Em setembro de 1969, Gilson Rampazzo, então com 25 anos, estava preso nas instalações da Oban (Operação Bandeirante), recém-criado centro de repressão na zona sul de São Paulo.
Um dos policiais o chamou para limpar a sala utilizada para a tortura dos presos. Havia sangue espirrado por boa parte da parede. Sem a pretensão de soar convincente, um dos torturadores comentou: "A gente ficou matando pernilongo ontem à noite".
Embora tenha sido preso e torturado, Rampazzo não participou da luta armada, como os próprios militares concluiriam posteriormente. Havia chegado à Oban por vias tortuosas.
Além de estudante de letras na USP, em São Paulo, o rapaz dava aulas em um curso preparatório para vestibular, o Equipe, do qual foi um dos fundadores. Mais tarde, o cursinho deu origem ao colégio de mesmo nome.
Nascido em Americana (SP), Rampazzo era ligado às ideias da esquerda, orientação que ele, aos 75 anos, mantém com convicção. No entanto, afirma que jamais se envolveu com partidos políticos, nem com a guerrilha.
"Ao observar colegas que militavam, sentia que eles ficavam muito presos às ordens que vinham da cúpula [das organizações]. Eu queria liberdade de pensamento", conta Rampazzo.
Depois de decretado o Ato Institucional número 5 pelo governo Costa Costa e Silva, em 13 de dezembro de 1968, ele percebeu "uma radicalização do sentimento da luta armada. Endureceu de um lado [a ditadura], endureceu de outro [os grupos de esquerda]. Eu sentia nas pessoas que militavam nas organizações políticas que esse endurecimento os estimulava, desafiava".
Do ponto de vista pessoal, no entanto, pouco mudou. Rampazzo continuava estudando na USP e dando aulas no Equipe.
Passados nove meses do AI-5, um fusca explodiu na rua da Consolação. No assento do motorista, estava Ishiro Nagami, militante da ALN (Aliança Libertadora Nacional). O carro transportava explosivos, o que indicava os preparativos para uma ação da guerrilha urbana.
Nagami, que morreu nesse episódio, também era professor do Equipe. Além disso, vivia no mesmo prédio de Rampazzo, no bairro de Santa Cecília.
Horas depois da explosão, ao chegar ao edifício de Nagami, os policiais perguntaram ao zelador se havia por lá alguma outra república de estudantes. Sim, havia. Era o apartamento onde Rampazzo morava com cinco amigos.
"Acordei com um chute na cama. Ao abrir os olhos, tinha um cano de metralhadora no meu nariz", recorda-se. Foi imediatamente levado para a Oban.
Pau de Arara
Logo nos primeiros dias, ele e um amigo foram questionados sobre o paradeiro de uma jovem com quem eles tinham proximidade. Era Helenira Resende, militante do Partido Comunista do Brasil.
"Nós não sabíamos onde ela estava, não fazíamos ideia. Ainda bem porque eu teria falado se eu soubesse. Eu não estava preparado para aquilo". "Aquilo" a que Rampazzo se refere é a tortura.
Inconformados com as respostas dele, os policiais o penduraram em um pau de arara. "É uma posição em que você tensiona os músculos, afeta os tendões atrás do joelho. É horrível".
Além disso, continua a descrever, "eles amarraram um fio elétrico no dedo mindinho da mão direita, outro na orelha e outro no meu pênis. Por semanas, ficaram marcas pretas de queimadura no dedo e no pênis. Na orelha não sei, não havia espelho na prisão".
Enquanto Rampazzo estava no pau de arara, seu amigo sofria choques na "cadeira do dragão", uma espécie de cadeira elétrica desenvolvida pelos militares brasileiros.
Com a voz embargada, entre um cigarro e outro, ele arremata o assunto: "Não gosto muito de lembrar disso".
Depois de alguns dias na Oban, Rampazzo foi transferido para o Dops (Departamento de Ordem e Política Social), outro núcleo de repressão do regime. Considerando os dois locais, permaneceu encarcerado por cerca de um mês.
Foi liberado graças à persistência do advogado José Carlos Dias, que havia sido contratado pelo Equipe. "Ele [Dias] exigiu que os funcionários do Dops abrissem um processo contra a gente [Rampazzo e amigos] ou que nos soltassem. Como não tinham nada que nos condenasse, nos soltaram".
A readaptação à rotina foi difícil. Depois de um breve período com o irmão, em São Paulo, Rampazzo voltou à casa dos pais, em Americana, onde passou alguns dias. "Eu não conseguia dormir direito, estava brocha, deprimido."
Ao longo da entrevista, o professor fala das marcas do quinto ato institucional sob dois ângulos: a carga emocional a partir da sua própria experiência e o impacto do decreto na história do país.
"Se eu fui preso e passei por tudo isso sem ter grandes compromissos políticos, imagina quem tinha... A repressão aumentou muito com o AI-5, passou a ser muito mais cruel. A censura era violenta, não havia chance de diálogo, de opinião contrária."