O vazio impressiona. Entre Arizona e Nevada, as montanhas e a terra seca contrastam com o céu limpo do deserto, serpenteando quilômetros em que não é possível encontrar ninguém.
Há, claro, exceções, desde uma base da Força Aérea americana que testa drones para serem usados em guerras até uma cidadezinha de menos de 300 habitantes, onde se pode comer um ótimo hambúrguer ao lado de um ferro-velho com carros de época.
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O abandono do miolo do país não é um movimento novo nos EUA. Nas últimas décadas, em busca de emprego e melhores condições de vida, os americanos deixaram áreas rurais no entorno de pequenas e médias cidades em direção a grandes municípios.
Em 1950, 64% da população vivia em áreas urbanas. Hoje, esse número chega a 83% e, em 2050, será de quase 90%. A migração dentro dos EUA acontecia, geralmente, sem que a incidência de desastres naturais fosse levada em conta. Mas isso mudou.
Somada às condições socioeconômicas, a crise do clima se tornou um fator de peso para o esvaziamento do interior americano. Estudo publicado em 2018 pelo Journal of the Association of Environmental and Resource Economists mostra que, devido ao caos climático, uma em cada 12 pessoas que hoje vive no sul dos EUA vai migrar para a Califórnia ou regiões montanhosas do oeste e do noroeste do país nos próximos 45 anos.
O cenário deve ampliar ainda mais a pobreza e as desigualdades, além de reforçar a urbanização desordenada que sobrecarrega grandes cidades, deixando-as muitas vezes sem condições de fornecer serviços básicos.
Nossa primeira parada no Arizona é o exemplo mais emblemático desse fenômeno. Phoenix, a capital do estado, ultrapassou a Filadélfia no ano passado e se tornou a quinta maior cidade dos EUA —e a que mais cresce no país. A população foi de 1,4 milhão de habitantes, em 2010, para 1,6 milhão em 2020, aumento de 11,2%.
Por lá, casas têm dado lugar a prédios cada vez mais altos, o que gera temores de como fornecer água para toda a população em meio a temporadas de seca cada vez mais letais. Até setembro deste ano, 113 pessoas tinham morrido por razões relacionadas às altas temperaturas no condado de Maricopa, onde fica Phoenix, mais que o dobro das 55 registradas no mesmo período de 2020.
Foi sob quase 36°C no início de outubro, quando já é outono no hemisfério norte, que encontramos Rick Caywood, em Casa Grande, área rural do Arizona. A 75 quilômetros de Phoenix, a região é líder na produção de algodão, cevada e gado no estado, mas a fazenda da família Caywood só conseguiu produzir alfafa neste ano.
De suspensório, boné e cheiro de pastilha de menta, sempre à mão para aliviar a tosse persistente, Rick nos levou às terras tocadas pelo filho, Travis, e pela ex-mulher, Nancy.
Ele explica que a alfafa é mais resistente ao calor do que o algodão, por exemplo, e tem preço estável —o que faz da leguminosa a aposta mais segura em tempos difíceis.
"A seca é um problema de décadas no Arizona, mas tem piorado. As pessoas aqui usam poços, e eles estão baixando, assim como os lençóis freáticos", diz Rick.
A principal fonte de água do oeste americano é o rio Colorado, que abastece Arizona, Nevada, Califórnia, Novo México, Utah, Wyoming e Colorado. As rigorosas secas nos últimos anos, porém, baixaram o nível do rio a cifras nunca vistas antes e levaram à escassez o lago Mead, maior reservatório de água dos EUA, na divisa entre Arizona e Nevada.
Diante da situação emergencial, o governo americano declarou em agosto deste ano a falta de água no rio Colorado —um anúncio sem precedentes— e previu redução no abastecimento de diversos estados a partir do início de 2022.
Os cortes, que podem ser ampliados, somaram-se a um plano de contingenciamento que já havia sido colocado em prática desde 2019 pelos sete estados que dividem o rio.
Em um primeiro momento, a ordem era que cidades e tribos indígenas fossem poupadas, fazendo com que o racionamento atingisse em cheio as áreas rurais.
"As cidades estão nos matando, porque agora são prioridade para o abastecimento", afirma Rick. "Minha pergunta é o que vão fazer quando as fazendas secarem. [...] Essas pessoas precisam comer e se vestir, e, para isso, a gente precisa plantar."
