O presidente Arthur da Costa e Silva em 1967, um ano antes de decretar o AI-5. Foto de Acervo UH/Folhapress

Capítulo 2
Capítulo 2

'Sacrificamos algumas coisas não fundamentais', disse Costa e Silva aos EUA sobre o AI-5

Arthur da Costa e Silva em 1965. Foto: Folhapress

Arthur da Costa e Silva em 1965. Foto: Folhapress

Rubens Valente e Marco Rodrigo Almeida
Brasília e São Paulo

Em janeiro de 1969, menos de um mês após o AI-5, o então presidente brasileiro, o marechal Costa e Silva (1899-1969), reconheceu numa conversa com o embaixador norte-americano em Brasília, John Tuthill (1910-1996), que a ditadura havia "sacrificado algumas coisas não fundamentais" com o Ato para "preservar as fundamentais", conforme argumentou.

Ele tachou a imprensa de "irresponsável", os políticos como adversários das "realizações da Revolução", referindo-se ao golpe de 1964, mas reconheceu que o Brasil entrava para o grupo de países latino-americanos (ao lado de Peru, Bolívia e Argentina) que viviam sob "regimes de exceção".

O documento mostra que Costa e Silva procurou ganhar tempo com o embaixador americano: pediu que ele dissesse ao governo dos EUA que havia uma "completa tranquilidade" no Brasil e que as coisas voltariam "ao estado de normalidade oportunamente", com a cautela necessária. O AI-5, contudo, só foi revogado quase dez anos depois, em outubro de 1978.

Ocorrida no palácio presidencial de verão em Petrópolis na presença do chanceler Magalhães Pinto (1909-1996), a conversa de meia hora foi registrada num telegrama, então classificado como confidencial e atualmente disponível para consulta no arquivo virtual do Departamento de Estado dos EUA, produzido pelo embaixador, que se despedia do Brasil.

Costa e Silva recebeu Tuthill com "cumprimentos efusivos" e logo "se lançou em um de seus longos monólogos", ao qual deu um fim abrupto, quando soou "o toque de recolher", às 18h. O embaixador reclamou depois que "mal conseguiu encaixar uma palavra".

Depois de uma introdução "longa e desconexa" sobre os méritos das lentes de contato, o marechal comentou que Tuthill deixava a América Latina num momento "confuso" para a região, com a Colômbia em estado de sítio e outros quatro países, nos quais incluiu o Brasil, em "regime de exceção". O Uruguai era "um bom vizinho", mas estava "virtualmente "entregue aos comunistas"", escreveu o embaixador.

O presidente brasileiro, segundo Tuthill, demonstrou estar "consideravelmente cônscio das críticas dos EUA" sobre o AI-5 e "aparentemente as compreende". Em defesa da decisão brasileira, Costa e e Silva argumentou que os EUA têm uma "vida estratificada" e que "não se pode esperar que compreendam os problemas dos países em fase de desenvolvimento".

Foi a deixa para uma das poucas intervenções do embaixador. Ele afirmou a Costa e Silva que os EUA não desejavam "impor seu padrão a qualquer outro país", mas apontou que antes de sua eleição indireta, em 1967, escolhido de forma simbólica pelo Congresso, o presidente havia falado "três coisas que eu precisava ter em conta": "1) As Forças Armadas são a instituição mais importante do Brasil; 2) as Forças Armadas queriam que Costa e Silva fosse presidente; e 3) ele, Costa e Silva, trabalharia por um retorno a uma situação na qual um civil ou militar poderia ser escolhido como presidente".

Tuthill contou ter usado essas declarações em seus relatórios para o governo dos EUA em Washington, que agora "vinha acompanhado os atuais desdobramentos com preocupação". O embaixador indagou à queima-roupa: "O presidente gostaria que eu transmitisse alguma mensagem?"

Costa e Silva demonstrou preocupação sobre o imagem que o Brasil passava aos EUA naquele momento com o AI-5. Pediu que que o embaixador explicasse "toda a situação" para seus superiores e pontuou que havia "completa tranquilidade" no Brasil, em uma de suas expressões favoritas, que repetiu "diversas vezes" na conversa. O marechal falou do sacrifício "de algumas coisas não fundamentais" e culpou basicamente dois setores para o estado de coisas: os meios de comunicação e "a classe política", a exemplo do que já havia feito dias antes em seu discurso de Ano Novo.

"Ele [general] disse ter trabalhado por um entendimento entre os políticos e os militares, mas que os políticos não querem um entendimento. Se estivéssemos [EUA] cientes de todos os fatos, saberíamos que os políticos desejam desmantelar todas as realizações da Revolução. "Ninguém trabalhou com mais afinco do que eu [general] junto aos políticos, mas eles se recusaram a compreender"", escreveu o embaixador.

