Da esquerda para a direita: a estudante de sistemas da informação Vitória Fernandez confia no futuro; o pedreiro José Hortêncio vive de bicos esporádicos há mais de três anos; "nunca fui muito dada a bater cartão", diz a pesquisadora Plicila Ferreira; para Tarci Silva, o cobrador faz muito mais do que lidar com dinheiro.

Da esquerda para a direita: a estudante de sistemas da informação Vitória Fernandez confia no futuro; o pedreiro José Hortêncio vive de bicos esporádicos há mais de três anos; "nunca fui muito dada a bater cartão", diz a pesquisadora Plicila Ferreira; para Tarci Silva, o cobrador faz muito mais do que lidar com dinheiro. Fotos: Bob Wolfenson/Folhapress

E agora, Brasil? - Mercado de Trabalho

Um diagnóstico do mercado de trabalho no Brasil, os problemas e as propostas vindas de pesquisas, dados nacionais e internacionais e análises

Capítulo 4
Rede de proteção

Exclusão do setor informal reduz o alcance de programas

País gasta 3,7% do PIB com assistência a trabalhadores pobres e apoio a desempregados, mas a maior parte dos benefícios é destinada a quem tem registro em carteira, e falhas diminuem a eficácia das ações do governo

Ricardo Balthazar
de São Paulo

O Brasil construiu ampla rede de proteção social para ajudar os trabalhadores a lidar com o desemprego e outros riscos, mas uma fatia muito significativa da força de trabalho ainda não consegue alcançar os seus benefícios.

A maior parte dos programas que compõem essa rede só está disponível para quem é contratado com registro em carteira e contribui para a Previdência Social. Trabalhadores do setor informal da economia ou que abriram pequenos negócios para ganhar a vida não têm a mesma proteção.

De cada R$ 10 gastos com esses programas, R$ 9 se destinam a trabalhadores do setor formal, que viram sua presença no mercado encolher com a recessão dos últimos anos e hoje representam menos da metade da força ocupada.

Bob Wolfenson/Folhapress
Retrato realizado por Bob Wolfenson em maio de 2018 para especial da Folha sobre mercado de Trabalho. ***EXCLUSIVO FOLHA***
Aprimoramento - Claudia Tereza de Oliveira: Trabalha durante o dia como auxilar administrativa e, à noite, estuda gestão de RH na FMU, graduação que está prestes a concluir. "Há, sim, oportunidades no mercado, mas às vezes, o profissional não está capacitado"

Quem trabalha por conta própria ou sem carteira assinada só tem acesso ao Bolsa Família, que garante renda mínima para a subsistência dos mais pobres. Os que contribuem como autônomos para a Previdência têm direito a benefícios pagos em caso de doença ou acidente de trabalho.

"Temos vários tipos de programa, e alguns são muito bons, mas a desarticulação entre eles e os problemas no seu desenho tornam essa rede ineficiente e geram incentivos nocivos para o mercado de trabalho", afirma o economista André Portela Souza, da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

O Brasil gastou no ano passado cerca de R$ 240 bilhões para financiar mais de uma dúzia de programas de assistência social e apoio ao mercado de trabalho, incluindo Bolsa Família, seguro-desemprego e FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço).

Não é pouco dinheiro. Somados os recursos públicos destinados a esses programas e as contribuições das empresas para o FGTS, o custo da rede de proteção social brasileira equivale a 3,7% do PIB (Produto Interno Bruto) e se aproxima do que países mais desenvolvidos gastam com isso.

Especialistas afirmam que é possível aprimorá-la mesmo sem ampliar os recursos disponíveis, fundindo e redesenhando os programas existentes para que incentivem a busca de autonomia pelas famílias, relações de emprego mais duradouras e maior produtividade na economia.

O Bolsa Família é o único desses programas que não exige vínculo com o mercado de trabalho formal para conceder seus benefícios, que hoje alcançam 13,5 milhões de famílias com renda mensal per capita declarada de até R$ 170.

O problema é que o desenho do programa desestimula muitos beneficiários a buscar trabalho, por causa do medo de perder o beneficio em caso de aumento da renda. Entre a certeza da ajuda do governo e os riscos do mercado, muitos acabam ficando em casa.

