As ruas da favela Tijuco Preto, em Guarulhos (Grande SP), ficaram rapidamente vazias com a chegada das viaturas da PM.
Com medo por estar em um lugar desconhecido, o comerciante Paulo Henrique Pereira, 51, decidiu ficar ao lado de um agente até que o perigo passasse. "Para mim, seria meu porto seguro. Pensei: 'vou ficar do lado do policial. Pelo menos aqui estou protegido'", disse.
Era a primeira vez de Pereira na comunidade. Estava lá apenas para acompanhar a mulher, professora da rede estadual, que tentaria falar com pais de alunos. Essa explicação foi dada por ele ao policial, que o questionou sobre o que fazia ali. "Essa história está muito mal contada", teria dito o PM.
O comerciante foi algemado, levado para um camburão, e, na sequência, apresentado em um distrito sob a acusação de tráfico de drogas, junto com dois moradores da favela –homens que nunca havia visto antes.
Naquele distrito, Pereira conheceria uma espécie de "investigação a jato" cada vez mais comum em São Paulo: apurações envolvendo crimes graves com supostos flagrantes que terminam, muitas vezes, em um dia, sem checagem adicional para confirmar ou afastar a versão dos PMs.
A rapidez na prisão não se repete, porém, para o reconhecimento de erros. Pereira só conseguiu reverter esse quadro após 676 dias preso, com o processo já em segunda instância.
"Essa pretensa rapidez na investigação é, em verdade, um sinal de inexistência de investigação policial. É um colapso da polícia judiciária, que leva uma pessoa honesta a ficar reclusa por tanto tempo. Esse é um caso paradigmático, mas não é isolado, infelizmente", disse o advogado Abelardo da Rocha, defensor de Pereira.
A reportagem encontrou não só investigações relâmpago como também denúncias que já saem no dia seguinte à prisão.
Levantamento feito pelo Tribunal de Justiça a pedido da Folha mostra que, de um total de 5.345 processos de roubo ocorridos em 2019 na capital, em 87% deles os suspeitos foram denunciados nos 30 primeiros dias após o crime.
Desses 4.645 casos, em 54%, um total de 2.513 processos, o Ministério Público apresentou denúncia na primeira semana após o crime.
Os dados mostram ainda que, em 34 crimes, a polícia concluiu o inquérito e a promotoria apresentou a acusação depois de apenas um dia. O número pode ser maior, segundo o TJ, porque a pesquisa atingiu apenas parte dos processos.
Pela legislação brasileira, os policiais podem demorar, em caso de flagrante de roubo, até dez dias para concluir as investigações e produzir seus relatórios. Nos flagrantes de tráfico, são 30 dias, prorrogáveis pelo mesmo tempo.
Já o Ministério Público , ao receber o relatório de investigação, tem cinco dias para decidir se denuncia ou arquiva o inquérito. Mas, se houver pontos a serem esclarecidos, pode pedir novas investigações.
Em muitos casos, porém, ainda que frágeis, os inquéritos viram processos sem nenhum pedido de esclarecimento adicional. As únicas provas acabam sendo testemunhos, feitos, por vezes, pelos próprios policiais que realizaram a prisão.
De 100 casos de prisões injustas analisados pela Folha, prisões baseadas em acusações por autoridades, muitas vezes sem prova, são a terceira maior causa, com 17 casos –as duas primeiras são reconhecimentos incorretos (42 casos) e identificação errada (25). Ainda com base no levantamento, prisões baseadas em depoimentos falsos ou inconsistentes representam a quarta causa, com 12 ocorrências.
No caso de Pereira, a polícia apresentou a droga atribuída aos suspeitos, laudo confirmando as substâncias, depoimentos de policiais, dos suspeitos e da esposa de Pereira. Mas, entre outros pontos que poderiam ajudar na apuração do caso, não foi ouvida uma testemunha importante –a diretora que, no processo, confirmaria que a mulher de Pereira estava lá a pedido da escola para tratar da situação de alunos com problemas.