Nancy, a ex-mulher de Rick, caminhava agitada para mostrar o barulho crocante que fazia ao pisar sobre as folhas secas de sua propriedade. De longe, explica ela, o campo até parece verde, mas um olhar mais próximo mostra a real situação. "Entre as plantas que sobraram, só tem folhagem seca. Minha colheita vai cair muito, perdemos metade da plantação", diz a fazendeira. "No ano passado, tínhamos um pouco de água nesta época [setembro e outubro], agora não temos. Acredito que o ano que vem será ainda pior."
O deserto dos EUA é historicamente seco, mas os efeitos da crise climática têm piorado o cenário: 2020 foi o ano mais árido em Nevada e o segundo mais seco no Arizona desde 1894, e a agência federal que controla os canais de irrigação em Casa Grande avisou aos fazendeiros em abril que não haveria água suficiente para as plantações neste ano.
Há quatro décadas nos EUA, o mexicano Julio Vazquez, 71, sempre trabalhou no cultivo de algodão no Arizona. Sua vida, diz ele, era melhor anos atrás, mesmo quando ainda não tinha os documentos que o autorizam a viver e a trabalhar nos EUA. "Tinha mais plantação, ou seja, mais trabalho. Agora, a quantidade de água caiu, e as pessoas estão indo embora."
A terra em que Julio vive e trabalha pertence ao americano Jack Henness, que estacionou sua picape ao lado da reportagem para saber o que falávamos com o funcionário. Suspirou desanimado quando explicamos o tema da conversa.
"O governo poderia ajudar os fazendeiros nessas fases mais críticas, com subsídio ou algo do tipo. Mas é difícil, porque há outros problemas. Aqui estamos na seca, mas, do outro lado do país, tem enchentes, furacões e, mais para frente, os incêndios [florestais da Califórnia]."
Aos 63 anos, Jack comemora, ainda que de forma melancólica, ter vendido grande parte das terras que sua família tinha no Arizona. Lamenta, por outro lado, que fazendeiros mais jovens, na visão dele, sejam os mais prejudicados, ao abandonarem os negócios antes do que gostariam. "A crise do clima está mudando dramaticamente a vida das pessoas."
Assim, visitar a principal fonte de água do oeste americano virou uma obrigação. Em 4 de outubro, chegamos ao lago Mead, reservatório criado na década de 1930 e que, neste ano, chegou ao menor nível de sua história.
Sua represa, a famosa Hoover, foi cenário de filmes como "Super-Homem" (1978) e "Na Natureza Selvagem" (2005), entre outros, e hoje segue como atração turística.
Ver aquela estrutura gigantesca, encravada no deserto, é chocante. Uma mancha mais clara divide as montanhas em torno do lago como um lembrete de que o nível da água já foi muito mais alto —o pico é de 1983, com a marcação a cerca de 370 metros acima do nível do mar. Em agosto de 2021, o patamar era de 35% da capacidade total do reservatório.
Apesar disso, as áreas recreativas que cercam a represa ainda funcionam como balneário para pessoas que, ao contrário dos fazendeiros do Arizona, dizem pouco sentir a crise do clima, já que vivem nas cidades por ora poupadas de racionamentos.
Jessica Owens, 41, foi uma das que arriscaram um mergulho apesar das placas que alertam para a ausência de salva-vidas. Para ela, o nível do lago Mead não é mais o mesmo e o caos climático é real, mas, como nunca viveu cortes de água, a crise é pouco visível no seu dia a dia.
Jessica vive em Las Vegas, que tira do lago Mead 90% da água consumida pelos seus 650 mil habitantes e mais de 40 milhões de turistas anuais que viajam à cidade em busca de resorts e cassinos, situados entre réplicas da Torre Eiffel e da Estátua da Liberdade.
Dentro dos resorts, alguns com 6.000 quartos, é permitido fumar nas salas em que ficam as mesas para jogos de cartas e máquinas de caça-níquel, sem portas ou janelas, na tentativa de criar uma atmosfera de noite animada a qualquer hora do dia.
A cultura do consumo e do desperdício —motor do estilo de vida de muitos americanos— é refletida em cenas que se repetem a cada passo na Strip, a avenida mais turística da cidade.
À noite, pessoas cheias de sacolas esperam horas para jantar no Bacchanal Buffet, local com 600 lugares no esquema coma-tudo-o-que-puder por US$ 74,99. De dia, elas tentam aplacar o calor com drinques em piscinas gigantescas, algumas com ondas artificiais.
