Há pelo menos três gerações, a família de Raimundo Benedito, 35, quebra castanha às margens do igarapé do Cedro, perto da divisa do Amazonas com o Acre. A rotina começou a mudar há quatro anos, quando surgiram picadas e pessoas desconhecidas no meio da mata. A partir daí, os castanhais nativos passaram a ser derrubados para dar lugar ao pasto.
"Na primeira vez que topamos com os caras lá, um deles disse: 'Se vocês quiserem alguma coisa, têm de ir pro final da picada e fazer um lote pra vocês, porque aqui mesmo todo o mundo já tem dono", diz Benedito, em conversa na varanda da sua casa de madeira, a poucos metros do rio Purus, na Reserva Extrativista (Resex) Arapixi.
A invasão da pecuária sobre áreas de populações tradicionais é recorrente na Amazônia. A criação das Resex, a partir do assassinato do líder seringueiro Chico Mendes, em 1988, foi a resposta do governo federal para conter esse avanço. Administradas pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), são áreas protegidas com o objetivo de assegurar o modo de vida de populações tradicionais não indígenas e de incentivar o uso sustentável dos recursos naturais.
O problema dos Benedito e de dezenas de outras famílias é que, na Resex Arapixi, a delimitação, oficializada em 2006 durante o governo Lula (PT), deixou os castanhais de fora. Localizados perto de igarapés que desembocam no Purus, eles ficam dentro do Projeto Agroextrativista (PAE) Antimary, uma área delimitada em 1988. Sob responsabilidade do Incra, tem uma proposta de uso tradicional parecida à de uma Resex –e também proíbe a pecuária em larga escala.
Junto com a banana, a castanha é a principal renda dos moradores da Resex Arapixi. A coleta, feita no início do ano, costuma envolver toda a família –Benedito começou aos 12 anos. Durante um mês, eles se mudam para um barraco erguido dentro da colocação, o nome dado à região de castanhais exploradas por cada família.
A viagem é feita de canoa em igarapés sinuosos. Muitas vezes, a passagem fica obstruída por árvores que caem naturalmente e precisam ser cortadas com motosserra. Cada vez que a embarcação encosta nas folhas das margens, aranhas de várias espécies e tamanhos caem sobre os passageiros.
A rotina exaustiva começa de madrugada e termina no meio da tarde. Ao redor das árvores majestosas de até 50 metros de altura, os castanheiros recolhem os ouriços, os quebram com facões, retiram a castanha-do-Pará e as transportam usando paneiros (cestas artesanais).
No barraco, as famílias dormem em redes, um sono muita vezes interrompido pelos mosquitos, como o minúsculo maruim, que ataca no couro cabeludo e provoca uma forte coceira.
Ao final de um mês de coleta, as famílias voltam com as canoas abarrotadas. Geralmente, a produção é levada para Boca do Acre (AM), também às margens do rio Purus.
De início, os moradores não sabiam os limites da Resex. Benedito diz que só os descobriu em 2010, quando a sua família cruzou com uma equipe do ICMBio na áreas dos castanhais. "Aí o pai respondeu: 'Mas então a Resex só ficou com área alagada? Porque aqui só é igapó, o principal era o castanhal e ficou todo lado de fora." Ele disse: "É, infelizmente é isso".
"Apesar de ser uma área utilizada pelos extrativistas, o fato de os castanhais estarem dentro do PAE levou ao entendimento de que estavam protegidos e disponíveis para a exploração sustentável", afirma João Paulo Capobianco, então presidente do ICMBio durante a demarcação, em 2006. "Não se esperava que o PAE seria objeto de conflito com pecuaristas que vêm ocupando o assentamento, promovendo o desmatamento ilegal e conflitos com as famílias ligadas ao extrativismo e agricultura familiar", diz.
Esse processo de invasão começou há cerca de uma década, se intensificou a partir de 2014, no governo Dilma (PT), e ganhou um novo impulso no ano passado, em meio a promessas do governo Jair Bolsonaro de regularizar posses dentro de terras públicas invadidas.
