fez maromba, a família de Cristiano deixou a casa e recebeu aluguel social por dois meses. "Mas são só R$ 300, é difícil alugar alguma coisa com isso", diz ele, que sustenta a esposa e quatro filhos com um salário mínimo. "Em 2015 a gente pegou o aluguel social e ficou dois meses fora. Fica nessa para lá e para cá e não resolve nada", reclama a esposa, a dona de casa Maria da Silva, 50. Questionada, a Prefeitura de Manaus disse que deve manter o valor, porque não identificou aumento nos custos dos aluguéis.
No último Natal, a família estava reunida quando um temporal derrubou a casa de uma das filhas do casal, Aline Trindade, 28. Maria viu a cena da sua janela. "Ouvi um estalo, sacudiu tudo, e a casa dela caiu no rio", lembra. Aline estava na casa dos pais, com os quatro filhos e o marido. "Ficamos desesperados. Foi um Natal triste, mas a gente é adulto e tem filhos, tem que ser forte", conta ela.
Quando Aline construiu a sua casa, que também alagou várias vezes, havia muito terreno até as margens do igarapé. "O rio foi comendo a terra com o tempo. Foi muito triste perder a casa, porque a gente mesmo que construiu, aos poucos, com muito sacrifício", lembra a dona de casa.
Ela e o marido, que vende churrasquinho como ambulante, alugam um apartamento com o valor que recebem da prefeitura, de R$ 300. "Queria ter pelo menos uma esperança, mas dizem que o Prosamim está totalmente parado. E se um dia o aluguel social acabar? Como vamos ficar?", reclama ela. Na nova casa, ela tem apenas um sofá, uma cama e uma cômoda, que foram doados. "Da casa antiga só consegui salvar dois ventiladores", diz.
Da janela, Maria vê os destroços da antiga moradia da filha e também o barranco, agora bem mais próximo. Dividida em três ambientes por cortinas, a casa tem uma cozinha improvisada e banheiro nos fundos, que recentemente tombaram na direção do rio. Segundo um técnico da Defesa Civil municipal, a família deveria evitar essas áreas da casa, que correm o risco de despencar. "Não dá para dormir sossegada quando chove, o barulho do rio fica muito forte", conta Maria, angustiada. "Se der outra 'chuvada', acho que a casa cai com tudo."