Segundo Pereira, a droga foi plantada pelos policiais para conseguir o flagrante.
O Tribunal de Justiça reverteria depois a prisão em primeira instância, absolvendo os três homens, ao constatar a versão inverossímil dos PMs e a falta de investigação necessária, como perícias em um veículo envolvido.
A advogada Flavia Rahal, do Innocence Project Brasil, afirma que rotineiramente a palavra dos policiais costuma ser a única a ser levada em conta. "É como se não houvesse defesa possível para aquela pessoa que foi presa naquela situação, porque a palavra do policial vai ser sempre muito mais valorada e considerada suficiente para aquilo."
O IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) apresentou, em 2019, um relatório sobre as audiências de custódias do país, em nove estados. Nas prisões em flagrante, em 55,6% dos casos a única palavra testemunhal era a dos policiais. Nos casos de tráfico, esse percentual sobe para 90%.
Nas ruas das periferias das cidades do país, são comuns relatos do uso do chamado kit flagrante por policiais –a prática de andar com armas e drogas que podem ser atribuídas a suspeitos. No ano passado, um soldado da Polícia Militar de São Paulo foi preso com cocaína, maconha e lança-perfumes. Ao ser questionado, disse aos policiais que o flagraram que o material era "para usar nas ocorrências".
Em casos de crimes patrimoniais, nos quais as prisões geralmente são em flagrante, a voz da vítima costuma ser a única que conta. Uma pessoa abordada na rua, muitas vezes por equipes que costumam ver negros como suspeitos padrão, pode acabar denunciada no dia seguinte, apenas com base em um reconhecimento feito de maneira questionável, sem que outras provas sejam colhidas.
Para o policial aposentado Marcos Carneiro Lima, ex-delegado-geral de São Paulo, a rapidez nas investigações é sempre bem-vinda, mas, se o suspeito alega inocência, é importante a polícia ir a campo e procurar outras provas.
"O avanço tecnológico possibilita ao criminoso agir em novas atividades, mas também auxilia a polícia. As câmeras de filmagens são essenciais para investigar a questão do álibi de uma pessoa que se diz inocente. [Também é possível] fazer uma pesquisa técnica, através do celular, e descobrir onde ele estava", disse.
Sem que a polícia faça esse trabalho, muitas vezes sobra para a defesa e familiares dos suspeitos investigar os crimes. Nem sempre, porém, a Justiça aceita pedir evidências solicitadas pelas famílias de suspeitos.
O mecânico Gabriel Batista, então com 18 anos, foi preso em 2016 após ser parado na rua e fotografado por policiais. A imagem dele foi mostrada para a vítima de um caso de roubo de telefone celular, que reconheceu o rapaz.
No trabalho de investigação própria, a defesa descobriu que a câmera de um posto poderia mostrar sua inocência, pois o jovem passava despreocupadamente em frente ao estabelecimento, indicando que ele não acompanhava os outros suspeitos presos. O dono do posto reservou as imagens, mas disse que só as entregaria com uma ordem judicial.
"O Gabriel ficou preso por 10 meses. A juíza se recusou a pedir essas imagens para o posto de gasolina. Ela dizia que não havia necessidade porque as testemunhas, as vítimas já tinham feito o reconhecimento", lembra a advogada Simone Haidamus, uma das defensoras do rapaz.
O Tribunal de Justiça determinou a busca das imagens. Mesmo assim, o rapaz foi condenado a nove anos, decisão que seria revertida em segunda instância.
Após tantas dificuldades para conseguir libertar o rapaz, houve surpresa e muita comoção entre familiares, como mostra uma conversa de uma das advogadas, Larissa Frade, com uma tia de Gabriel.
