Após anos de uma relação tensa com o Ibama, em 2018 os uruarenses votaram em peso no candidato a presidente Jair Bolsonaro. Foram atraídos pela expectativa de relaxamento na fiscalização ambiental, o que aliviaria a pressão sobre as dezenas de madeireiras da cidade, e de regularização fundiária de posseiros e invasores dentro da Terra Indígena (TI) Cachoeira Seca, a mais desmatada da Amazônia.
Passados quase dois anos de governo Bolsonaro, porém, isso não aconteceu –e, nos últimos meses, a repressão à extração ilegal de madeira e ao desmatamento até aumentou em Uruará, município surgido no rastro da rodovia Transamazônica e que, até hoje sem acesso asfaltado, padece do isolamento geográfico e de falta de alternativas econômicas.
Dois fatores pesaram para esse cenário contraintuitivo. Ao contrário do que se imagina, recentes mudanças normativas sobre o comércio de madeira do governo Bolsonaro não impactaram a fiscalização em campo.
Além disso, diferentemente de outras operações na Amazônia, o combate ao desmatamento na TI Cachoeira Seca foi comandado pelo Ibama e sem a participação de militares, inexperientes nesse tipo de ação e que se opõem à destruição de bens de infratores ambientais.
Durante os meses de presença permanente do Ibama, entre abril e setembro, houve uma queda de 86% no desmatamento, segundo monitoramento via satélite Sirad X, da Rede Xingu+. Neste ano, houve o desmate de 729 hectares. No mesmo período de 2019, o estragou chegou a 5.521 hectares.
No front contra a extração ilegal de madeira, o Ibama, neste caso com o apoio do Exército, literalmente desmontou, entre maio e julho, 28 das pelo menos 44 serrarias do município, um dos principais polos madeireiros do Pará, o maior estado produtor de madeira da Amazônia.
A ação apreendeu 200 equipamentos, 719 metros cúbicos de madeira (o equivalente a cerca de 35 caminhões carregados) e aplicou multas que, somadas, chegam a R$ 12,3 milhões. Essas informações, incluídas no balanço da Operação Verde Brasil 2, são do Ministério da Defesa.
Boa parte dessas madeireiras está concentrada no beco da Morte, uma longa rua de terra na periferia de Uruará, distante 1.006 km a sudoeste de Belém, por rodovias. Quando a Folha esteve na região, em meados de julho, todas as serrarias ali estavam paradas. Algumas já haviam sido desmanteladas por militares e levadas de caminhão para Altamira.
Lalo de Almeida/Folhapress | ||
Nenhum madeireiro quis gravar entrevista. Um dos que tiveram os equipamentos confiscados, conhecido como Zé Gordo, disse que não iria "defender o torto". Em conversa informal, outro madeireiro afirmou que o beco da Morte nunca havia sofrido um revés tão grande e que era a primeira vez que o Exército participava de uma operação ali.
Além do Ibama e do Exército, a Polícia Federal também atuou neste ano na região. Em 29 de julho, foi deflagrada a Operação Carranca, resultado de quatro anos de investigações. Segundo a PF, Uruará e outros dois municípios da região concentram madeireiros de pouco poder econômico, que atuam na linha de frente da extração ilegal de madeira.
Um dos mandados de busca e apreensão ocorreu na casa do então secretário de Administração de Uruará, Bruno Cerutti do Valle. Ao perceber a chegada dos policiais, ele tentou dar a descarga em seu celular, mas o aparelho ficou entalado no vaso sanitário. Acabou preso em flagrante por posse de duas armas de fogo com registro vencido, mas foi solto dias depois.
Valle acumula autuações ambientais por desmatamento ilegal de 50 hectares e por não enviar relatório sobre um plano de manejo de madeira em seu nome. Em 2019, ele era secretário de Meio Ambiente de Uruará, pasta responsável pelo licenciamento de serrarias. Procurado pela reportagem, não respondeu aos pedidos de entrevista.
Houve também fiscalização estadual. Reforçada com cerca de R$ 90 milhões provenientes da Operação Lava Jato, a Semas (Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade), com apoio das Polícias Civil e Militar, apreendeu no município 240 metros cúbicos de madeira, fechou seis serrarias clandestinas e prendeu dez pessoas, além do embargo de 1.500 hectares.
Finalmente, em novembro, a Justiça Federal em Altamira acatou uma uma ação civil pública do Ministério Público Federal para que a Funai e a União apresentem, em até 90 dias, um plano de desintrusão da TI Cachoeira Seca, incluindo um levantamento dos ocupantes de boa-fé para que possam ser retirados da área mediante indenização.
O desmonte das serrarias clandestinas foi a resposta do governo federal a um ataque contra uma equipe do Ibama em Uruará. No dia 5 de maio, os agentes ambientais, escoltados pela Força Nacional, foram bloqueados por homens ligados a madeireiras na rodovia Trans-Ururá, quando voltavam de uma fiscalização em uma área de extração ilegal de madeira.
A revolta era por conta da destruição, pelo Ibama, de tratores e caminhões de um madeireiro. Durante a discussão, um fiscal ambiental foi atingido por uma garrafada no rosto e precisou receber pontos. O vídeo da agressão foi veiculado nos principais meios de comunicação do país.
Não se tratou de um fato isolado –Uruará tem um longo histórico de reações violentas à fiscalização ambiental. Em 2010, uma viatura da Polícia Federal que participava de uma operação do Ibama foi incendiada durante a noite, em frente a um hotel onde a equipe estava hospedada.
