Fileiras de palafitas, casas construídas elevadas sobre estruturas de madeira, algumas coloridas, em frente a casas de alvenaria, no bairro Educandos, no centro de Manaus
Fileiras de palafitas, casas construídas elevadas sobre estruturas de madeira, algumas coloridas, em frente a casas de alvenaria, no bairro Educandos, no centro de Manaus

Natureza do Desastre

Governos falham, e brasileiros são forçados a deixar suas casas e conviver com desastres naturais recorrentes

Capítulo 1
Introdução

Sem verbas, centro federal tem equipamentos de R$ 14 milhões parados

Órgão teve corte de orçamento de 85%, e aparelhos ficam guardados em restaurante abandonado

Marina Estarque
São José dos Campos e Cachoeira Paulista (SP)

O Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), órgão federal criado em 2011 e vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, sofre com cortes de até 85% do orçamento e tem equipamentos parados, que custaram quase R$ 14 milhões aos cofres públicos.

Os instrumentos, usados para coletar dados sobre inundações e deslizamentos, foram comprados em 2013 e 2014. Sem verbas, o Cemaden não pôde instalar parte dos equipamentos e precisou suspender a manutenção de outros, o que acaba prejudicando o monitoramento de desastres naturais.

Equipamentos parados do Cemaden, em Cachoeira Paulista (SP)
Equipamentos parados do Cemaden, em Cachoeira Paulista (SP) - Karime Xavier/Folhapress

Desde 2013, quando atingiu seu auge, o orçamento do Cemaden caiu cerca de 85%. Naquela época, o centro recebeu R$ 129 milhões (em valores corrigidos pela inflação) e, em 2017, foram apenas R$ 19,49 milhões. Para 2018, o orçamento previsto é de R$ 19,87 milhões –isso se não houver contingenciamento, como ocorreu em outros anos.

Além da falta de verbas, o centro conta com uma equipe reduzida. "O Cemaden foi concebido para ter 180 servidores e monitorar 256 municípios. Hoje temos apenas 103 funcionários para avaliar 951 municípios. Em outras palavras, quadruplicou a quantidade de trabalho com a metade dos recursos humanos", diz o diretor do Cemaden, Osvaldo Moraes.

Atualmente, 125 estações hidrológicas e 135 geotécnicas, compradas por R$ 10,85 milhões (valor corrigido pela inflação), estão desativadas. Elas ficam em um depósito improvisado em uma unidade do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) em Cachoeira Paulista, a cerca de 200 km de São Paulo.

Depósito improvisado em antigo restaurante guarda equipamentos do Cemaden
Depósito improvisado em antigo restaurante guarda equipamentos do Cemaden - Karime Xavier/Folhapress

Também estão lá nove estações totais robotizadas, que custaram R$ 3,14 milhões, em valores atualizados pela inflação. "As estações foram instaladas em diversos pontos do país. Mas, de dois em dois anos, no máximo, precisam ser retiradas para calibrar os sensores, que são de precisão, em laboratório", explica Moraes.

Como não houve recursos para a manutenção, as estações ficaram no depósito e não voltaram para o campo. "Quando em funcionamento, esses instrumentos conseguem detectar um movimento de dois milímetros em uma encosta", lamenta Moraes.

Os equipamentos parados servem para coletar dados sobre chuvas, nível de rios e umidade do solo, e permitem que o Centro avalie o risco de deslizamentos e inundações. Com essa rede de observação, o Cemaden produz conhecimento, analisa informações, bem como emite alertas, que são encaminhados para o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad), e, em seguida, para as defesas civis de municípios e estados.

"A falta de manutenção pode fazer com que o alertas sejam emitidos com atraso ou nem sejam enviados, porque os equipamentos podem não estar operando no momento. É melhor não ter dados do que ter dados pouco confiáveis", afirma o diretor do Cemaden.

O enfraquecimento da rede de observação é preocupante, já que ao menos 6,4 milhões de brasileiros ficaram desabrigados ou desalojados por desastres naturais desde 2000, o equivalente a um a cada dois minutos, segundo pesquisa exclusiva do Instituto Igarapé. Dentre os estados, Amazonas e Santa Catarina são os mais afetados.

