Usuários do metrô embarcam e desembarcam das portas dos vagões na estacão da Sé, no centro de São Paulo - Foto Julio Bittencourt/Folhapress

E agora, Brasil? - Transporte urbano

Um diagnóstico do transporte urbano, os problemas e as propostas vindas de pesquisas, dados nacionais e internacionais e análises

Capítulo 5
Receita tarifária

Modelo brasileiro de financiamento do setor é insustentável

Criar receitas com tributos específicos e revisão de incentivos fiscais são alternativas à dependência da tarifa paga pelo usuário

Passageiros aguardam em pontos de ônibus em diversas regiões da cidade de São Paulo - Foto Julio Bittencourt/Folhapress

Passageiros aguardam em pontos de ônibus em diversas regiões da cidade de São Paulo - Foto Julio Bittencourt/Folhapress

Fernanda Perrin
São Paulo

O transporte público no Brasil é bancado, na maioria das cidades, pela tarifa paga pelo usuário.

O modelo pode fazer sentido à primeira vista, mas é questionado por quase todos os envolvidos com o serviço: da Frente Nacional de Prefeitos à Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos, passando por ambientalistas e por grupos como o Movimento Passe Livre, que prega a tarifa zero.

Há tantos problemas diferentes quanto pontos de vista. Para uns, é injusto que o passageiro pague sozinho por um serviço que beneficia toda a sociedade, todo o país -se trabalhadores e consumidores não se moverem, a economia não vai girar.

Para outros, a questão é mais pragmática: com o custo do serviço em ascensão e o número de usuários em declínio, a tarifa tem de subir para fechar a conta. Mas, se a tarifa sobe, menos gente consegue pagar, o que leva à necessidade de um novo reajuste, gerando um ciclo insustentável.

O modelo brasileiro destoa do de que é praticado em alguns outros países, em especial aqueles da rica União Europeia, onde a receita tarifária, paga pelo passageiro, cobre menos da metade do custo. O restante vem de subsídios e impostos específicos, entre outras fontes.

Em contraste, importantes capitais brasileiras, como Rio de Janeiro e Belo Horizonte, financiam seu sistema de transporte público com o dinheiro pago pelo passageiro.

São Paulo é a grande exceção: o usuário paulistano arca com 50% do custo do sistema e a prefeitura, com 38%. O restante vem da do vale-transporte (10%) e de receitas acessórias (2%).

As famílias brasileiras gastam, em média, 3% da renda com transporte público, mas esse percentual sobe para 13,5% entre as 10% mais pobres da população, segundo estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), de 2009, com base em dados das nove maiores regiões metropolitanas brasileiras.

O levantamento, o mais recente do instituto sobre o tema, apontou ainda que cerca de 30% das famílias mais pobres não gastam com transporte público, o que indica que elas não usam o serviço por não terem capacidade de pagar por ele.

"O calcanhar de aquiles do sistema é que temos muitas pessoas pobres. Fica difícil fazer um sistema coletivo bom sem aporte do Estado", afirma o engenheiro civil Eduardo Vasconcellos, especialista em mobilidade urbana e diretor do Instituto Movimento.

As gratuidades que se justificariam como tentativa de compensar desigualdades também fazem parte do problema: o custo do passageiro que pode viajar de graça (idosos) ou recebe desconto (estudantes) é rateado pelo restante dos usuários, gerando o chamado "subsídio cruzado".

"Um usuário de renda baixa, por exemplo, paga por um idoso de classe alta", afirma Marcos Bicalho dos Santos, diretor da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos. Levantamentos revelam que gratuidades e descontos concedidos oneram a tarifa, em média, em 17% em plano nacional.

Há quem proponha que esses benefícios sejam redesenhados ou financiados por outros setores, além do de transporte -no caso dos estudantes, por exemplo, os recursos teriam origem na área da educação.

A principal alternativa à dependência da receita tarifária é o subsídio público. No caso de São Paulo, os recursos são retirados dos cofres do município. No ano passado, do Orçamento total da prefeitura (R$ 54,7 bilhões), R$ 2,9 bilhões foram utilizados com essa finalidade.

O comprometimento de parte significativa do Orçamento é, contudo, uma escolha problemática, já que canalizar mais recursos para o transporte significa retirar de outras áreas. No caso paulistano, gastou-se no ano passado R$ 1 bilhão a mais com subsídios do que com os investimentos em geral da prefeitura.

Para sanar o dilema, especialistas defendem uma cesta diversificada de fontes para custear a rede pública, com destaque para taxações sobre o transporte individual.

A principal justificativa é que os meios individuais têm impacto negativo sobre as cidades e sobre o transporte público -e por isso seu usuário deve pagar mais.

"É o automóvel que congestiona a cidade, que polui. Já que ele traz todo esse prejuízo para a população, ele deve ser onerado", afirma Francisco Christovam, presidente do SPUrbanuss (Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo).

Entre os meios de fazer isso, um dos mais citados, é a criação de uma alíquota sobre a venda de combustível vinculada a um fundo específico, cujos recursos sejam direcionados para o transporte.

Já tramita na Câmara uma Proposta de Emenda à Constituição nesse sentido. Caso aprovada, a PEC 159/2007, também conhecida como "Cide Verde", vai liberar cada município para instituir uma cobrança sobre a venda de combustíveis com o objetivo de financiar o transporte coletivo.

Segundo a Frente Nacional de Prefeitos, estudos indicam que um aumento de 6% no valor do litro do combustível permitiria uma redução de até 25% no preço da tarifa.

A PEC foi aprovada por uma comissão especial em março do ano passado e está pronta para ser votada no plenário da Câmara dos Deputados.

O aumento do preço da gasolina e do álcool com essa finalidade não geraria inflação, de acordo com estimativas do pesquisador Carlos Henrique Carvalho, do Ipea, feitas em 2016. Segundo o estudo, o impacto sobre o IPCA (índice oficial de inflação do país) seria negativo, uma vez que a redução das tarifas compensaria a alta do combustível.

A criação de um imposto, contudo, num país com elevada carga tributária e que padece de graves restrições econômicas, não é tarefa trivial.

Por isso, alguns especialistas preferem redirecionar os incentivos fiscais oferecidos hoje ao transporte individual para o público.

"Parte do dinheiro que falta para ajudar o transporte coletivo está sendo colocado no automóvel, no lugar errado", afirma Vasconcellos, do Instituto Movimento. Não se trata de abrir uma guerra contra o setor, afirma ele, mas de rever exageros que existam.

PROPOSTA DE TARIFA GRATUITA NO TRANSPORTE NÃO DESLANCHA

A gestão da então petista Luiza Erundina em São Paulo, no início dos anos 1990, tentou implantar a tarifa zero na cidade, propondo uma reforma tributária para financiá-la. A proposta não foi aprovada. A ideia voltou a ganhar destaque nos protestos de junho de 2013.

Defensores da ideia dizem que o transporte é um serviço público e um direito do cidadão, devendo, portanto, ser acessível a todos.

De fato, após os protestos de 2013 deputados incluíram o transporte na lista de direitos sociais previstos pela Constituição. A medida, porém, não foi adotada em nenhuma cidade de grande porte.

O debate em torno do tema acabou por arrefecer, tragado pela crise econômica e pelos valores envolvidos.

Seriam necessários entre R$ 65 bilhões e R$ 70 bilhões por ano para financiar a tarifa zero no país, segundo estudo do Ipea, publicado em 2015.

Para que se tenha uma ideia, o Brasil gasta R$ 28 bilhões por ano com o Bolsa Família.