Sobre a imprensa, Costa e Silva reclamou "das dificuldades que enfrentou", citando como exemplo o Correio da Manhã, jornal do Rio fundado em 1901 que fazia uma cobertura crítica sobre o regime militar desde o golpe. Sua proprietária, Niomar Moniz Sodré Bittencourt (1916-2003), naquele mesmo mês teria seus direitos políticos cassados e depois seria presa e processada pela ditadura.

Ficou num cárcere em Bangu, no Rio, em uma ala reservada a ladras e prostitutas, segundo texto de 2009 do escritor e jornalista Ruy Castro. Niomar foi absolvida em 1970 mas o jornal, sob intensa pressão política e financeira, faliu em 1974. O jornal fora invadido por agentes da repressão na mesma noite do AI-5, 13 de dezembro de 1968.

Na conversa, Costa e Silva reclamou com o embaixador que "desejava afrouxar a censura, mas tão logo o fez o Correio da Manhã imprimiu uma carta que ele [general] estaria supostamente enviando ao presidente eleito [Richard] Nixon". "Uma coisa desse tipo não seria permitida nos EUA, e o Correio teria sido processado, mas nossas leis não são fortes o suficiente para lidar com uma imprensa irresponsável ("a de vocês nos EUA é mais responsável"). O Correio publicou até todas as críticas na imprensa americana e europeia. Por isso o governo confiscou a edição de ontem do jornal", escreveu Tuthill.

Costa e Silva encerrou a conversa pedindo ao embaixador "para garantir ao governo americano que o Brasil hoje é um amigo verdadeiro dos EUA. Isso talvez não fosse verdade sob "os outros" (ele estava se referindo presumivelmente ao grupo de [João] Goulart antes de 1964)".

Em um balanço do encontro, o embaixador não ficou convencido. "É difícil saber até que ponto ele mesmo acredita no que diz. É evidente que agora está ciente das forças irrequietas entre os militares brasileiros, mas pode ser que esteja convencido (ou tentando se convencer) de que é capaz de contê-las. A impressão geral que ele nos deu foi a de que, a despeito de sua astúcia natural, talvez esteja subestimando as forças que estão em ação em seu país."

"Direitos deixaram de existir"

As críticas que os EUA tinham sobre o AI-5, referidas por Costa e Silva a Tuthill haviam sido dirigidas pessoalmente pelo americano ao então chanceler brasileiro, Magalhães Pinto, cerca de 20 dias antes da visita ao presidente e seis dias depois do Ato.

Na conversa de 20 de dezembro de 1968, acompanhada pelo secretário-geral e futuro ministro do Itamaraty, Gibson Barboza, segundo telegrama dos EUA, Magalhães Pinto deixou claro que seu interesse principal era como os EUA lidariam "com os programas de assistência" entre os dois países.

Tuthill respondeu que "não havia problema de reconhecimento e que o governo americano não cortaria suas assistência", mas deixou claro a Magalhães Pinto que "a reação em Washington aos acontecimentos recentes havia sido muito forte".

O embaixador pontuou que era necessária "uma indicação melhor de se o Brasil revolveria na direção da restituição de direitos democráticos básicos". Nesse momento, Magalhães Pinto "concordou rapidamente que esses direitos deixaram de existir".

Tuthill disse que governo americano cumpriria suas obrigações contratuais, mas ""esperaria para ver" quando a futuros programas da AID [Agência de Desenvolvimento Internacional] e quanto aos programas em negociação no momento".

Magalhães Pinto ofereceu uma longa explicação sobre os acontecimentos que, segundo ele, conduziram ao AI-5. Afirmou que "as pressões vinham crescendo há algum tempo" e que o discurso do então deputado Marcio Moreira Alves, considerado o estopim do Ato, "não representava mais que 10% ou 15% do problema, mas seu caso foi mal conduzido e mal resolvido". Depois da votação no Congresso que negou autorização para processar Moreira Alves, segundo o chanceler, "ficou claro que as Forças Armadas desejavam que o presidente agisse".

O chanceler disse que "o presidente resistiu". Tuthill escreveu no telegrama que "outras fontes confirmam". "Na primeira noite, ele [Costa e Silva] disse aos militares que não haveria solução naquele dia. Pelo segundo dia, já estava claro que se ele não agisse seria "ultrapassado". Assim, ele escolheu o caminho menos pior, que foi promulgar o Ato Institucional número 5."

O chanceler brasileiro argumentou que "a intenção do presidente é usar os imensos poderes de que dispõe de maneira firme mas moderada. O maior medo dos militares é a subversão, que também afetaria o desenvolvimento econômico. Parte disso é imaginário mas parte representa fatos sólidos. A intenção do presidente é resistir a grupos radicais e evitar a imagem de um governo militar".