"Esse caso foi muito emblemático, a gente conseguiu reverter. Mas o Gabriel ficou preso por 10 meses. Perdeu a mãe, a mãe sofreu um infarto logo no começo da prisão dele e a gente tem certeza de que isso aconteceu até por conta dessa injustiça que foi cometida contra o filho", disse Haidamus.
Herberth Silva Santos, 20, trabalhador de uma confecção de bijuterias, foi preso na porta de um bar na zona sul da capital.
Durante as cerca de seis horas em que ficou dentro do porta-malas de um carro da PM de SP, teve de repetir a mesma resposta a policiais diferentes: não tinha comparsa e muito menos tinha participado de roubo.
A prisão dele ocorreu no dia 8 de novembro de 2019, mesma data da conclusão do inquérito. Quatro dias depois, incluindo um sábado e um domingo, a Promotoria já o havia denunciado. A Justiça acatou a denúncia no mesmo dia.
No caso de Herberth, a conclusão relâmpago da investigação também se baseou em um reconhecimento que não seguiu a previsão legal. Ele foi colocado sozinho diante da vítima e não em meio a pessoas semelhantes, como seria recomendado. E também sobrou para a família dele o papel de investigador.
O pai e amigos do rapaz saíram, então, em busca de pontos por onde o veículo roubado havia passado. Encontraram cinco estabelecimentos comerciais com câmeras apontadas de forma que comprovariam o verdadeiro autor do roubo.
Todos esses endereços foram levados para a Justiça seis dias depois após a apresentação da denúncia, antes que as imagens pudessem ser apagadas, mas a magistrada do caso considerou inoportuna essa investigação.
As testemunhas apresentadas pela defesa, que confirmaram que o rapaz estava em um bar no momento em que o crime estava sendo cometido, não foram levadas em consideração. Uma delas, o dono do bar, virou alvo de um inquérito por falso testemunho.
Herberth acabou condenado a seis anos e oito meses de prisão.
"Dono de bar nunca vê nada. Ou está pondo a cerveja lá no fundo, ou era dia de folga e era o cunhado que estava lá, ou estava fazendo alguma outra coisa. É muito curioso, a experiência mostra, testemunha dono de bar com tanta convicção desse jeito", disse o desembargador Cassiano Ricardo Zorzi Rocha no julgamento de um recurso do réu.
Condenado em primeira e segunda instâncias a uma pena de quase sete anos, Herberth ainda tem esperança de poder voltar a acompanhar o crescimento da filha Lorena, 3. "Não sou o único [inocente] lá dentro. E alguns deles viraram a cabeça. Entra lá trabalhador e sai de lá ladrão, traficante, porque está revoltado. A polícia, o Estado mesmo, está criando cobras, fazendo inimigos. A pessoa que era trabalhadora, que era amiga deles, vai virar inimiga", disse, em saída temporária.
Brasil afora, a reportagem ouviu relatos de depoimentos pouco confiáveis, aparentando serem fabricados em série para favorecer a tese da acusação. "Às vezes, é colocado que a pessoa disse uma coisa e a pessoa não disse. É super comum pegar depoimento control-C+control-V de pessoas diferentes", relata a defensora pública no estado da Paraíba Monaliza Montinegro, que trabalha na reversão de condenações injustas.
Embora os depoimentos tenham grande peso nos inquéritos, são tratados de maneira incorreta e desatualizada pela Justiça do país, alerta Janaína Matida, professora de direito probatório da Universidade Alberto Hurtado, no Chile.
"Parece que o tratamento que nosso sistema de Justiça pressupõe que a memória é uma máquina fotográfica, que fica dentro de um baú. E é só a gente abrir esse baú e ir tirando dessa máquina fotográfica todos esses eventos que foram cristalizados através desses cliques. E não é assim que acontece", diz.
Janaina compara a memória humana a uma cena do crime, sendo necessário cuidado com contaminações evitáveis que coloquem a perder a confiabilidade das informações. Em vez de evitar mexer no corpo ou na arma, é preciso evitar perguntas que sugestionem, gerando falsas memórias.