Autor que faria telenovelas de sucesso, como "Roda de Fogo" (1985) e "O Salvador da Pátria" (1989), Lauro César Muniz já era um dramaturgo conhecido do teatro paulista nos anos 1960, quando utilizava o codinome Jordão nas reuniões clandestinas do Partido Comunista.
Em 13 de dezembro de 1968, escutava música pelo rádio no momento em que a programação foi interrompida para o anúncio do Ato Institucional número 5, que concedeu poderes quase ilimitados ao presidente, fechou o Congresso e acabou com o habeas-corpus.
Mais tarde, no Gigetto, tradicional restaurante italiano de São Paulo, na rua Avanhadava, ele e outros militantes do teatro trocaram ideias e perceberam a gravidade de situação. Beberam mais que de costume e tentaram "rir da tragédia", comentando que, a partir dali, nem comédias de puro entretenimento escapariam da censura.
Diante das notícias de prisão e de morte de amigos, Lauro sabia o perigo que corria. Em 1965, já tivera seu apartamento invadido pela polícia à procura de livros "subversivos". Após o AI-5, com o "país estilhaçado", chegou a ir ao Consulado da Tchecolosváquia para tentar um exílio, mas desistiu. Estava decepcionado com o socialismo soviético implantado no país.
Ficou por um tempo escondido no apartamento do sogro, ex-piloto da Força Aérea Brasileira, que perdera parte da audição na Segunda Guerra e que, apoiador do golpe, respondia, sorrindo, aos comentários mais agressivos do genro contra os militares: "Estou, a cada dia que passa, mais surdo..."
Aos 80, o dramaturgo relembra à Folha a militância comunista e como o endurecimento da censura após o AI-5, 50 anos atrás, o levou à TV, onde seria consagrado.
Muniz em 1967 entre Rodolfo Mayer e Procopio Ferreira - Foto: Reprodução |
Como estavam a sua vida pessoal e a profissional em 1968?
Em 1968, eu tinha dois filhos, morava em São Paulo, na rua Pamplona e estava desfrutando de um grande sucesso teatral, "A Infidelidade ao Alcance de Todos", que me propiciou uma longa viagem à Europa. No início de 1965, havia tomado uma decisão arriscada e radical. Deixara a estável profissão de engenheiro para me dedicar somente ao teatro e ao cinema.
E o seu envolvimento com o Partido Comunista?
Entrei para o PC pelo avesso: fui aconselhado a ler um livro de Plínio Salgado. Fiquei indignado, um arremedo do fascismo. Consegui perceber que a justiça social só seria possível negando os conceitos do integralismo. Ultrarreacionário, diria eu mais tarde. Corri para o lado oposto e fui conquistado por um livro de grande qualidade, "O que é o Socialismo", de Leôncio Basbaum.
Outro que me abriu caminhos foi "O ABC do Comunismo", de Bakhunin. Ali encontrei o que procurava para minha aversão aos conceitos do Plínio Salgado. Eu era engenheiro à tarde e estudante de teatro à noite, na Escola de Arte Dramática.
Uma aluna, companheira de chope, estava frequentando um grupo de estudantes numa célula do Partidão. No início, fui mais pela companhia dela do que pelas palavras marxistas/leninistas. Claro que se tratava de uma versão que capturava nossos sonhos. A União Soviética estava no máximo com seus sputiniks e propaganda que chegava ao Ocidente.
Quando entendi o cerne da teoria socialista, deixei as tarefas de pichar paredes e ajudar a organizar greves, o chope e a garota e passei a frequentar um grupo mais filosófico, nada romântico. Liguei-me seriamente ao PC em 1961 e minha função, já dramaturgo, era contribuir para popularizar as ideias socialistas. A cada reunião, íamos para um lugar desconhecido, onde os nomes eram todos trocados. Eu era Jordão.
Recebíamos visitas de companheiros do teatro que viviam há tempos com o PC, como o [Gianfrancesco] Guarnieri, nos aconselhando a abordar questões do socialismo nas obras. Tomei cuidado em meu trabalho para não ser didático. Entendi que palavras de ordem minavam o trabalho artístico, e que as bases de reflexões estavam nas contradições da sociedade. Com o tempo, percebi que meu caminho era o humor como base de crítica.
Em sua autobiografia, o sr. conta que fez uma viagem pelos países socialistas em 1968 e voltou empolgado com a liberdade que percebeu em Praga, mas decepcionado com o ambiente de repressão, com uma economia clandestina e com a corrupção que observou em Berlim Oriental e em Moscou. Também escreve que sua decisão de narrar os problemas ao Partido Comunista no Brasil não foi bem vista e terminou acusado de "revisionista". E, justamente quando sua ligação com o PC balançou, veio o AI-5...
Sim, foi um momento de muito questionamento. No mesmo tour socialista, havia passado por Madri, que vivia sob a ditadura militar franquista, e sido preso por ter feito, em um evento, um discurso subversivo e brigado com um espanhol que, soube depois, era importante no governo. Só consegui ser solto com a ajuda de um amigo espanhol e após ler um texto de desculpas ao militar. Na sequência, vieram as experiências que me levaram da alegria à frustração nos países socialistas.