Em 2011, o governo criou um mecanismo para reduzir essa insegurança. Desde então, famílias que se desligam voluntariamente do Bolsa Família ao conseguir emprego recebem a garantia de que terão o benefício de volta automaticamente se ficarem sem trabalho nos três anos seguintes.

O impacto do mecanismo foi reduzido, mas poderia ser maior com ajustes como o sugerido por um grupo de economistas liderado por Portela (FGV), Gabriel Ulyssea (PUC-Rio), e Ricardo Paes de Barros (Insper), num estudo recente.

A ideia seria garantir a todos os participantes do Bolsa Família um reajuste automático do valor do benefício sempre que o rendimento do seu trabalho caísse. Sem medo de perder a ajuda, eles teriam melhores condições de se aventurar no mercado de trabalho, dizem os economistas.

Outro problema apontado pelos especialistas é a sobreposição de alguns programas que buscam os mesmos objetivos e poderiam aproveitar melhor os recursos disponíveis se fossem unificados.

Estimativas do Banco Mundial, com base em dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), sugerem que 8,2 milhões de pessoas que recebem uma vez por ano o Abono Salarial, equivalentes a um terço do total de beneficiários, também ganham Salário Família, mensal.

Os dois benefícios são financiados com recursos do governo federal e destinados a trabalhadores do setor formal com remuneração mais baixa, para estimular a geração de empregos com carteira assinada.

Na prática, funcionam como subsídio à contratação pelas empresas, permitindo que elas ofereçam a trabalhadores de menor qualificação salários melhores sem que custos com férias, 13º e outros direitos trabalhistas aumentem.

Pelas regras em vigor, só têm direito ao abono anual trabalhadores que conseguiram o primeiro emprego com registro há pelo menos cinco anos. É uma forma de estimular a formalização do mercado, mas a exigência exclui do programa os mais vulneráveis, especialmente os mais jovens.

Nos cálculos do grupo liderado por Portela e seus colegas, o fim dessa exigência permitiria estender o abono a mais 10 milhões de trabalhadores, o equivalente a 41% do contingente atendido pelo programa no ano passado.

Além de ampliar os recursos disponíveis para o subsídio, a unificação com o Salário Família permitiria aumentar a frequência dos pagamentos, reforçando incentivos à permanência dos trabalhadores no emprego e abrindo caminho para atingir outros objetivos, sugerem os economistas.

Em relatório sobre os gastos do governo publicado em 2017, por exemplo, o Banco Mundial propôs que os subsídios oferecidos pelos dois programas assistenciais fossem condicionados à contratação de jovens em busca do primeiro emprego e desempregados com maior dificuldade para encontrar trabalho.

Bob Wolfenson/Folhapress
Retrato realizado por Bob Wolfenson em maio de 2018 para especial da Folha sobre mercado de Trabalho. ***EXCLUSIVO FOLHA***
Flexibilidade - Juliana dos Santos Furtado: Pesquisadora há cerca de um ano, ela prefere atuar como autônoma a trabalhar com carteira assinada. Mãe de três filhos, gosta da possibilidade de ter horários maleáveis

Especialistas também defendem articulação maior dos dois programas que sustentam a renda de trabalhadores demitidos sem justa causa no setor formal, o seguro-desemprego, financiado com recursos públicos, e o FGTS, custeado pelo setor privado e administrado pelo governo.

"Poucos países do mundo têm um sistema de proteção contra o desemprego tão generoso", diz Miguel Foguel, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), ligado ao Ministério do Planejamento. "O problema é que ele encarece o custo do trabalho para as empresas, estimula a rotatividade da mão de obra e embute outros incentivos adversos."

O trabalhador demitido sem justa causa tem direito a sacar o dinheiro acumulado em sua conta no FGTS, recebe uma multa paga pela empresa e pode recolher pagamentos do seguro-desemprego por um período de três a cinco meses.

Em muitos casos, o acúmulo de benefícios funciona na prática como um incentivo para que os trabalhadores se afastem do mercado formal, buscando acordos com empregadores para ter acesso ao fundo, ou adiando a volta ao mercado de trabalho para não perder parcelas do seguro.

Mudanças recentes procuraram inibir esses efeitos, aumentando a multa que as empresas devem pagar ao demitir e restringindo o acesso ao seguro-desemprego com a exigência de pelo menos um ano de vínculo empregatício para solicitar o benefício pela primeira vez e um intervalo mínimo de 16 meses antes de recorrer ao programa de novo.

