Na Amazônia, currutelas são povoados surgidos na boca da floresta, próximas a garimpo ou desmatamento. Criada em 2016, a Vila Renascer não para de crescer. A cada dia, surgem casas, igrejas evangélicas, bares, restaurantes, oficina mecânica, posto de gasolina, mercado, postes de rede elétrica e até um pequeno hotel. Pela lei, no entanto, nada disso deveria existir: o lugarejo está encravado na Terra Indígena Apyterewa (TI), do povo parakanã, homologada em 2007.
A presença de não indígenas em Apyterewa começou no início da década de 1980. A sua retirada era uma das condicionantes da licença ambiental para a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, que atravessa a região. Ao invés disso, a invasão explodiu. No governo Michel Temer (MDB), o Ministério da Justiça ignorou determinação do STF e paralisou a retirada de posseiros e de invasores de má-fé, ou seja, que entraram na área conscientes de que se tratava de uma terra indígena.
Após o recuo do governo, houve novas invasões e abertura de novos garimpos. Esse movimento explodiu no final de 2018 e no início de 2019, com a promessa de Jair Bolsonaro de revisar demarcações de terras. O desmatamento se alastrou para a Trincheira Bacajá, do povo xikrin, enquanto ganhou força o mercado ilegal de lotes dentro das terras indígenas.
O resultado é que, em 2019, Apyterewa perdeu 8.420 hectares de floresta, comparável a 53 Parques Ibirapuera, a maior taxa de desmatamento desde sua homologação, há 13 anos. Trincheira Bacajá teve 5.600 hectares desmatados, também a maior perda de cobertura vegetal desde a homologação, em 1996. Os números são do sistema Prodes, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Especiais), que mede de agosto a julho do ano seguinte.
"Quando cheguei aqui, só eram a igreja e uma vizinha", diz o pastor Valdir dos Santos, 46, que mora na vila há quatro anos. "Graças a Deus, já está chegando a mais de 2.000 casas."
Natural de Belém, ele trabalhou de início como cabeleireiro na vila. Depois, conseguiu um lote, onde plantou cacau, mandioca e banana. Além disso, administra uma das quatro igrejas evangélicas, onde estima atender a 40 fiéis.
O pastor diz que Renascer recebe famílias até de outros estados, com a esperança de que Bolsonaro regularizará a invasão: "O povo daqui acredita nessa fala do presidente", disse, em conversa na varanda do casebre erguido no lote. "Estamos aguardando esse momento acontecer."
Na entrada da pequena casa de madeira onde funciona a Igreja de Missões, Santos colocou uma faixa com a seguinte passagem bíblica: "Disse: quão terrível é este lugar! Este não é outro lugar senão a casa de Deus; e esta é a porta dos céus".
Abastecido por uma rede elétrica puxada ilegalmente, Renascer se tornou a base logística para invasão e grilagem de terras indígenas. Para penetrar na floresta, os invasores reativaram uma longa estrada aberta pelos madeireiros ilegais de mogno nos anos 1980. A via começa em Apyterewa, passa pela TI Araweté Igarapé Ipixuna, dos índios arawetés, considerados de recente contato, e chega até Trincheira Bacajá.
Um morador contou ter adquirido um lote a 130 km da vila "na região do Ipixuna", área homologada dos arauetés. Na estrada de terra de acesso à vila, a reportagem encontrou uma família que, em um Fiat Uno abarrotado, estava de mudança para a região, após negociar um lote de 163 hectares por R$ 15 mil.
A presença do estado na Vila Renascer se resume a uma base permanente com funcionários da Funai e policiais da Força Nacional, sem poder de interferência no fluxo de invasores.
Localizada no alto de um morro a algumas centenas de metros da vila, a base inclui uma casa e é protegida por uma cerca de arame. Na entrada, está a placa "Terra Protegida - acesso interditado a pessoas estranhas", que costuma ser colocada nos limites das terras indígenas.
Na área da Apyterewa percorrida pela Folha, predominam pastagens, e o trânsito de caminhões com gado é comum. O município de São Félix do Xingu, onde se localiza a Apyterewa, concentra o maior rebanho do país, com 2,3 milhões de cabeças em 2018. Em dez anos, o crescimento foi de 18%. Os dados são do IBGE.
Por causa da epidemia da Covid-19, a reportagem não visitou as comunidades parakanãs.
A chegada de invasores, geralmente agricultores pobres, tem o incentivo de fazendeiros com terras dentro de Apyterewa, segundo relatos de moradores.
"A gente fica muito alegre, satisfeito. A gente quer mandar os parabéns pra eles porque é uma coisa muito bacana que fizeram pra população", diz o colono goiano Edson de Morais, 51. "Cederam, não pegaram nenhum centavo, fizeram foi dar mesmo pra população. Desde que o pessoal começou a entrar, eles começaram a ajudar. Aí foi dividindo, dividindo, até que encheram as áreas."
Morais citou quatro fazendeiros: Paulinho, Joãozinho da Motolândia, seu João, de Palmas (TO), e Ourias. Todos, diz, distribuíram lotes em quatro áreas dentro de Apyterewa. "A gente fica satisfeito de as pessoas ajudarem os mais fracos."
