Uma corrida de carros. Foi assim que o então presidente Juscelino Kubitschek encerrou os festejos pela inauguração da capital federal do país, em 1960. Na nova cidade de Brasília, automóveis em alta velocidade trafegando pelas longas pistas asfaltadas eram a metáfora de um Brasil que precisava crescer e acelerar para o futuro.
Décadas depois daquela competição, Brasília convive, a exemplo de quase todas as grandes cidades brasileiras, com congestionamentos diários que parecem sem solução e com uma frota de veículos que não para de aumentar.
Quem estuda a origem dessa situação aponta como causa da crise de mobilidade o papel secundário que sempre se reservou ao transporte público.
Para modificar esse quadro, dizem especialistas, não basta começar a priorizar os meios coletivos, a eles destinando mais espaço e investimentos -é preciso enfrentar privilégios que veículos individuais usufruem nas principais cidades do Brasil.
Uma das evidências da primazia do automóvel em políticas públicas está na nova edição de um estudo da ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos) que estima um gasto nacional de R$ 11,8 bilhões com a manutenção de vias dedicadas ao transporte individual.
Enquanto isso, a preservação de trajetos utilizados pelo transporte coletivo recebeu investimentos de R$ 3,4 bilhões (já incluindo os metrôs).
A defasagem ocorre apesar de se saber que cerca de metade da população brasileira que utiliza transportes motorizados trafega de ônibus, trens e metrôs. Para eles, o transporte coletivo é gênero de primeira necessidade.
Esse cenário começou a ser delineado antes da corrida promovida por JK em Brasília e do projeto desenvolvimentista daquela época.
Já no final dos anos 1920, por exemplo, São Paulo enfrentou o dilema que quase toda cidade brasileira mais cedo ou mais tarde precisou resolver -como organizar o seu crescimento.
Uma das sugestões foi apresentada pela Light, empresa que operava os já lotados bondes paulistanos. A ideia era criar o primeiro metrô do país, abrindo túneis e vias exclusivas dedicadas ao transporte de massa no centro da cidade.
Porém, durante o debate público, o projeto foi vencido por outra proposta, o Plano de Avenidas de Prestes Maia.
Em oposição ao modelo da Light, que concentrava a cidade dentro de seu núcleo principal, o projeto de Prestes Maia era expandir a área urbana, criando bairros menos adensados na periferia. Para conectar esses núcleos esparsos, o meio de transporte ideal era o símbolo do futuro, o carro.
Esse era o debate no mundo urbanístico à época: de um lado, cidades muito centralizadas, ao estilo europeu; de outro, centros em constante expansão, ao estilo americano.
"Após a Primeira Guerra, os EUA viraram o espelho perfeito para o país que o Brasil queria ser. Uma nação nova, em franca expansão, com grande território e população, além de ter recursos aparentemente inesgotáveis. Ninguém queria ser uma Europa destruída pela guerra", afirma o urbanista Ayrton Camargo e Silva.
Mas o grande estímulo ao carro veio mesmo com Juscelino, nos anos 1950. Um dos capítulos do plano de metas de JK (conhecido como 50 anos em 5) trazia a promessa de aumentar de cerca de 31 mil para 170 mil a produção de automóveis no país.
O governo tinha um grupo executivo com a tarefa de planejar o apoio à industria, cujo desenvolvimento fazia sentido naquele tempo.
O BNDE (atual BNDES, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) fazia parte desse conselho e via com bons olhos o incentivo à produção automobilística, que teria repercussões positivas em cadeia na economia. Gastos energéticos e emissão de poluentes não eram preocupações à época.
Nas décadas seguintes, as prefeituras das cidades não conseguiram aproveitar o boom viário e automobilístico para impulsionar devidamente seus sistemas de ônibus.
As linhas dos coletivos na maioria das vezes cresciam pela exploração privada do serviço. Nesse arranjo, as empresas competiam pelas rotas mais rentáveis, enquanto bairros menos populosos e distantes eram deixados em segundo plano.
Não havia planejamento central por parte das prefeituras. Quando, enfim, os governos resolveram assumir mais controle sobre o desenvolvimento do sistema, se depararam com cidades dependentes das empresas de ônibus que haviam sobrevivido à disputa por passageiros.
Ainda que de maneira pouco planejada, foi graças aos sistemas de ônibus que a população brasileira -cada vez mais urbana- passou a ir ao trabalho, já que os trilhos não se tornaram suficientes.
Até 2015, segundo a ANTP, o ônibus era o principal meio de transporte dos brasileiros, perdendo apenas para trajetos feitos a pé.
Dados do estudo do ano seguinte, mostram, contudo, que o carro já ultrapassou o ônibus, concentrando 16,2% dos deslocamentos no país. Os ônibus ficaram em segundo lugar, , com 15,9%. Motos, com 2,7%, e trens e metrôs com 2,4% das viagens realizadas pela população.
Desde o ano 2000, a frota total do Brasil (automóveis, motos, caminhões, ônibus etc.) mais que triplicou, pulando de 30 milhões para 98 milhões, mas a imensa maioria é de veículos para transporte particular e individual.
A ANTP calculou seguidas quedas no número de viagens feitas pelo transporte público no país, entre 2003 e 2014. No mesmo período, as viagens por carros e principalmente por motos só aumentaram.
Os trilhos poderiam ter ajudado a aliviar a pressão sobre as ruas, mas a era dos metrôs só veio a partir da década de 1970, com a inauguração do primeiro trecho em São Paulo (1974) e no Rio (1979). Ainda assim, o ritmo de crescimento da malha metroviária nunca alcançou os anseios da população.
Centros urbanos latino-americanos como Cidade do México e Santiago têm a relação de 1 quilômetro de metrô construído para cada 39 mil e 26 mil habitantes, respectivamente. Em São Paulo, cada quilômetro de metrô equivale a uma população de 135 mil habitantes. No Rio, 120 mil.
Nos anos 1980, já era possível observar que o modelo norte-americano estava saturado e que as áreas metropolitanas cresciam sem controle, expulsando a população mais pobre para o entorno.
Chegar ao centro da cidade tornava-se tarefa mais árdua, que os governos tentavam facilitar abrindo mais avenidas, túneis e viadutos.
No entanto, os estímulos à expansão de veículos individuais prosseguiram. Na década de 1990 registraram-se novas rodadas de incentivos à produção e ao consumo de automóveis.
À diferença da época de JK, esse segmento industrial deixou de ser considerado agente do desenvolvimento nacional, mas ganhou importância como pólo capaz de movimentar a atividade econômica e gerar empregos.
Com todos os problemas, estruturas como pistas e corredores de ônibus ou de BRTs (sigla em inglês para Bus Rapid Transit) foram sendo construídas e aos poucos integradas às grandes cidades, embora nem sempre de acordo com as melhores opções técnicas.
"O quadro da mobilidade atual é fruto de décadas de escolhas e políticas feitas, não é só resultado de um desmando ou falta de planejamento", afirma Letícia Bortolon membro do ITDP, instituto internacional de políticas públicas na área de transporte.
Há muito a fazer, portanto, para que o país atinja padrões mais aceitáveis na área de transporte. É uma demanda que continuará a pressionar os próximos governantes.