Ao longo do século 18, diversas comunidades de ex-escravizados se espalharam pelo rio Guaporé, na atual fronteira com a Bolívia. Sobreviveram a expedições de captura e extermínio, à chegada dos seringalistas e à colonização de Rondônia iniciada na ditadura militar. Até que a Constituição de 1988 assegurou aos quilombolas o direito à regularização fundiária.
O processo, no entanto, tem sido moroso, está longe do fim e agora esbarra na promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de não demarcar "nem um centímetro de terra" a quilombolas e indígenas.
Em Rondônia, apenas duas das oito comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares foram tituladas pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), ambas antes de Bolsonaro. O estado não destoa da média nacional: somente 317 das 3.456 comunidades quilombolas reconhecidas estão regularizadas, 9% do total.
Sem mudanças normativas, a paralisação está ligada principalmente à queda acentuada do orçamento para o trabalho de campo e para as indenizações de terra, declínio iniciado em 2015, no governo Dilma Rousseff (PT).
Em 2020, o limite autorizado para a Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas (DFQ) foi de R$ 2.922.525, o menor valor em pelo menos uma década. No mesmo ano, o Ministério da Defesa desembolsou R$ 2,5 milhões para comprar vinho.
Em dois anos sob Bolsonaro, o Incra titulou parcialmente duas comunidades quilombolas, Invernada Paiol de Telha (PR) e Rio dos Macacos, na região metropolitana de Salvador, onde há uma disputa com a Base Naval de Aratu, da Marinha.
Após ação civil pública movida pela ONG Terra de Direitos, a Justiça Federal determinou que o governo Bolsonaro pagasse a indenização de áreas privadas dentro de Paiol de Telha, no município de Reserva do Iguaçu (PR). Como resultado, em novembro de 2020, Bolsonaro assinou uma lei que transferiu para o Incra o montante de R$ 26.717.063,00.
Segundo o Incra, há 28 imóveis rurais incidentes em territórios quilombolas pendentes apenas de indenização, totalizando R$ 25,7 milhões. Com os recursos do orçamento de 2020 destinado a indenizações, seriam necessários 9,5 anos para quitar esse montante.
Mas o gargalo é muito maior. Os processos em trâmite no Incra somam 1.806, dos quais 617 na Amazônia Legal, o que inclui Mato Grosso e parte do Maranhão.
"O nosso problema se chama Incra. Não tem fazendeiro e nada aqui, a gente está em terra da União, não tem conflito", diz o quilombola Apolônio França Neto, presidente da associação da comunidade de Pedras Negras, cuja regularização tramita desde 2005. "O nosso presidente disse que não ia dar nem um palmo de terra para quilombola e está se cumprindo, infelizmente."
Acessível apenas por barco ou avião, Pedras Negras foi identificada como comunidade quilombola por meio da pesquisa do historiador Marco Teixeira, da Universidade Federal de Rondônia (Unir). Fonte dos processos de reconhecimento desses territórios, seu trabalho identificou a origem da população negra do Guaporé nos africanos trazidos por portugueses no século do 18, dentro do tripé colonial de mineração, escravidão e ocupação militar das fronteiras.
A população negra ali está vinculada a duas grandes iniciativas. A descoberta de grande quantidade de ouro na região levou os portugueses a construírem, no alto rio Guaporé, Vila Bela da Santíssima Trindade. Fundada em 1752 às margens do Guaporé, foi a primeira capital de Mato Grosso.
Décadas mais tarde, a presença portuguesa foi reforçada com a construção do imponente Real Forte Príncipe da Beira, inaugurado em 1783, após sete anos de obras, tocadas por escravizados e trabalhadores livres. Com um perímetro de cerca de 900 metros, é a maior edificação colonial na Amazônia e está a centenas de quilômetros ao norte de Vila Bela.
Teixeira calcula que 10 mil africanos tenham sido levados ao Guaporé ao longo de 50 anos. Logo, se tornaram a imensa maioria da população não indígena local. Segundo o historiador, as péssimas condições de trabalho na região provocaram grande mortalidade _em média, um escravizado que não fugisse morria após seis meses da chegada.
Na Amazônia, o principal porto de entrada dos africanos escravizados foi Belém –o Pará é o estado com mais comunidades quilombolas do Norte. Segundo a Fundação Palmares, a região abriga 369 comunidades, 11% das reconhecidas do país.