Marco temporal da regularização fundiária na Amazônia - de Lula a Bolsonaro
25 de junho de 2009 Lei 11.952 - Aprovada na gestão de Lula (PT), autorizou a emissão de títulos de áreas públicas de até 1.500 hectares na Amazônia, ocupadas e desmatadas ilegalmente até dezembro de 2004, e dispensou a vistoria prévia à emissão de título para áreas de até 400 hectares
28 de outubro de 2009 Decreto 6.992 -regulamentou a Lei 11.952, estipulando as regras para dispensa de vistoria em imóveis com até 400 hectares e exceções como autuação ou embargo por infração ambiental, requeridas via procuração, com indícios de conflito de terra ou de fracionamento da área
22 de dezembro de 2016 Medida Provisória 759 - Proposta por Michel Temer (PMDB), alterou a Lei 11.952/2009, aumentando a área passível de regularização para até 2.500 hectares, e mudou o marco temporal para regularização de terras públicas invadidas para dezembro de 2011
11 de julho de 2017 Lei 13.465 - Sancionada no governo Temer, ampliou regras da Lei 11.959/2009 para todo o Brasil, oficializou a ampliação das áreas passíveis de regularização para até 2.500 hectares e o marco temporal de dezembro de 2011, previstos na MP 759
15 de março de 2018 Decreto 9.309 - Publicado no governo Temer, manteve as exceções do Decreto 6.992/2009 para a isenção de vistoria na avaliação do imóvel: imóvel embargado ou autuado por infração ambiental, com indício de fracionamento, cadastrado via procuração ou com conflito de terra
10 de dezembro de 2019 MP 910 - Proposta por Jair Bolsonaro (sem partido), aumentou para 1.500 hectares as áreas passíveis de dispensa de vistoria para regularização, além de mudar o marco temporal para regularização de 2011 para dezembro de 2018. A MP vigorou de dezembro de 2019 a maio de 2020
10 de dezembro de 2019 Decreto 10.165 - Publicado por Bolsonaro, alterou o Decreto 9.309/2018, revogando as exceções para a isenção da vistoria prévia à titulação dos imóveis rurais, tornando o processo menos rígido
16 de abril de 2020 Instrução Normativa 09, da Funai - Reconhece a possibilidade de regularização de ocupações privadas dentro de territórios indígenas em fase de homologação, estimulando a invasão dessas áreas. A IN 09/2020 foi suspensa em 9 de julho pela Justiça Federal do Mato Grosso
14 de maio de 2020 Projeto de Lei 2.633 - Proposto pelo deputado federal Zé Silva (Solidariedade-MG), amplia a isenção de vistoria para imóveis de até 600 hectares e estabelece a regularização via licitação para propriedades que não atendam ao marco temporal vigente, sem, no entanto, vetar a participação do invasor no processo, estimulando assim invasões na expectativa da regularização futura
O ano-calendário de 2019 foi o mais devastador da história do PAE Antimary, segundo o monitoramento Prodes, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Foram perdidos 5.108 hectares de floresta de agosto de 2018 a julho do ano seguinte.
Uma perícia da Polícia Federal revelou que, somente entre 27 de abril e 9 de setembro do ano passado, foram desmatados ilegalmente 2,8 mil hectares, o equivalente a 18 áreas do parque Ibirapuera, em São Paulo.
Alheio aos dados de satélite, Benedito confirma o aumento do estrago. "Primeiro, só derrubavam um pouquinho aqui e plantava um pouquinho de capim, derrubava um pouquinho aqui e plantava um pouquinho de capim. Agora não, estão emendando esses pouquinhos, cada pouquinho estão emendando tudo já. Grande derrubada mesmo", afirma. "Na nossa colocação, aumentou mais no ano passado."
Derrubar castanheira é crime, já que a espécie consta na Lista Nacional Oficial de Espécies da Flora Ameaçadas de Extinção, na categoria vulnerável. Além disso, desde 2006, um decreto federal proíbe a sua exploração para fins madeireiros.
Na área de castanhais percorrida pela Folha em meados de março, o desmatamento abre clarões na floresta e chega até a beira do igarapé Cedro. Algumas partes foram recém-derrubadas, enquanto outras já estão com pasto. Em uma delas, havia uma casa de madeira recém-construída.
Além da perda dos castanhais, alguns extrativistas são obrigados a ceder parte de sua produção. Outros afirmam que os próprios invasores coletam o fruto, e há casos de venda de colocação –prática ilegal, já que se trata de terra pública.
A família Benedito já perdeu uma parte dos castanhais, mas resiste ao assédio: "Já teve proposta grande pra vender, mas o meu pai nunca vendeu. Sempre o propósito dele é dizer assim: 'Se eu vender, hoje pego o dinheiro, amanhã acaba, e aí? Os meus filhos, meus netos, como é que vão viver?". Isso aí já vem de muito tempo, passou pro meu avô, do meu avô já passou pra ele, dele já está passando pra nós."