De volta ao Brasil, vi pela TV os tanques soviéticos invadindo a Tchecolosváquia de forma violenta [a invasão barrou as reformas liberais propostas no movimento chamado de Primavera de Praga, que tentava implementar uma social-democracia]. Estava confuso, pensando que deveria haver outro caminho, mas me mantive no PC porque era a forma de resistir à ditadura.
Naquele ano foi também muito importante a 1ª Feira Paulista de Opinião, organizada pelo Teatro de Arena, de Augusto Boal, com a provocativa pergunta: "Que pensa você do Brasil de hoje?". Seis autores foram escolhidos: Plínio Marcos, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Jorge Andrade, Bráulio Pedroso e eu. As peças foram duramente censuradas.
Foi quando veio o AI-5, que estilhaçou o país. As reuniões estavam proibidas e cada vizinho, cada porteiro de edifício era visto como um dedo-duro a informar o Dops [Departamento de Ordem Política e Social, parte da estrutura de repressão do regime]. O meu apartamento já tinha sido invadido em 1965 pela polícia, para procurar coisas, eu já tinha escondido ou jogado fora os meus livros "subversivos".
Depois do AI-5, ninguém mais do Partido se comunicou comigo. Era soldado raso e só os "cardeais" talvez ainda se reunissem. No [restaurante] Gigetto, onde passávamos quase todas as noites, recebíamos algumas informações no início, mas elas foram diminuindo. Não havia segurança. As prisões cresceram. Aqui e ali alguém contava sobre a prisão e até a morte de um amigo.
Lembra do anúncio do AI-5 pela TV ou rádio? O que sentiu?
Recebi a notícia do AI-5 provavelmente pelo rádio. Costumava trabalhar com o rádio sintonizado em músicas sem letras. A notícia interrompeu o programa, na rádio Eldorado, acho, e o AI-5 foi divulgado sem críticas ou observações. No primeiro momento, senti que havia a confirmação do que já esperávamos, mas, somente mais tarde, no Gigetto, conversando com amigos, entendemos a gravidade da notícia.
A censura, que já estava pesada, tornou-se um obstáculo definitivo para o teatro político. O que fazer? Chegamos a brincar, já bastante sofridos, que faríamos peças de vaudeville [de entretenimento popular] e que nem Martins Penna, grande autor de comédias do início da República, escaparia da censura. Estávamos tentando a ironia para suportar o machado que nos cortaria a cabeça. O deboche era uma forma de enfrentar a tragédia naqueles tempos. Talvez tenhamos consumido naquela noite mais cerveja que nos dias anteriores. Fuga? Não, defesa.
O AI-5 trouxe quais consequências para a sua vida?
A sensação era nítida: radicalização total do movimento militar de 1964, ainda insistiam em não usar a palavra golpe. A partir do AI-5, o Brasil era outro. Muitos pensaram em abandonar o país.
Eu tentei o caminho de Praga, onde havia conhecido um paraíso socialista. Cheguei a visitar o consulado tcheco em São Paulo, mas fui desaconselhado por um alto funcionário: deixar o país hoje significa nunca mais voltar. Ele me disse: "Talvez sua luta seja mesmo aqui, fazer o que for possível para um dia o país voltar à liberdade". É claro que o funcionário viveu essa contradição em seu país, quando a Tchecoslováquia foi dominada pela URSS.
Esquerda e direita muitas vezes se encontram no mesmo saco de farinha. Sem a possibilidade de fazer teatro político, decidi um outro caminho, a televisão. Precisava sustentar a família. Travestir-me de vítima seria ridículo. Depois de estrear na Excelsior, fui para a Record onde fiz "As Pupilas do Senhor Reitor" e outras novelas, e posteriormente para a Globo. A TV, na ditadura, apesar de impor férrea censura, manteve autores, diretores e atores. Não é por acaso que nossa novela brilha em todo o mundo. Os maiores profissionais estão lá. Que país se dá ao luxo de ter uma Fernanda Montenegro em telenovelas?
Teve de se esconder após o AI-5?
Fiquei um tempo escondido no apartamento de meu sogro, ex-piloto de caça da Força Aérea Brasileira, que perdeu parte da audição em um bombardeio na Segunda Guerra. No primeiro momento, ele era a favor do golpe. Nós nos respeitávamos. Quando eu deixava escapar uma frase mais agressiva contra os militares, ele sorria e dizia: "Estou, a cada dia que passa, mais surdo...".
Como avalia aquele episódio do AI-5? É algo enterrado no passado ou ainda corremos o risco de passar por algo assim?
O AI-5 durou muito e, quando foi revogado pelo Geisel [1979], já havíamos chorado bastante pelo desaparecimento de amigos. O golpe, que no início encontrou apoio na burguesia e até entre estudantes, deixou marcas profundas.
Vi no ano passado um pequeno comício no centro de São Paulo de jovens pregando intervenção militar. Fiz grande esforço para me manter calado. Talvez tenha errado, me senti sozinho.
O que temos que fazer é buscar caminhos sérios que nos protejam de uma "influência" inconstitucional. O teatro resistiu, como pôde, ao golpe e ainda é vanguarda no pensamento político. Assim como o cinema e muitas vezes, sutilmente, a televisão, continuam conscientes da importância de cantar a liberdade democrática. Que essa liberdade continue gerando qualidade e valor.