Fileiras de palafitas, casas construídas elevadas sobre estruturas de madeira, algumas coloridas, em frente a casas de alvenaria, no bairro Educandos, no centro de Manaus
Fileiras de palafitas, casas construídas elevadas sobre estruturas de madeira, algumas coloridas, em frente a casas de alvenaria, no bairro Educandos, no centro de Manaus

Natureza do Desastre

Governos falham, e brasileiros são forçados a deixar suas casas e conviver com desastres naturais recorrentes

Capítulo 2
Amazonas

Moradores do AM abandonam comunidade afetada por erosão fluvial

Casas são engolidas pelo fenômeno das terras caídas às margens do rio Solimões

Marina Estarque
Amazonas

Um barulho grave vem do fundo da terra, como um trovão. O rio borbulha, faz espuma. Em seguida, a superfície da terra racha. "Aí é um desespero para sair de casa e tirar tudo", conta a agricultora Maria Pereira, 56. Conhecido como terras caídas, o processo de erosão fluvial ameaça a existência da comunidade de Maria, conhecida como Catalão, nas margens do rio Amazonas.

Ali, nos últimos anos, vários metros de terreno despencam de uma só vez, em intervalos de dias ou semanas. Desde o ano passado, a comunidade inteira está sendo reassentada em um terreno do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), a quilômetros de distância. Os ribeirinhos foram forçados a trocar a beira do rio pela beira da estrada. "Piorou muito as terras caídas. Dentro de alguns anos, Catalão não existe mais", diz Cleusom Carneiro, coordenador da Defesa Civil de Iranduba (AM), município onde a comunidade está localizada.

Ao chegar no local, a cerca de uma hora de barco de Manaus, é possível ver vários pés de couve enfileirados na beira do barranco. Algumas plantas estão penduradas pelas raízes, prestes a cair no penhasco. São as plantações dos ribeirinhos, que, mais dia, menos dia, desabam metros de altura e afundam no rio. Já as casas têm mais chances de serem salvas. Quando os moradores notam os sinais do desmoronamento, a comunidade, que tem hoje cerca de 70 famílias, se reúne para desmanchar as paredes de madeira. Em algumas horas, o trabalho é concluído, e a estrutura é montada depois em um local mais afastado.

Moradora de Catalão, no município de Iranduba, que irá se mudar com a casa para novo terreno, longe do rio
Moradora de Catalão, no município de Iranduba, que irá se mudar com a casa para novo terreno, longe do rio - Eduardo Knapp/Folhapress

"Se a gente escuta o barulho e vê as rachaduras, já chama todo mundo para ajudar. A comunidade é muito unida", conta Maria, cuja família está há cinco gerações no Catalão. A casa da agricultora já foi desfeita e arrancada sete vezes, mas três foram tragadas pelo rio, porque não houve tempo. "Quando a terra racha, demora um dia para cair tudo, às vezes menos", explica.

Como o processo leva algumas horas, os casos de morte por terras caídas são raros. Entretanto, os ribeirinhos temem que o fenômeno aconteça durante a noite, e dormem "com um olho aberto e outro fechado". "Tenho muito medo, a gente não tem sossego. Às vezes acorda no meio da madrugada para desmontar a própria casa ou a do vizinho", diz Maria. A preocupação é justificada, segundo o professor de geografia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) José Alberto Carvalho, especialista em terras caídas.

"Óbitos são pontuais, porque o conhecimento empírico dos ribeirinhos é fantástico. Mas, se cair, não acha mais o corpo. Porque a terra, quando despenca, forma um redemoinho que puxa, e a pessoa dificilmente escapa", afirma.

Em Catalão, não há histórias de morte, mas, nos últimos anos, a comunidade de agricultores e pescadores perdeu muito. Plantações, casas, o centro comunitário, duas igrejas e até a escola "foram para o fundo" – atualmente, as crianças estudam em uma sala improvisada.

Casa em Catalão, onde a terra cede na beira do rio Solimões, no Amazonas
Casa em Catalão, onde a terra cede na beira do rio Solimões, no Amazonas - Eduardo Knapp/Folhapress

Entre 2005 e 2017, ao menos 19 municípios do Amazonas e 36.602 pessoas foram afetados por esse tipo de erosão fluvial, segundo a Defesa Civil do estado. Mas é possível que o número seja ainda maior. De acordo com esses registros, o município de Iranduba, por exemplo, teve 541 pessoas afetadas e nenhum desabrigado ou desalojado –no entanto, apenas em Catalão, várias famílias tiveram casas destruídas.