Tuthill tinha muitas dúvidas sobre a promessa do chanceler de um rápido retorno à normalidade. "O presidente deseja o retorno da plena liberdade de imprensa o mais breve possível, "mas a poeira do ato institucional ainda não se assentou". O maior problema é que as forças armadas consideram a imprensa responsável pela agitação estudantil. Fica claro que o FonMin [Magalhães Pinto] enfrenta dificuldade para explicar exatamente como a liberdade de imprensa poderá ser restaurada, agora", escreveu Tuthill.

Como seria?

Cinquenta anos depois, o país está livre do risco de um novo AI-5?

Num exercício teórico –que, se espera, nunca chegue ao plano da prática– a Folha ouviu especialistas em direito e comunicação para especular de que maneira um decreto tão arbitrário poderia ser implantado hoje.
Os entrevistados foram unânimes em dizer que um novo AI 5 teria como um de seus principais alvos o ambiente digital.

O decreto militar de 13 de dezembro de 1968 permitia ao presidente censurar a imprensa, correspondências, telecomunicações e diversões publicas. "As emissoras de televisão, as rádios e as redações de jornais foram ocupadas por censores recrutados na polícia e na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais", escreveu o jornalista Elio Gaspari, colunista da Folha, no livro "A Ditadura Envergonhada".

Hoje o controle da informação exigiria uma atuação mais ampla e intensiva que ocupar órgãos de comunicação.

"A experiencia com países autoritários demonstra que a primeira coisa a ser controlada é a internet. Foi o que ocorreu no Egito e, mais recentemente, na Turquia e na Ucrânia. Um dos efeitos imediatos poderia ser o bloqueio à internet em todo o país", diz Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e colunista da Folha.

Não seria algo muito complexo de realizar, explica -o país já teve amostras disso nos episódios em que o servio de mensagens instantâneas WhatsApp foi interrompido por conta de ordem judicial. O bloqueio em toda a rede seria efetuado por meio de uma ordem coercitiva ilegal, que coagiria as empresas de telecomunicação a suspender a conexão.

"Seria um rompimento institucional muito grave e as empresas deveriam resistir a qualquer tipo de ordem nesse sentido, sob pena de cumplicidade com uma medida de exceção."

Pablo Ortellado, professora da USP que se dedica ao estuda das redes sociais, lembra o caso da China. Lá os principais sites e aplicativos sociais do Ocidente foram banidos e substituídos por similares desenvolvidos por empresas chinesas subordinadas ao poder do Estado. Dessa maneira é possível vetar conteúdos e proibir buscas a respeito de determinados temas e palavras.

"Se o país não desenvolver programas nacionais, é muito difícil controlar esses serviços, pois essas grandes empresas operam todas nos EUA, estariam fora do alcance do governo de um determinado país. Num caso extremo, o mais fácil seria suspender sites e redes sociais".

Ele destaca o nefasto processo de submissão pelo qual passaria a sociedade civil após uma ação absolutista como essa, uma vez que as redes sociais cumprem uma função de informação e mobilização social.
Daniel Fink, engenheiro de telecomunicação, cita outros modelos externos totalitários. Na Síria, conta, houve investimento em espionagem na rede para identificar usuários influentes que estimulassem ações contra o governo.

"Na verdade, a internet até ajuda na perseguição, pois acaba sendo uma ferramenta informatizada de delação premiada. Tudo o que se faz gera um registro. Tecnicamente é muito simples identificar o usuário", diz.

Esse método, diz ele, permitiria uma perseguição mais velada, dando ao país a oportunidade de ostentar um pretenso verniz democrático, em contraposição ao ato escancarado de vetar a internet. Exemplo mais extremo é o caso da Coreia do Norte, cujos cidadãos são proibidos de usar a internet. Lá só é liberada uma rede interna, com informações autorizadas pelo governo.

Para o advogado Diogo Rais, uma novo de AI 5 teria uma roupagem mais diversa. No lugar da informação, o Estado totalitário controlaria a desinformação. As forças da ditadura teriam um setor de distribuição em massa de notícias falsas.

"Uma propagação intensa de notícias falsas teria o efeito de ludibriar a população em favor do governo, criando um ambiente de desconfiança em relação às instituições, à imprensa tradicional. Poderia levar a uma erosão perigosa dos princípios democráticos", especula.

Um novo AI 5 parece ser um cenário apocalíptico demais para ser concretizado, mas a prudência sugere a eterna vigilância em relação ao Estado.

"A democracia é um processo de construção permanente, incessante, não é um dado posto e estático. Por isso é que devemos defendê-la radical e incondicionalmente", afirma o advogado constitucionalista Marcus Vinicius Furtado Coêlho, ex-presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

"Os meios de resistência contra o arbítrio são lutar para manter nossas instituições fortes, independentes e imparciais, e a garantia da possibilidade do dissenso democrático, de organizações da sociedade civil e da liberdade de expressão."