O agricultor mora em uma casa simples de tijolos aparentes na Vila Sudoeste, um distrito de São Félix do Xingu surgido a partir de um assentamento do Incra. Está a 60 km da Vila Renascer, em área vizinha à Trincheira Bacajá.
Nascido em Goiás, ele conta que há três anos comprou um lote de 272 hectares. Doou 54 hectares a dois pastores e desmatou outros 11 hectares, onde tem roça e capim. Afirma que é a primeira vez que possui uma terra própria.
No ano passado, os xikrins fizeram uma expedição para expulsar os invasores. Destruíram alguns barracos, mas Morais e outros invasores resistiram. Houve também operações da Polícia Federal e do Ibama, baseadas em uma decisão judicial de reintegração de posse. O agricultor, no entanto, persiste e confia no atual governo federal.
"A esperança de todos é que o Bolsonaro venha cumprir aquilo que ele está sempre prometendo pro povo, que vai reduzir a terra dos índios", afirmou. "A esperança é que ele reduza essas terras dos índios pra eles saberem quanto custa um pacote de arroz, pra eles não chegarem dentro das casas das pessoas e invadirem tudo."
Uma investigação recente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) encontrou casos de colonos coagidos a trabalhar na terra em troca de um lote e de contribuir para uma associação. A área prometida, no entanto, acaba vendida para outra pessoa, e o posseiro é expulso.
Em junho do ano passado, um dos principais líderes da grilagem de Apyterewa, Carlos Cabral, foi assassinado a tiros em Rio Maria (PA). Na época, a Polícia Civil decretou a prisão temporária de três fazendeiros acusados de promover grilagem. Nas diligências, foram apreendidas cerca de 40 armas de fogo, além de munição.
A redução da TI Apyterewa, com uma área de 773 mil hectares, tem sido defendida por associações lideradas por fazendeiros. A iniciativa conta com o apoio jurídico da Prefeitura de São Félix do Xingu, atualmente comandada por Minervina Barros (PSD).
Em 26 de maio, eles obtiveram uma vitória parcial no STF. A pedido da prefeitura e de uma das associações, o ministro Gilmar Mendes intimou a União "sobre o interesse na tentativa de conciliação proposta pelo município de São Félix do Xingu".
A decisão faz parte de um mandado de segurança impetrado em 2007 pela prefeitura e pelas associações. A ação questiona a homologação da terra indígena, assinada naquele ano.
Para o procurador do município Igor Franco de Freitas, o objetivo da ação no STF é que se refaça o estudo antropológico de Apyterewa. As associações afirmam que a maior parte da área demarcada nunca teve presença indígena e que a maioria dos ocupantes tem a posse da terra de boa-fé.
"Constatado que tem ocupação tradicional dos índios nos 773 mil hectares, todos os presidentes abrirão mão de todos os seus direitos", afirmou Freitas, em entrevista na prefeitura de São Félix, ao lado de três lideranças dos ocupantes.
A decisão de Mendes foi contestada pelo procurador-geral da República, Augusto Aras. Em parecer, ele defendeu a inclusão dos parakanãs e do Ministério Público Federal (MPF) no processo de conciliação e a realização de uma audiência pública.
A União até agora não se pronunciou sobre a decisão de Mendes. Segundo Freitas, o prazo para manifestação termina no dia 14 deste mês.
Presente na prefeitura, uma das principais lideranças dos ocupantes de Apyterewa, o fazendeiro Vicente Paulo Lima, o Paulinho do Ditão, negou a distribuição de lotes para invasores. "Como nós estamos doando se tudo já tem dono? Desde 1980, já existem as pessoas."
Lima aparece na lista dos 268 ocupantes de boa-fé com direito à indenização relacionados pela Funai, por estarem na área antes da Portaria Declaratória da TI, editada em 2001. O fazendeiro, no entanto, diz que hoje há 2.500 famílias ocupando terras dentro de Apyterewa.
Um dos investigados pelo assassinato de Cabral, o fazendeiro teve a prisão temporária decretada, mas não chegou a ser detido. À Folha ele negou qualquer participação no crime.
Os parakanãs são um povo tupi-guarani e se dividem em dois grupos. Em Apyterewa, vivem os parakanãs ocidentais, hoje com 728 pessoas. O contato desse grupo com a sociedade nacional é recente, do início dos anos 1980.
Nessa época, eles passaram a sofrer forte pressão de madeireiras ilegais de mogno e de garimpeiros. As estradas abertas permitiram a entrada de posseiros e de colonos, como registro de diversos incidentes com os toris (não indígenas).
Atualmente com a posse de apenas 20% do seu território, os parakanãs divulgaram um comunicado criticando a decisão de Gilmar Mendes. "Nós, povo parakanã, não aceitamos a tentativa de conciliação, pois, no passado, já foram feitos acordos e, mesmo assim, os posseiros continuam invadindo nosso território", afirma um comunicado divulgado pela Associação Indígena Tato"a.
Em vídeo enviado à Folha por WhatsApp, a liderança Surara Parakanã afirmou: "Está escrito lá no papel que a TI Apyterewa é do povo parakanã. Devolva a terra Apyterewa para o povo parakanã, mas que seja o mais rápido possível. Porque, se vocês demorarem muito, vocês vão entregar uma terra vazia pra nós. Nós não queremos uma terra vazia".
Colaborou Monica Prestes