O pico do tráfico para a Amazônia ocorreu entre 1800 e 1810, com o desembarque de 10.927 escravizados, segundo o livro "The People of the River" (o povo do rio), do historiador Oscar de la Torre, da Universidade da Carolina do Norte.
"Vendeu-se por muito tempo a narrativa que na Amazônia não tem negro nem teve escravidão", afirma Givânia Maria da Silva, da Conaq (Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas).
Segundo ela, a escravidão no Norte criou modelos diferentes aos do Nordeste e Sudeste. Em consequência, as comunidades quilombolas locais trazem características comuns ao povoamento tradicional amazônico, como a interação com os rios e o usufruto de grandes áreas.
Após o fim do ouro e o abandono do forte pelos militares, a região perdeu interesse estratégico por décadas, até a chegada do ciclo da borracha, no final do século 19, quando os quilombolas passaram a trabalhar para seringalistas vindos de fora. A borracha amazônica, no entanto, foi perdendo importância econômica após o fim do segundo ciclo, encerrado com a Segunda Guerra (1939-145)
A pressão mais recente ocorreu a partir das décadas de 1960 e 1970, com a chegada de colonos a Rondônia. Disputas territoriais, a decadência da navegação fluvial e a falta de escolas levaram centenas de famílias a deixarem as comunidades quilombolas rumo à cidade.
"Era uma comunidade isolada das estradas, mas não do rio porque o barco passava. A gente sabia o dia, os horários, tinha rádio de comunicação, produzia farinha e borracha", afirma o funcionário público Juracyr Nogueira de Menezes, 55, ex-morador da comunidade Santo Antônio.
"Há falta de assistência. Santo Antônio está sem energia desde novembro. Nessa era em que estamos hoje, é difícil para a pessoa ficar ali. E esse jovem não tem estrutura para ficar na cidade, muitos pegam o caminho da droga, o mais fácil, e acaba morto ou preso."
Esvaziada, Santo Antônio é uma das seis comunidades à espera de regularização. As poucas famílias que restaram produzem principalmente farinha d"água. Com a falta de energia, a internet não funciona. Para piorar, o telefone público estava quebrado havia dois meses quando a reportagem visitou a comunidade, no final de janeiro.
O imbróglio ali envolve a Reserva Biológica do Guaporé, criada em 1982. A unidade de conservação, que proíbe qualquer tipo de ocupação humana, inclui todo o território quilombola, ignorando os moradores que habitam o local há mais de 200 anos. Via assessoria, o Incra informou que, para regularizar, é necessária a desafetação por meio de um projeto de lei a ser aprovado pelo Congresso, um cenário distante.
Em Pedras Altas, os comunitários afirmam que a falta de titulação dificulta a comercialização formal da castanha-do-Pará. Eles preferem vender para bolivianos, do outro lado do rio, atividade que tem sido alvo de repressão policial. Outra fonte de renda é o turismo de pesca, por meio de pousadas administradas pelos próprios quilombolas. Segundo o Incra, o processo de de regularização está na fase de publicação da portaria de reconhecimento, sem data para conclusão.
Na comunidade Forte Príncipe da Beira, a 25 km em estrada de terra de Costa Marques (RO), o conflito territorial é com o 1º Pelotão Especial de Fronteira (PEF), do Exército. Vizinhos da construção histórica e do quartel, os moradores dizem que os militares passaram a perseguir a comunidade após a decisão de regulamentar a área como território quilombola, no início deste século.
Ao longo dos últimos anos, foram inúmeros incidentes, desde proibição para abrir roça até impedir a venda de castanha-do-Pará para compradores bolivianos. A convivência melhorou após 2019, com a assinatura de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) intermediado pela Justiça e pelo Ministério Público Federal, mas a titulação continua incerta.
"A região é de fronteira e de extremo interesse para as atividades militares, a fim de garantir a integridade do território nacional. O Exército não se opõe à regularização da situação dos ocupantes da área. Porém, por se tratar de local de fronteira, é preciso harmonizar os interesses de defesa territorial brasileira com a necessidade de regularização em questão", afirmou a força armada.
O Incra informou que o RTID (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação) foi concluído no final de 2020 e está sendo analisado pela procuradoria jurídica do órgão.
"Nós somos tolerados hoje pelo pelotão. Não é que somos aceitos nem que eles são bonzinhos", afirma o presidente da associação quilombola, Elvis Pessoa, 42, filho de brasileiro com boliviana, arranjo comum na região. "Tem um decreto assinado pela equipe deles que diz que tem de ser assim."
Colaborou Monica Prestes, de Manaus.