A promessa de Bolsonaro de legalizar grilagens e reduzir a proteção ambiental ganhou forma em dezembro, quando ele assinou a Medida Provisória (MP) 910. O texto original estendia até o final de 2018 o marco temporal para a regularização de terras públicas invadidas. Entre outras facilidades, o governo também previa a venda dessas áreas aos grileiros a preços bem abaixo dos valores de mercado.
"Temos mais de 30% de áreas [da Amazônia Legal] que não têm nada e são da União. Terra da União é dos senhores, é do povo. Vamos ter de voltar ao exemplo do saudoso presidente Emílio Garrastazu Medici (1969-1974) e dizer: vamos integrar a Amazônia brasileira para não entregá-la a essas ONGs que têm interesses escusos", discursou, em setembro, o secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia, durante audiência pública em Porto Velho (RO).
Após forte crítica de ambientalistas e campanha nas redes sociais, em maio a MP 910 foi substituída no Congresso pelo Projeto de Lei 2.633, que mantém o atual marco temporal de regularizar terras ate 2011, mas com brechas.
"Querem adicionar um dispositivo para licitar imóveis que não se enquadram nos requisitos de regularização, mas sem prever critérios específicos pra impedir distorções. Isso pode significar legalização de áreas invadidas depois de março de 2011 ou até após a aprovação desse PL", diz a pesquisadora Brenda Brito, do Imazon (Instituto Homem e Meio Ambiente da Amazônia).
Para o procurador Rafael Rocha, do Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas, as mudanças sucessivas no marco temporal ao longo da história, novamente propostas sob Bolsonaro, alimentam a indústria da grilagem na Amazônia.
"Sinalizam que o que é ilegal hoje ou mesmo o que é ilegal à luz da MP e do projeto de lei podem ser regularizados amanhã", diz Rocha. "O sujeito não se preocupa em cometer uma ilegalidade invadindo ou ocupando uma terra pública. Ele acaba acreditando que, mesmo que ele nao esteja enquadrado hoje na norma, daqui a alguns anos vai obter regularização."
A situação dos castanheiros tem recebido a atenção da Força-Tarefa Amazônia, criada em 2018 pelo MPF. A iniciativa, da qual participa Rocha, aborda problemas ambientais e fundiários de forma integrada com órgãos públicos e a sociedade civil.
Em maio, o MPF participou de uma operação conjunta no PAE Antimary contra o desmatamento, com participação do Exército, do Ibama, da PM, do ICMBio e da PF.
Ao longo de seis dias, foram cumpridos 76 mandados de busca e apreensão. Treze pessoas foram presas em flagrante, além de 14 armas de fogo e 14 motosserras. As multas aplicadas pelo Ibama somam R$ 2 milhões, segundo nota do MPF.
Em maio do ano passado, o Incra concedeu autorização de uso dos castanhais do PAE Antimary pelos castanheiros. A iniciativa teve intermediação do MPF, que tem defendido a alteração dos limites da Resex para a inclusão dos castanhais.
Benedito, no entanto, está pessimista com o futuro: "Com essa derrubada toda, o nosso rio [Purus] está secando. Eu nasci ontem, mas já vejo. Quando chegava o verão [período seco], nunca tinha problema pra descer. Hoje, se sai carregado mais um pouquinho, sai de manhã, chega [a Boca do Acre] de tarde, de noite. É no rio mesmo, não é só no castanhal, é na população inteira."
A ponta de lança da invasão está a cerca de 80 km em linha reta da divisa do PAE. É a Vila do V, a 43 km de Rio Branco. Dentro do município de Porto Acre, tem casas simples e poucas ruas asfaltadas. Como em outras regiões do Acre, está dominada por uma facção criminosa formada por jovens ligados ao tráfico. Pichações nas paredes recomendam abaixar o vidro para não ser morto por engano. É ali que também mora o invasor Sebastião Ferreira de Sales, 56.
Após ser contatado pela Folha via WhatsApp, Sales aceitou ser entrevistado na casa simples de madeira onde mora quando está na "rua", pertencente a um amigo. Estava acompanhado da mulher, Ana Paula das Neves.
Natural do Espírito Santo, Sales era quase adolescente quando se mudou em 1978 com a família para Jaru, em Rondônia. Ali, eles adquiriram 40 alqueires (109 hectares). Era o início da colonização promovida pela ditadura militar, ao longo da BR-364 (Cuiabá-Porto Velho). Ele conta que a terra era tão barata que o pagamento foi uma bicicleta Caloi de dois canos.