Apesar do número de pessoas atingidas, políticas de prevenção de desastres têm sofrido com cortes, redução de equipes e promessas não cumpridas. Em 2012, na esteira da tragédia na região serrana do Rio de Janeiro, o governo federal prometeu investir R$ 15,6 bilhões em obras de prevenção até 2014, meta que não foi alcançada até hoje.

Ao mesmo tempo em que políticas definham e o monitoramento é ameaçado, alguns estados brasileiros sofrem com uma maior frequência de eventos climáticos extremos.

"Estamos batendo recordes de inundação e de secas na Amazônia, por exemplo. Com as mudanças climáticas, probabilidade de ocorrer eventos extremos é muito maior", alerta o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Philip Fearnside, ganhador do Prêmio Nobel da Paz junto a outros cientistas do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC).

Restaurante abandonado

Parte dos equipamentos está armazenada em um restaurante abandonado, dentro de caixas ou abertos. Há fios e barras de cobre jogados sobre um fogão industrial, muita poeira e até fósforos riscados sobre os instrumentos. As barras de cobre fazem parte das estações geotécnicas, capazes de medir a umidade do solo em até três metros de profundidade.

Nestas condições precárias, os equipamentos também correm o risco de se deteriorar. "Montados, acoplados no campo e na posição correta, eles estão protegidos. Podem pegar chuva, porque ficam isolados por uma espécie de silicone. Desmontados, pode entrar umidade onde não deveria. São instrumentos delicados", explica o responsável pela engenharia do Cemaden, Domingos Urbano.

Área aberta no Cemaden reúne peças de equipamentos de monitoramento que estão parados
Área aberta no Cemaden reúne peças de equipamentos de monitoramento que estão parados - Karime Xavier/Folhapress

Segundo Moraes, havia a previsão de construir um prédio para o Centro, que incluía uma área para depósito de materiais. "O complexo do Cemaden tinha sido projetado em 2012, mas não foi feito por falta de verba. O espaço hoje é inadequado para abrigar todos os servidores e para fazer o controle da rede", diz.

Com o orçamento de 2018, Moraes afirma que não vai conseguir instalar os equipamentos parados. Ao contrário, o estoque pode crescer caso haja algum contingenciamento. "Nesse caso eu vou ter que fazer 'escolhas de Sofia': faço a manutenção dos pluviômetros ou dos radares?", diz.

O Ministério da Ciência e Tecnologia afirma que não fará um contingenciamento em 2018. "O governo federal vem promovendo reorganização fiscal, o que implica modificações na sua execução orçamentária. Apesar das dificuldades existentes, o ministério tem atuado junto à equipe econômica para maior disponibilização de recursos, os quais são prontamente repassados a seus institutos e unidades de pesquisas", afirmou, por meio de nota.

O ministério disse ainda que a comparação com o orçamento de 2013 não seria adequada, "posto que naquele ano foram disponibilizados recursos maiores tendo em vista a implantação do Cemaden, com investimentos em instalações, equipamentos, etc".

Segundo a pasta, os instrumentos serão instalados assim que possível. "O local onde os novos equipamentos adquiridos estão estocados não compromete a segurança, não há deterioração dos mesmos, e não são equipamentos com tecnologia que requeira upgrade constante".

Por fim, o ministério afirma que o Cemaden encontra-se atualmente em "local apropriado" e passará por uma expansão em 2018. "O ministério está, portanto, trabalhando para dar ao Centro melhores condições de funcionamento".

Sobre a equipe, a pasta diz que pediu ao Ministério do Planejamento, em 2017, "autorização para provimento de mais cargos para seus institutos".

Alertas SMS

Com maior recorrência de eventos extremos, aumenta a necessidade de um sistema de alertas eficiente. Até março, o Ministério da Integração Nacional pretende levar o serviço de alerta por SMS, que começou a ser testado em 2017 em Santa Catarina e no Paraná, a todos os estados do país. O ministério diz que mais de 1,8 milhão de pessoas já estão cadastradas.

Segundo a pasta, as mensagens são elaboradas pelas defesas civis estaduais e enviadas por meio da plataforma do Cenad, com base em "informações recebidas por órgãos federais como o Cemaden, Inmet, Inpe, Censipam, entre outros". Já o Cemaden afirma que não participa do sistema.