Em 2013, moradores paralisaram, por meio de ameaças, a construção de de dois postos de vigilância da Funai em estradas de acesso à TI Cachoeira Seca, de onde sai grande parte madeira ilegal para as serrarias. As obras fazem parte do Plano Básico Ambiental (PBA) da usina Belo Monte e são responsabilidade da concessionária Norte Energia, que alega falta de segurança para trabalhar no local.
Em junho de 2019, madeireiros fecharam a Transamazônica, rodovia construída no início dos anos 1970 e que deu origem à cidade, surgida a partir de um assentamento do Incra.
A Folha também foi alvo de animosidade em uma estrada rural. Ameaçando desembainhar um facão, um motorista de caminhão toreiro (adaptado para transporte de toras) acusou a reportagem de tirar fotos de seu veículo.
Coagida, a reportagem mostrou as imagens da câmera fotográfica e do celular. Depois de constatar que não havia fotos do seu caminhão, ele se afastou sem tirar a mão no facão e xingou: "Vagabundos de ONGs".
Por falta de segurança, o Ibama parou de se hospedar nos hotéis da cidade, onde os fiscais ambientais só circulam escoltados pelo Exército. Durante os meses de operação, os fiscais se alojaram em uma base da Funai a 60 km do centro, sob a proteção de policiais da Força Nacional.
Em junho, moradores de Uruará organizaram uma comitiva a Brasília, distante 2.095 km, para levar reivindicações a Bolsonaro. Segundo os organizadores, foram cerca de 50 pessoas. A bordo de camionetes, um grupo levou dois dias, só de ida. Já o ônibus com posseiros precisou do dobro do tempo de viagem, quatro dias.
Vestindo camisas amarelas com a inscrição "Amazônia é dos Brasileiros", o grupo conseguiu falar com Bolsonaro durante cerca de 4 minutos. Diante do presidente, os porta-vozes do grupo pediram a regularização fundiária, reclamaram da homologação da Terra Indígena Cachoeira, em 2016, parcialmente sobreposta em assentamentos do Incra, e criticaram a suposta truculência da fiscalização do Ibama.
"Nos últimos 15 anos, só chega fiscalização. Nunca chegou ninguém para regularização", afirmou um dos uruarenses. "Tenho uma serraria, toda legal. Está bloqueada", disse outro. Por causa da demora na viagem de ônibus, os posseiros não chegaram a tempo do encontro no cercadinho.
Após ouvir as reivindicações de comitiva, Bolsonaro afirmou: "Eu sei dos problemas, não tenho o poder de avançar muito. É o aparelhamento de pessoas, de legislação. Você mexer num decreto ambiental, tem de ser uma lei. E eu, não fazendo muita coisa, já ajudei vocês."
"A grande maioria das pessoas está satisfeita com o governo, acredita no governo", afirma o advogado Leonardo Sidônio, que integrou a comitiva e defende madeireiros da cidade. "Sabemos que o governo brasileiro está sob pressão de organismos internacionais, de países, de ONGs, de organizações financeiras. O que, no nosso entender, é o que justifica essas operações que estão ocorrendo aqui."
Em contraste com o Pará –o único estado fora do Nordeste onde Fernando Haddad (PT) venceu no segundo turno–, os uruarenses optaram por Bolsonaro em ambas votações. No primeiro turno, obteve 55,4% dos votos. Contra o petista, o percentual subiu para 66,7%.
No poder, Bolsonaro afrouxou diversas normas para a indústria madeireira, mas fiscais ouvidos pela reportagem afirmam que elas não impactaram a fiscalização nas áreas de extração ilegal. Isso porque as mudanças recentes favoreceram principalmente empresas exportadoras, de maior poder econômico. Não é o caso das serrarias de Uruará, que, muitas vezes, são fornecedoras dessas empresas maiores.
Assim como em outras regiões da Amazônia, o esgotamento do estoque de árvores dos planos de manejo e em posses e propriedades privadas leva os os madeireiros a roubar a matéria-prima de áreas protegidas.
Em Uruará, a principal fonte tem sido Cachoeira Seca, onde habita um grupo do povo arara contatado recentemente, em 1987.Um levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) mapeou 894 km de estradas ilegais abertas dentro da TI, uma das poucas áreas da região com o valioso ipê.
Para esquentar a madeira na região, a fiscalização, que inclui também a Polícia Rodoviária Federal identificou diversas fraudes, como inflar a quantidade e o tamanho de árvores dentro de planos de manejo e usar créditos de extração de madeira do estado vizinho de Mato Grosso.
Embora a extração da madeira faça apenas o corte seletivo de árvores, a atividade costuma abrir caminho para o desmatamento. É o que acontece em Cachoeira Seca, onde novos invasores passaram a se misturar com famílias ocupantes de boa-fé, já que a terra indígena foi demarcada sobre assentamentos do Incra. A maioria é da década de 1970, mas um deles, Macanã 1, foi criado em 2006, no governo Lula (PT), já com a demarcação em andamento.
O imbróglio contribuiu para o caos fundiário do município, mais regra do que exceção na Amazônia. Um levantamento da pesquisadora Brenda Brito, do Imazon, revela que os imóveis titulados no município somam 91,5 mil hectares. Já a área não destinada ou sem informação chega a 558 mil hectares. Os números, de 2017, não incluem assentamentos.
Colaborou Monica Prestes, de Manaus