Cursar creche e pré-escola é um dos fatores que mais impulsiona o desempenho acadêmico das crianças nas séries seguintes, ao redor do mundo. Para os brasileiros mais pobres, porém, esse resultado não se repete.
A anomalia ocorre devido à má qualidade dessas escolas no país, segundo especialistas e estudos acadêmicos.
Uma das principais pesquisas realizadas sobre o tema no Brasil, feita pelo economista Daniel Santos (USP-Ribeirão Preto), mostra que ter ido à creche chega até a prejudicar o desempenho escolar de crianças mais desfavorecidas, cujas mães não chegaram a completar nem o ensino fundamental.
Essas crianças, quando alcançam a 5ª série do ensino fundamental, têm nota média menor em matemática do que aquelas de mesmo perfil social, mas que não chegaram a frequentar creche. Os resultados têm como base a principal avaliação nacional de aprendizagem, a Prova Brasil.
Em movimento inverso, no grupo de crianças cujas mães cursaram o ensino superior, aquelas que foram à creche tiveram nota melhor do que as demais quando chegaram na 5ª série do fundamental.
Ou seja, se o atendimento no ensino infantil é adequado, ele impulsiona a aprendizagem das crianças no futuro. O problema é que o bom atendimento não tem chegado a quem mais precisa no país.
A importância desse bom atendimento na primeira infância (0 a 6 anos de idade) ganhou notoriedade mundial quando passou a ser uma bandeira do prêmio Nobel de economia James Heckman.
O norte-americano avaliou o impacto de algumas políticas elogiadas em seu país, como a Head Start, de atendimento de saúde, nutrição e educação para crianças pobres de até cinco anos, e a Perry School, de atendimento educacional para crianças pobres de até quatro anos.
Heckman descobriu que passar por esses programas reduziu a chance de as crianças serem obesas aos 16 e 17 anos; de terem se envolvido com crimes aos 21; de serem adultos desempregados; e aumentou a motivação para o aprendizado escolar.
Pesa para o bom potencial dessa primeira etapa da vida o fato de o cérebro da criança nessa idade estar em plena formação. Se bem estimulado, são feitas conexões neurológicas que facilitarão a aprendizagem e o convívio social.
A ideia de "bem estimulado" é crucial para entender o resultado negativo dos alunos brasileiros pobres que passaram pelo ensino infantil.
Comparações internacionais apontam que as instituições brasileiras têm condições de atendimento inferiores a de países desenvolvidos.
Um dos pontos mais críticos é o número de crianças para cada professor. No Brasil, são 14 na creche e 21 na pré-escola. Nos países desenvolvidos, em média são apenas 8 e 14, respectivamente, segundo levantamento da OCDE (organização que reúne nações ricas).
Com tantas crianças para atender, fica mais difícil de oferecer a atenção adequada para cada uma delas.
Também há dificuldades no financiamento para essa etapa. No Brasil, investe-se 0,7% do PIB em ensino infantil. A média dos países desenvolvidos é quase 20% maior.
A diferença fica ainda mais acentuada se considerado o valor investido por criança ao ano. A média dos países desenvolvidos é de US$ 8.700, ante US$ 3.800 no Brasil e US$ 5.900 no Chile.
Há evidências de que maior qualidade tem um custo, indicou estudo do Ipea, liderado pelo economista Ricardo Paes de Barros, de 2011 (não há muitos estudos recentes).
Os pesquisadores analisaram creches do Rio de Janeiro. As crianças que foram para instituições consideradas de alta qualidade (20% melhores) apresentaram idade mental e social de desenvolvimento entre 1,8 e 2,3 meses maior do que as que foram para as 20% piores instituições.
Essa qualidade, porém, tem um custo alto. A pesquisa mostrou que o gasto das 20% melhores creches chega a ser 72% maior do que as 20% piores.
"A creche no Brasil foi formada pensando na ideia da assistência, não da educação", afirmou Santos, pesquisador da USP-Ribeirão Preto.
"As crianças, em grande parte, até têm um tratamento adequado de higiene e alimentação. Mas recebem poucos estímulos. São turmas grandes, que em muitos casos ficam assistindo televisão."
Em suas pesquisas, Santos observou fatores que levam a uma boa qualidade no ensino infantil: turmas menores, em salas com brinquedos disponíveis para as crianças (não trancados em armários); espaços para diferentes atividades (cantinho com livros, outro com brinquedos de montar); e professores que saibam dividir bem o tempo das crianças (para brincar, para estimular, para descansar).
"A preocupação tem sido com a abertura de vagas, porque a demanda é enorme. E a qualidade vai sendo levada no jeitinho brasileiro", disse Cisele Ortiz, coordenadora-adjunta do instituto Avisa Lá, que atua na formação de educadores para o ensino infantil.
Segundo ela, é comum que professores nessa etapa sejam contratados como auxiliares, para que as prefeituras não precisem cumprir regras como tempo remunerado destinado para formação.
O aumento no número de vagas em creches e pré-escolas, citado por Ortiz, é o grande fato positivo para essa etapa de ensino no Brasil. Hoje, a proporção de crianças matriculadas já é próxima da média da dos países desenvolvidos.
Algumas legislações impulsionaram esse crescimento. Lei federal determinou que todas as crianças entre 4 e 5 anos precisam estar matriculadas, a partir de 2016.
Ainda que a exigência não tenha sido completamente atendida (está em 91% do atendimento), houve crescimento. Em 2002, o índice era de 69%.
Outra legislação, o Plano Nacional de Educação, determina que 50% das crianças de 0 a 3 anos devem estar em creches até 2024. O atendimento hoje é de 30%, mas já foi de apenas 17% em 2005.
Em grande parte, essa pressão por aumento de vagas vem da necessidade das mães precisarem trabalhar e deixar os filhos em algum lugar seguro.
O atendimento público para o ensino infantil deve ser garantido pelas prefeituras, com apoio dos estados e da União.
Essa amarração, determinada pela Constituição, tem sido mais um dificultador para o ensino infantil. Se a União tem enfrentado problemas orçamentários, a situação é ainda pior para os municípios.
Recentemente, uma política nacional foi aprovada e pode ajudar a melhorar a qualidade das creches e pré-escolas.
A Base Nacional Comum Curricular, que deve começar a ser implementada no ano que vem, estabelece o que cada criança e jovem deve aprender, em cada ano, da creche ao ensino médio.
O documento determina, por exemplo, que crianças na casa entre 2 e 4 anos deve saber criar sons com materiais, objetos e instrumentos musicais, para acompanhar diversos ritmos de música.
E que na etapa seguinte deva expressar-se livremente por meio de desenho, pintura, colagem, dobradura e escultura. Até então, não estava tão claro o que cada criança deveria aprender em cada etapa.
"A Base Nacional é uma grande oportunidade de melhorar todo o sistema, incluindo a formação dos professores. Mas, sem um grande esforço de implementação, será uma oportunidade perdida", disse Beatriz Abuchaim, gerente de conhecimento aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, que atua na primeira infância.