Por meio de um áudio de WhatsApp, o professor Claudionor Tamuxi Iranxe orienta a reportagem sobre como chegar à terra indígena do povo manoki: após atravessar 100 km de campos infindáveis de agricultura mecanizada ao longo da BR-364, haverá "uma grande quantidade de matas de cerrado". "Esse é o nosso território", ele avisa.
Habitantes da transição entre cerrado e floresta amazônica, no município de Brasnorte (586 km a noroeste de Cuiabá), os manokis quase deixaram de existir após o contato com o branco. Mas vêm recuperando a população nas últimas décadas e, enquanto lutam para reaver o território original, se tornaram um dos povos indígenas que lançaram mão do plantio mecanizado de soja para obter renda.
A incursão dos manokis na produção da principal commodity agrícola brasileira começou em 2004, após decisão em conjunto com os parecis, povo vizinho. Naquele ano, eles desmataram mil hectares de cerrado, o equivalente a 2,2% do território. Dezessete anos depois, o tamanho da lavoura é o mesmo. Em proporção, é o oposto da ocupação dos solos das fazendas vizinhas, onde a vegetação nativa praticamente desapareceu.
Por anos, o plantio de soja dos manokis, dos parecis e dos nambiquaras funcionou à margem da lei. Além da falta de licenciamento ambiental, a terra era arrendada a fazendeiros e havia o plantio de transgênicos, ambas práticas proibidas em terras indígenas.
Até que, em dezembro de 2019, a cooperativa Coopihanama, que reúne os três povos, e a Coopermatsene, apenas dos parecis, assinaram um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), intermediado pelo MPF (Ministério Público Federal), para regulamentar a agricultura mecanizada em seus territórios.
As cooperativas se comprometeram, entre outros pontos, a não arrendar a terra nem a plantar transgênicos e a buscar financiamento em instituições regulares. Funai e Ibama subscreveram o acordo.
A expansão da agricultura mecanizada se tornou a grande bandeira do governo Jair Bolsonaro (sem partido) para terras indígenas. A gestão federal busca ainda aprovar no Congresso a abertura desses territórios para mineração e tem cumprido a promessa de barrar novas demarcações de terras, sob forte oposição do movimento indígena.
"É um projeto que queremos levar para todo o Brasil, para que, com isso, eles consigam auferir renda e maior dignidade", disse o presidente da Funai, o delegado da Polícia Federal e ex-assessor da bancada ruralista Marcelo Xavier. A fala está em um vídeo institucional do órgão indigenista gravado em abril dentro de uma colheitadeira de arroz, ao lado de um indígena bakairi, em Nobres (MT).
Ao contrário dos vizinhos parecis, cujas lideranças costumam aparecer em eventos públicos e até em lives ao lado de Bolsonaro, os manokis não veem o governo como aliado. Pelo contrário: em agosto, enviaram representantes a Brasília para participar do acampamento que acompanhou o julgamento do marco temporal no STF (Supremo Tribunal Federal).
Na visão dos manokis, a regularização da agricultura mecanizada se deve a um longo processo de negociação dos indígenas da região, por meio da Coopihanama.
"Para mim, é um governo louco, que não conhece nada a vida do índio. De um lado, apoia sobre a questão da agricultura. Mas eu não vou na conversa dele, não", afirma o cacique dos manokis, Manoel Kanunxi, 71. "Não lutei com o presidente para ele me dar apoio. Não lutei com nenhum candidato, deputado, senador, prefeito, vereador."
Os manokis afirmam que não querem ampliar a área desmatada. Tampouco, dizem, praticam o agronegócio do branco. Para eles, a lavoura mecanizada, que neste ano incluiu safrinhas de milho e de milho-pipoca, foi a única maneira encontrada para financiar gastos médicos, de transporte e outras necessidades criadas pelo contato com o kewa (branco).
A lavoura mecanizada emprega só quatro manokis de forma permanente, número que sobe na colheita. Aprenderam a operar as máquinas trabalhando em fazendas vizinhas ou em cursos. Nos dias em que a reportagem esteve no local, aplicavam calcário para equilibrar o solo. O único branco ali era um técnico -contratar um funcionário kewa é motivo de orgulho.
No ano passado, a lavoura mecanizada rendeu R$ 700 mil, a serem distribuídos entre os manokis (população estimada em quase 500 pessoas). O valor da divisão, aprovado em assembleia, foi decidido em um cálculo que mistura unidade familiar e um montante per capita.
"Eu não como soja. Mas a gente está colocando essa soja no mercado para sobreviver desse jeito, comprar remédio, ter exame particular. A gente está vendo que toda a coisa que você usa, você tem de pagar", diz Kanunxi.
A liderança menciona o tratamento da própria mulher, que teve de colocar um marca-passo no coração, financiado pela renda da soja. "É difícil, mas está valendo a pena. Se não fosse isso, a minha esposa tinha morrido."
O principal motivo do descontentamento dos manokis com Bolsonaro é a sua recusa em demarcar terras indígenas. Trata-se da prioridade máxima do povo, que há três décadas luta para ampliar o território em 206 mil hectares numa área de floresta, habitat tradicional dos manokis.
Até agora, as decisões têm favorecido a reivindicação, mas o processo é moroso. Em 2008, o Ministério da Justiça publicou portaria ratificando a ampliação, mas a homologação nunca foi assinada pela Presidência da República e atualmente é contestada por fazendeiros na Justiça Federal. Recentemente, os manokis tiveram uma decisão favorável em primeira instância.