A reforma da legislação trabalhista aprovada no ano passado criou até um novo tipo de demissão para lidar com esse problema, garantindo aos trabalhadores que negociem a própria dispensa com o patrão, o acesso a parte de suas reservas no FGTS e metade da multa, mas não ao seguro.

Bob Wolfenson/Folhapress
Retrato realizado por Bob Wolfenson em maio de 2018 para especial da Folha sobre mercado de Trabalho. ***EXCLUSIVO FOLHA***
Segurança - Carol de Barros: Depois de longo período fazendo bicos, ela foi contratada há pouco mais de um ano por uma unidade do McDonald's em São Paulo. Afirma que sente mais tranquila com a carteira assinada

BAIXO RENDIMENTO DO FGTS É UM FATOR DE INCENTIVO A SAQUES

No entanto, fatores que reduzem a eficácia desses programas permanecem intocados. Um dos principais é o baixíssimo rendimento dos recursos do FGTS, um incentivo para que os trabalhadores façam tudo para sacar o dinheiro sempre que podem.

Além disso, as exigências que restringem o acesso ao seguro-desemprego muitas vezes impedem que os benefícios alcancem os trabalhadores mais desprotegidos, como os que não conseguem manter relações de emprego estáveis por terem baixa qualificação.

"Com um ano e meio no emprego, o trabalhador de baixa renda vê o que acumulou no FGTS, pensa no aviso prévio e no seguro-desemprego e tudo vira uma tentação grande para ele querer ser mandado embora", afirma o economista José Pastore, professor da USP. "A rotatividade da mão de obra é induzida por um mau desenho da nossa política."

Para especialistas como Pastore, uma solução seria mudar o FGTS e o seguro-desemprego para que os dois programas funcionassem como um só, estimulando o trabalhador a poupar para momentos de dificuldade em vez de sacar suas reservas e se descapitalizar.

Recursos destinados ao seguro-desemprego poderiam ser direcionados às contas individuais do FGTS, por exemplo, dando aos trabalhadores maior liberdade para usá-los em caso de urgência, desde que mantivessem nível mínimo de reservas, sugere Portela.

Mudanças no FGTS poderiam ser úteis também para a retomada do debate sobre a reforma da Previdência Social, diz Foguel, do Ipea. A poupança compulsória poderia ser usada para acumular recursos que complementariam as aposentadorias garantidas na velhice, compensando as restrições eventualmente impostas pela reforma.

Glossário

Bolsa Família

Programa de transferência de renda a famílias pobres, condicionado à frequência escolar de crianças e adolescentes e cuidados com a saúde de crianças e mulheres

Fundo de Garantia do Tempo de Serviço

Formado com contribuições mensais dos empregadores, que podem ser sacadas em caso de desemprego e para aquisição de casa própria, entre outras situações

Seguro desemprego

Benefício concedido por até cinco meses a trabalhadores demitidos sem justa causa

Seguro defeso

Benefício destinado a pescadores nos períodos em que devem interromper a atividade para preservação das espécies

Seguro desemprego do empregado doméstico

Por até três meses, para empregados domésticos demitidos sem justa causa

Seguro desemprego do trabalhador resgatado

Auxílio temporário, por até três meses, para trabalhadores resgatados de regimes análogos à escravidão

Bolsa Qualificação

Para participantes de programa de qualificação profissional das empresas

Abono salarial

Benefício anual pago a trabalhadores com registro em carteira há mais de cinco anos

Garantia safra

Benefício concedido a agricultores em caso de perdas provocadas por seca ou excesso de chuvas

Salário família

Benefício mensal pago a trabalhadores que contribuem com a Previdência, condicionado a frequência escolar e cuidados com a saúde dos filhos

Salário maternidade 

Para mulheres no fim da gestação e após o parto

Auxílio doença

Benefício do INSS para trabalhadores impedidos de trabalhar por mais de 15 dias seguidos em razão de doença ou acidente

Auxílio acidente

Benefício do INSS para trabalhadores com redução permanente da capacidade de trabalho em razão de doença ou acidente

Auxílio reclusão 

Benefício do INSS para dependentes de trabalhadores presos