"O Cemaden, que é o órgão que tem a prerrogativa de elaborar e divulgar esses alertas, definida por decreto, nunca foi consultado sobre esses SMS", afirma Moraes, diretor do centro. Ele afirma que não basta enviar um aviso sobre as ameaças climáticas, é preciso avaliar os impactos nas áreas de risco e direcionar para o público afetado.

"Para cada área de risco monitorada pelo Cemaden, nós sabemos quantas pessoas são cadeirantes, quantas são crianças, idosos. O alerta tem que levar em conta não apenas o evento probabilístico físico, mas a vulnerabilidade social. O desastre é o impacto do evento. Não é a chuva, é a inundação, o deslizamento", afirma Moraes.

Segundo o diretor do Cenad, Élcio Alves Barbosa, o trabalho dos centros é complementar. "Os nossos alertas vão além dos desastres naturais. Se houver um derramamento de produto químico, isso não está no escopo do Cemaden e nós vamos emitir o alerta mesmo assim", diz ele.

O diretor afirma que o Cemaden envia os avisos ao Cenad, que, por sua vez, tem o papel de emitir os alertas para a população e defesas civis. "A parte científica é com o Cemaden. A nossa, da defesa civil, é a parte operacional", afirma. Questionado se o Cemaden, como centro federal de elaboração e emissão de alertas, não deveria ter sido convidado a participar da criação do sistema de SMS, Barbosa diz que não.

"Não seria viável todos os parceiros participarem. Não é só o Cemaden, é a ANA (Agência Nacional de Águas), Serviço Geológico do Brasil (CPRM), Cptec (Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos), Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), todas as universidades e institutos de meteorologia. Não há nenhum problema nessa não participação, até porque o processo ainda está em fase de implantação", afirmou.

Outra falha apontada por especialistas no sistema de SMS é a falta de estrutura das defesas civis estaduais para emitir alertas próprios. "Apenas Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e mais alguns estados podem fazer o monitoramento meteorológico. Os demais nem possuem centros de meteorologia", diz Moraes.

De acordo com Barbosa, do Cenad, o governo federal estimula que os estados façam convênios com universidades para superar tais carências. "Esses acordos de cooperação servem como apoio técnico para emissão dos alertas", disse. Barbosa afirma ainda que os estados mais estruturados concentram 70% dos desastres mais severos do país.

Alertablu, o aplicativo que avisa sobre enchentes e alagamentos da Prefeitura de Blumenau
Alertablu, o aplicativo que avisa sobre enchentes e alagamentos da Prefeitura de Blumenau - Eduardo Knapp/Folhapress

Público-alvo

Uma dificuldade do sistema é que ele ainda é desconhecido por muitos moradores de áreas de risco. Isso ocorre, por exemplo, em alguns municípios de Santa Catarina, estado considerado um dos mais avançados em prevenção de desastres e um dos primeiros a receber o SMS. Além disso, há exemplos de cidades, como Blumenau (SC), que já contam com um alerta por aplicativo, e há pouca integração entre os projetos.

O diretor do Cenad afirma que o SMS ainda vai passar por melhorias tecnológicas, que permitem refinar o envio de alertas. O sistema teria mais precisão, direcionando mensagens específicas para áreas menores e, ao mesmo tempo, chegaria a usuários sem precisar de cadastro prévio. "Se a pessoa estiver no polígono de risco, vai receber automaticamente, se não estiver, não vai receber, evitando que o alerta se banalize ou caia no descrédito", diz.

No caso de municípios que já contam com sistemas próprios, o Cenad pretende cadastrá-los na plataforma para que eles possam enviar SMS. Com isso, esperam fazer um trabalho mais coordenado e pertinente, com informações locais.

Para o meteorologista e sócio da Somar, Willians Bini, o maior desafio do sistema de SMS é saber como usar os alertas –a sua empresa presta serviços para o Governo do Estado de São Paulo na elaboração dos avisos. "Quando houver alerta, quais ações a Defesa Civil vai tomar? Como vai tirar pessoas de áreas de risco? A população também precisa receber algum tipo de treinamento para lidar com os avisos", afirma.