Nas datas em que a Folha esteve na terra indígena, os manokis acompanhavam com apreensão o julgamento no STF da tese do marco temporal. Apoiada por Bolsonaro e pela bancada ruralista, ela prevê a demarcação apenas de áreas que estavam ocupadas por indígenas em 1988, quando houve a promulgação da atual Constituição.
A reivindicação territorial é baseada em farta documentação histórica, incluindo relatos do Marechal Rondon (1865-1958), que colheu informações e documentou a chacina perpetrada por seringueiros contra os manokis em 1900, marcando o início do contato.
"Onde haverá alma de brasileiro que não vibre uníssona com a nossa ao saber que toda aquela população, de homens, mulheres e crianças, morreu queimada, dentro de suas palhoças incendiadas?", escreveu o militar, em 1922.
Em meados dos anos 1950, após sofrerem com surtos de gripe coreana, sarampo e tifo, além de ataques de povos vizinhos, por sua vez pressionados pela chegada dos seringueiros, a maioria dos manokis, incluindo Kanunxi, foi convencida pelos jesuítas a deixar seu território. Assim, foram viver na missão Anchieta, ao lado da imponente cachoeira Utiariti, na terra dos parecis.
Por um lado, os manokis ficaram a salvo dos inimigos e receberam atendimento médico. Mas o rígido sistema escolar, que misturava povos e separava meninos de meninas, impunha o português. Com isso, o manoki só é falado pelos mais velhos.
Em 1968, os manokis se mudaram para a terra indígena (TI) Irantxe, área de 45,5 mil hectares, demarcada naquele ano. À época, estavam reduzidos a cerca de 50 pessoas.
Essa área está na margem esquerda do rio Cravari, onde predomina o cerrado, mas o território tradicional fica na margem direita, de floresta. De início, isso não era um problema, já que eles perambulavam em toda a região.
A partir de 1969, porém, começou a abertura de três fazendas, com recursos subsidiados pela Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia). Segundo a prefeitura de Brasnorte, a região começou a ser colonizada em grande escala a partir de 1978, com a chegada de famílias do oeste do Paraná.
Em poucos anos, os manokis foram cercados pela soja e pelo pasto. No território reivindicado, 40.700 hectares de floresta já foram destruídos.
Um dos fazendeiros desmatou até a beira do Cravari, próximo a duas cachoeiras sagradas para o povo. No local, ele chegou a construir uma pequena hidrelétrica sem licença ambiental, que foi desfeita após pressão dos indígenas.
Caso o STF avalize o marco temporal, os manokis devem perder o direito de retomar sua área tradicional. O julgamento foi suspenso por tempo indeterminado após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.
"Um povo que não tem o território demarcado não tem como viver como povo. A luta começou com os nossos avós, bisavós. O marco temporal é uma destruição para os povos indígenas. O governo fala que nós temos de integrar a sociedade. Mas não é integrar, é interagir. Se você integrar, você vai deixar de ser o que é para viver de outra forma. Esquecer sua língua, sua raiz e seu território", afirma o professor Edivaldo Mampuche Manoki, 34.
Outro problema para os manokis foi a construção da Pequena Central Hidrelétrica Bocaiúva, em operação desde 2010. Com o barramento, espécies como pacu e matrinxã, que eram parte da alimentação, sumiram do Cravari.
"É um impacto enorme e irreversível. Claro que tem a compensação, mas não é o suficiente pelo que causou à soberania alimentar tradicional do povo", afirma o professor Claudionor Iranxe.
Questionada sobre o impacto, a empresa Sileia Participações, que é a controladora da hidrelétrica, afirmou que "não há elementos técnicos para o estabelecimento dessa relação causa e efeito, isto é, de que a construção do empreendimento tenha sido a causa para o desaparecimento de espécies da ictiofauna".
A deterioração ambiental ao redor tem levado os manokis a percorrer dezenas de quilômetros para caçar e pescar, atividades relacionadas aos preparativos de festas tradicionais. Muitas vezes, eles não conseguem acessar esses territórios por causa da proibição de fazendeiros.
No território atual, para além da soja, os manokis têm a roça tradicional, onde plantam cará, banana, batatas, além de terem quintais com árvores frutíferas e hortas. Quase todo o preparo da terra ali é manual. Há também uma produção incipiente de mel e piscicultura.
Muitas famílias produzem artesanato -uma rede manoki, de algodão, pode levar até três meses para ficar pronta. Há também funcionários públicos na educação e na saúde.
Com uma exceção, todas as aldeias estão longe da lavoura de soja. As casas, de madeira ou cimento, são parecidas no estilo simples, mas têm água encanada, luz e internet.
"Na minha visão, quero esquecer esta lavoura [de soja]. Ela não vai sustentar o povo. Vai ajudar numa hora que precisa. Mas, para viver dessa lavoura, não", afirma o presidente da Associação Watoholi, Paulo Sérgio Kapynxi, 52.
"O que temos de fazer é roça que não tem veneno, ter criação, fazer farinha. Na hora de pagar uma cirurgia, comprar medicamento de alto custo, aí vamos nos lembrar da lavoura. Mas, enquanto isso, esquece a lavoura", conclui.