Las Vegas é a cidade que aquece mais rapidamente nos EUA, com temperaturas no verão superiores a 45°C. E, assim como Phoenix, cresce em ritmo acelerado e tenta encontrar formas de não entrar em colapso diante da combinação de crise do clima e altas demandas.
Caso não haja ação global para diminuir as emissões de gases do efeito estufa, Las Vegas deve experimentar mais de três meses por ano com temperaturas acima de 37°C, incluindo 60 dias acima de 40°C. Autoridades dizem que medidas estão em marcha para mitigar a crise, principalmente em termos de conservação da água e consumo de energia renovável.
Um dos exemplos é que quase 100% da água utilizada na parte de dentro de casas e estabelecimentos comerciais de Las Vegas é reciclada e volta para o rio Colorado, ficando novamente disponível para o uso da cidade.
"Você pode ir para a Strip, ligar todas as torneiras, acionar todas as descargas e ainda assim não vai afetar a parte da água que tiramos do rio Colorado", afirma Corey Enus, coordenador de informação pública da agência de água de Las Vegas. "Temos uma infraestrutura nova e das mais eficientes dos EUA. Perdemos de 8% a 12% de água no processo de tratamento, oito vezes menos que a média no país." O problema, pondera Corey, é que a água reutilizada representa apenas 40% do consumo da cidade. Os outros 60% são usados do lado de fora de casas, hotéis e comércio, sem chance de reaproveitamento.
A inglória missão de tentar controlar o uso de água em áreas externas no meio do deserto é de 47 funcionários do Las Vegas Valley Water District. Um deles é Perry Kaye, 61, que há 16 anos se apresenta como investigador de desperdício de água na cidade.
Das 3h30 às 14h, ele percorre ruas para encontrar, advertir e multar quem está gastando água de maneira inapropriada. Naquele 6 de outubro, ao realizar uma de suas rondas, Perry nos mostrou a violação mais recorrente: uma casa mantinha dois regadores automáticos jorrando água sobre o jardim, em dia ou horário não permitidos pela lei.
Com o celular, ele filma a cena, enquanto fala o que vê para que não haja contestação. E deixa um aviso na porta da garagem. "Eles tomaram apenas uma advertência porque não tinham recebido algo do tipo antes. Espero que ajam rapidamente." Caso contrário, a multa varia de US$ 80 a US$ 1.280 (R$ 440 a R$ 7.040), a depender da reincidência.
Em Las Vegas, é considerado desperdício quando a água fornecida pelo distrito está sendo utilizada fora da propriedade, em dias ou horários proibidos. No verão, não se pode regar gramados e plantas das 11h às 19h, quando está muito quente e parte do líquido evapora rapidamente. Nas demais épocas do ano, a cidade é dividida em zonas, com dias e horários específicos para irrigação.
"Podemos cortar o consumo de água em 50% se todos cumprirem a regra", diz o agente, acrescentando que o pico de violações acontece na madrugada, entre 3h30 e 5h. "As pessoas não esperam que a gente apareça a qualquer momento, porque somos servidores públicos. O que muita gente faz é tentar esconder os desperdícios durante a noite. Eles acham que estão sendo sorrateiros, mas estamos lá com as nossas lanternas."
Perry conta que investiga de 20 a 30 casos por dia e aposta no caráter educacional de seu trabalho. Segundo ele, as punições têm caído —o pico diário foi de 63 violações. "Muito raramente ganho um dedo do meio. Vem de pessoas que não seguem nenhuma regra, que dizem que não posso falar o que elas devem fazer."
Las Vegas intensificou sua guerra contra a grama desde 2002, quando lançou um programa para estimular moradores a tirarem a cobertura verde de seus jardins em troca de dinheiro. A medida deu certo por um período, mas, com a queda da demanda, novas ações públicas se fizeram necessárias diante da seca cada vez mais intensa.
Em junho, uma lei foi aprovada para que toda a grama decorativa (de canteiros, entradas de condomínios e de áreas comerciais) seja retirada até o fim de 2026 —ou seja, 31% da grama da cidade, o que pode gerar uma economia anual de bilhões de litros de água.
Pode ser tarde demais. A crise do clima segue gerando ineditismos, e cortes obrigatórios no abastecimento de água já são previstos no oeste americano em um futuro próximo. No cenário mais grave, os efeitos devem ir para além das áreas rurais e pressionar grandes cidades, testando um sistema do qual dependem 40 milhões de pessoas —muitas delas céticas de que uma ameaça existencial já chegou ao jardim de casa.