"Antes ninguém se importava com terras caídas, achavam que era uma coisa natural. Agora já é uma preocupação de Estado", diz Carvalho, da Ufam. Segundo suas pesquisas de campo, o processo tem se agravado desde os anos 1970, quando o rio Amazonas começou a sofrer grandes enchentes.

"Estamos vivendo um tempo de anomalia. Em 2010 tivemos a maior estiagem registrada em todo o século, desde 1902. E, em 2012, veio a maior cheia já registrada até hoje. O fato é que o regime do rio Amazonas está em alteração", afirma. Especialistas apontam vários motivos para o aumento dos eventos climáticos extremos no Amazonas, como os fenômenos El Niño e La Niña, o aquecimento das águas do Atlântico, os movimentos de zonas de convergência, bem como as mudanças climáticas.

De acordo com Carvalho, as secas e enchentes anormais aceleraram a erosão. As terras caídas, afirma, são fenômeno predominantemente natural, causado pela pressão da água corrente, os ventos, as fortes chuvas, a composição do material das margens, entre outros fatores.

Em Catalão, a erosão se intensificou também por motivos locais. O curso do rio Amazonas sofreu uma mudança importante nos últimos anos naquela região. "Por razões que desconhecemos, a margem direita ficou assoreada e o rio foi forçado para a margem esquerda, que começou a sofrer desgaste, justamente onde está a costa do Catalão", explica.

As terras caídas, assim como as secas e enchentes extremas, afetam principalmente as comunidades ribeirinhas. Segundo pesquisa do Instituto Igarapé, ao menos 6,4 milhões de brasileiros ficaram desabrigados ou desalojados por desastres naturais desde 2000, o equivalente a um a cada dois minutos.

Dentre os estados, Amazonas e Santa Catarina são os mais afetados. Apesar de atingir milhares de brasileiros, políticas de prevenção de desastres definham no país.

Família de Maria Pereira, 56, limpa casa que será desmontada e movida para terreno cedido pelo Incra
Família de Maria Pereira, 56, limpa casa que será desmontada e movida para terreno cedido pelo Incra - Eduardo Knapp/Folhapress

Arrastar casas com roldanas

Assim como outras comunidades do Amazonas, onde ribeirinhos usam boias de plástico e macacos hidráulicos para enfrentar cheias recordes, os moradores de Catalão também desenvolveram estratégias adaptativas.

Ali, além de desmontar casas em algumas horas, outra solução encontrada é arrastar as moradias, por meio de um sistema de roldanas e cordas. O agricultor Odarli Gomes, 34, pagou R$ 10 mil para ter a casa puxada cerca de 200 metros, por dez homens. Um carpinteiro foi contratado para o serviço, que durou três semanas. A casa, de palafita, é arrastada sem as toras que a sustentam. Ela é transferida para uma esteira, que é apoiada e movida sobre um caminho de palafitas, cravadas no chão até o destino final.

"Puxaram com a gente dentro, cozinhando, trabalhando. Fiquei besta de ver", diz ele, que gastou todas as economias na mudança. "Muita gente aqui faz isso, mas a gente puxa a casa e, em um ano, já está perto do barranco de novo. Já caiu uns mil metros na frente da minha casa", lamenta Odarli, que ganha cerca de R$ 1.500 por mês vendendo hortaliças, principalmente, para programas públicos de apoio à agricultura familiar.

Assim como Maria, Odarli pretende se mudar para o assentamento do Incra, chamado de Novo Catalão. Só não foi ainda porque o terreno não tem água, energia elétrica ou escola. "Tenho dois filhos pequenos, que precisam estudar. E sem luz e água não dá para fazer as plantações. Estava juntando dinheiro para fazer a minha casa nova lá, mas fiquei aqui esperando, o barranco foi caindo, e tive que gastar os R$ 10 mil para salvar o que tenho", disse.