Sales estudou só até o 4º ano do ensino fundamental. A vida era na roça. Plantava cacau e arroz, mas o sítio ficou pequeno para a família de oito irmãos. Em 2002, se mudou para o Acre. "Vim pra tirar madeira. Tirei madeira uns dez anos, mais ou menos. Como a madeira ficou muito ruim, fui mexer com terra."
Em 2013, ele assinou um contrato particular para adquirir 1.293 hectares dentro do PAE Antimary, em uma região chamada Seringal Nazaré. Alega que não sabia à época que se tratava de terra pública federal. O valor, registrado em R$ 60 mil, foi pago pelo patrão, no lugar da indenização trabalhista. Diferentemente de outros invasores, sua área está longe dos castanhais usados pelos moradores da Resex.
A primeira multa, por desmatamento de 98 hectares, foi lavrada no ano seguinte, 2014, mas o ex-madeireiro não se abalou: "Até aí, só multaram, não tinha problema nenhum. Recorri da multa e ficou bom, botei o gado em cima da área".
Ele voltou a desmatar mais 98 hectares entre 2017 e 2018, quando acabou preso pela PF por invasão de terras públicas, posse ilegal de arma e descumprimento de embargo durante uma operação contra o desmatamento.
"Fiquei uma noite na PF, dormi duas noites na Penal [Rio Branco] e saí. O delegado falou: 'O senhor está proibido de voltar e de exercer qualquer atividade. Se eu pegar o senhor lá de novo, vamos prender de novo. Não tenho onde morar. Na segunda, a gente voltou pra lá. Aí fiquei, fiquei."
No depoimento, Sales afirmou que, dois meses antes da prisão, havia participado de uma reunião com o Incra em que funcionários prometeram legalizar sua área. Disse também que não respeitou o embargo porque, se saísse dali, sua fazenda corria o risco de ser invadida. Citou que precisa pagar pensão alimentícia de R$ 1.000 para dois filhos menores.
O invasor nega que tenha derrubado castanheiras, mas admite que elas podem ter queimado durante o processo de desmate: "Algumas o fogo sapeca, ela não aguenta quentura de fogo, mas meter motosserra, derrubar, não derruba, porque sabe que é crime. O fogo já é crime. Se você derrubar castanheira, o crime já vai dobrar. Então como chegar no mato e meter motosserra em castanheira?"
A PF o indiciou por três crimes: invasão e ocupação de terra pública, desmatamento e posse ilegal de arma de fogo. Somadas, as penas podem chegar a dez anos de prisão.
No ano passado, a sua área foi mais uma vez alvo de operação, desta vez com a participação do Exército, via GLO (Garantia da Lei e da Ordem). "Arrebentaram a porta do quarto, a janela, e entraram pra dentro de casa, mexeram na nossa documentação todinha. Sumiram dois cofres de moeda."
"Tinha uma espingarda do meu sogro, atrás do guarda-roupa, eles pegaram. Largaram as porteiras todas abertas, eles disseram que a área estava embargada, não tinha problema de o gado sair. Ficaram faltando 11 vacas e 21 bezerros", acusa.
Mesmo após essa terceira operação, Sales e a esposa continuam na área. Em sua nova tentativa de ficar com a fazenda, o casal entrou na Justiça com ação possessória e um pedido pra não ser perturbado pela fiscalização. Na peça, seu advogado mencionou a MP 910, assinada por Bolsonaro em dezembro. A Justiça Federal negou recursos em abril e maio, e o ex-madeireiro recorreu à segunda instância.
Ele não soube explicar por que seu advogado usou a MP 910, mas diz que, ao contrário de outros invasores, não acredita que Bolsonaro tenha poder para legalizar o desmate.
"Tem gente que falou: 'O Bolsonaro entrou, agora nego vai desmatar, vai derrubar pau, porque ele liberou pra derrubar, vai documentar terra'. Não é assim que funciona, né? Não é porque falou que nego pode derrubar mata à vontade. Ele não é dono do mundo."
Sales diz que a única fonte de renda da região é o gado: "Pecuária não precisa [de incentivo do governo] porque tem comprador de gado pra tudo quanto é lado. Se você descer ali e oferecer dez galinhas, não tem quem compre. Mas, se oferecer mil bezerros, o cara vai olhar amanhã na hora. Esse é o problema. Não existe outro comércio."
Colaborou Monica Prestes, de Manaus