Com o aumento das terras caídas, Catalão também ficou mais vulnerável a enchentes. "Ficava anos sem alagar, agora todo ano a gente planta e não dá tempo de colher, a água leva", afirma. "É doído sair de Catalão, a minha família está aqui há cinco gerações, mas não tem jeito".

Moradores de Catalão, na beira do Solimões, carregam móveis na mudança da comunidade para outro terreno

Moradores de Catalão, na beira do Solimões, carregam móveis na mudança da comunidade para outro terreno Eduardo Knapp/Folhapress

Mudança

Quando a Folha visitou a comunidade, em janeiro, moradores faziam a terceira mudança para Novo Catalão. Um homem carregava uma geladeira apoiada na cabeça, outro um sofá, uma bicicleta rosa. O vaivém, debaixo de sol forte, durou boa parte do dia. Os objetos eram levados e acomodados em uma balsa, emprestada por um ex-morador da comunidade.

As casas de madeira colorida, parcialmente desmanchadas e sem paredes, deixavam à mostra seus cômodos e pareciam destruídas por alguma espécie de furacão. Ao redor, a aparência caótica das moradias contrastava com o cenário idílico do local: plantações verdejantes, na terra preta e fértil da várzea, uma floresta ao fundo, crianças brincando no rio Amazonas.

"Vou sentir muita falta do rio. A gente usa para lavar prato, roupa, tomar banho, pesca. É muita fartura", diz Raimunda de Lira, 37, enquanto o barco se afasta de Catalão. "Eu estou indo, mas não estou acreditando. É triste. Só peço a Deus que o futuro seja melhor", afirma ela, que deixa a terra onde nasceu rumo ao terreno do Incra.

Presidente da associação comunitária de Catalão, Raimunda luta há 15 anos por esse assentamento. "Só aceitamos ir quando nos ofereceram um lugar onde coubessem todas as famílias. Hoje 16 famílias se mudam, ainda ficaram 42", explica ela.

Plantação de coentro cultivada por ex-moradores de Catalão no terreno que agora ocupam, cedido pelo Incra
Plantação de coentro cultivada por ex-moradores de Catalão no terreno que agora ocupam, cedido pelo Incra - Eduardo Knapp/Folhapress

"O processo migratório forçado é muito difícil para eles, aqui estão próximos do rio, lá vão ficar perto da estrada. A agricultura de várzea é muito diferente da terra firme, e eles já dominam essa técnica há muito tempo", diz Reuly Ferreira, 35, ex-moradora de Catalão e assistente social da Prefeitura de Iranduba.

Ela decidiu acompanhar a mudança por seus vínculos com a comunidade. "Catalão era conectado por terra, agora virou uma ilha. Muitos já saíram pelas terras caídas, como os meus pais. O Catalão que eu conheci não existe mais", diz.

O reassentamento das famílias é uma odisseia. Na primeira viagem, o barco que carregava os pertences, a madeira para construir as casas, as plantas e os próprios moradores, naufragou. A embarcação tinha sido alugada pela prefeitura, que também emprestou caminhões para o trajeto final do porto ao assentamento.

"As pessoas começaram a gritar dentro do barco, vimos que ia afundar e conseguimos passar todo mundo para uma lancha. Foi cruel. Essas pessoas tinham tudo e foram viver no assentamento debaixo de uma tenda", conta Reuly.

O coordenador da Defesa Civil de Iranduba admite que o barco estava cheio demais. "Naufragou com o vento, a forte correnteza e o peso do material", diz Carneiro. Para ele, a prefeitura está fazendo tudo que pode. "Falta ajuda do governo do estado. Em 2017, foi decretada situação de emergência, solicitamos R$ 2 milhões e não veio um tostão. O que veio foi pouco", reclama. Procurada, a Defesa Civil do Amazonas disse que enviou "26 metros cúbicos de madeira, 54 caixas-d'água, 50 caixas de hipoclorito e 1 kit de medicamentos" para a comunidade.

Solange Moreira, 54, que com a irmã foi uma das primeiras moradoras de Catalão a se mudar para perto da estrada
Solange Moreira, 54, que com a irmã foi uma das primeiras moradoras de Catalão a se mudar para perto da estrada - Eduardo Knapp/Folhapress

Sem luz, nem água

As duas primeiras famílias a chegar no assentamento, em Iranduba, há oito meses, encontraram uma área de mata, sem nenhuma estrutura. Sobreviveram com doações de água e alimentos, que a Defesa Civil ou os antigos moradores do Catalão levavam.

As irmãs Solange Moreira, 54, e Neirelene Oliveira, 47, se mudaram com seus maridos e filhos, "na cara e na coragem". Ambas perderam boa parte da madeira e pertences no naufrágio e viveram "na rede e debaixo de lona por muito tempo" no Novo Catalão. "Tivemos que pagar um trator para limpar a área", contam. Depois de dois meses, um amigo, ex-morador de Catalão, doou o primeiro e único poço. "Pensa a alegria que foi quando saiu água!", lembra Neirelene.

Amigos carpinteiros acudiram e ajudaram a construir as primeiras casas, de graça. Para puxar a água do poço, usaram um motor a diesel, porque não havia energia elétrica. "Depois vieram e colocaram, mas só para o poço, disseram que tinha que ter 15 famílias para colocar a luz. Mas sem luz as pessoas não vêm. Com tanta rede por perto, não colocar aqui chega a ser desumano", diz ela.

Em janeiro, só três famílias viviam de forma fixa no assentamento. Outras visitavam o local para construir suas casas e voltavam para Catalão. "Estão se mudando aos poucos. É R$ 8.500 para furar um poço e precisa de um para cada duas famílias. Muita gente até tem o dinheiro, mas sem a energia para a bomba não adianta. Precisamos disso para a irrigação", afirma.

Questionado, o Incra disse que pediu "à Coordenação Estadual do Programa Luz para Todos a instalação de energia elétrica na área". "O atendimento escolar e assistência a saúde também foram solicitadas à Prefeitura de Iranduba", afirmou, por meio de nota. O Ministério de Minas e Energia disse que o atendimento à comunidade foi priorizado, e o Programa Luz para Todos deve ser executado no assentamento até junho deste ano.

Casas em Novo Catalão, comunidade formada por moradores de área afetada pelo fenômeno das terras caídas
Casas em Novo Catalão, comunidade formada por moradores de área afetada pelo fenômeno das terras caídas - Eduardo Knapp/Folhapress

Com 25 casas construídas –muitas de apenas um cômodo– o assentamento começava a tomar forma em meados de janeiro. Na entrada, uma faixa dizia: "Novo Catalão". Cada família recebeu R$ 5.200 do Incra para se instalar, um valor que não cobre todos os gastos. "Usei o dinheiro para comprar adubo, borracha para irrigação e começar a plantar. Na várzea a gente não precisava de adubo, aqui precisa, e é muito caro para nós", explica Solange.

Ao redor da casa das duas, as famílias cultivam cebolinha, cheiro verde, pimenta, tomate, couve, alface e pepino. "Tem só um mês que conseguimos tirar o primeiro plantio. Ganhamos cerca de R$ 300 ou R$ 400 por semana", conta Solange.

As irmãs reclamam da falta de apoio dos governos e dizem não conhecer seus direitos. "Prometeram muita coisa, mas a gente nem sabe a ajuda que podemos ter". Elas também temem um dia perder as terras. No Catalão, as famílias tinham a propriedade por herança, no assentamento, elas têm somente o direito de uso. "Dá medo de vir alguém e tirar, depois de todo o nosso esforço", diz Neirelene.

No início, deixar as suas terras foi muito difícil. Solange não consegue nem descrever. Seus olhos se enchem de água, ela fica muda. Os filhos ajudam: "Ela chorou que só", dizem. "Às vezes eu sinto falta, mas aí eu 'volto a si' e digo que estou melhor aqui. O Catalão se acabou", afirma Solange, resignada. A saudade do rio, no entanto, ainda aperta. "Lá eu tomava banho sempre, aqui só de cuia", compara.

Neirelene é mais positiva. Para ela, o assentamento já tem "cara de casa". "É duro recomeçar, mas depois fica bom. Dá gosto colher a verdurinha de novo", conta. Apesar de a vida ter melhorado, as irmãs não querem nem pensar em mais mudanças. Entre risos, mas com firmeza, garantem: "Daqui é só para o cemitério".