O caminho que nos levou da tragédia no sul da Louisiana ao miolo do Texas foi um dos mais longos da viagem. Nas quase 12 horas de carro, nos preparamos para encontrar um panorama mais otimista na pequena McCamey. Não foi bem assim.
Fundada em 1925, com a descoberta de poços de petróleo na região, a cidade hoje se intitula a capital eólica do Texas, cercada de turbinas movidas a vento que se multiplicam em meio aos buracos para extrair petróleo e gás natural.
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Mas o que seria o prenúncio de um município inovador, baseado na transição energética, dá lugar a um cenário decadente. McCamey parece uma cidade fantasma, com poucas pessoas caminhando nas ruas, construções abandonadas e quase sem sinal de celular.
Em seus tempos áureos, pós-fundação, a cidade chegou a abrigar 10 mil habitantes, grande parte dos quais ligada à indústria petrolífera. Hoje, o número de moradores não passa de 2.000, fruto de um êxodo que começou na década de 1930, com a Grande Depressão e a descoberta de novos poços de petróleo do outro lado do estado.
Muitos dos que ainda vivem ali são céticos quanto ao uso de energia renovável ou rechaçam a possibilidade de abandonar os combustíveis fósseis. A conjuntura da cidade é a alegoria do quão difícil é fazer a transição energética nos EUA, onde a emissão de poluentes foi vista por muito tempo como símbolo de desenvolvimento.
"Sou pró-petróleo e pró-gás", diz uma moradora, sem dar espaço para conversa. Em poucas horas, já era possível concluir: McCamey, a capital eólica do Texas, é do petróleo.
Na manhã daquela terça-feira, 28 de setembro, havia apenas carros nas ruas. Só foi possível ver algumas pessoas a pé depois do meio-dia, quando um estridente apito de fábrica avisa a operários e estudantes que a hora do almoço chegou.
Parte do primeiro grupo —formado majoritariamente por pessoas de origem latina— se abarrota no Elena's Kitchen para comer arroz, feijão e carne vermelha no estilo self-service. Do outro lado da rua, o Burrito Place faz sucesso com quitutes mexicanos.
Ramón Torres, 73, não comeu em nenhum dos restaurantes. Usou a hora do almoço para arrumar a porta de casa, dar milho às galinhas e receber a Folha em seu jardim.
"Capital eólica do Texas? Nunca ouvi [o apelido], mas temos energia eólica no entorno. Só não sei se eles usam essa energia aqui ou se vendem para outros lugares."
Ramón trabalha como vendedor de azeites e reclama que o preço da conta de luz tem subido. Afirma acreditar que a culpa é das distribuidoras de energia, que cobram cada vez mais caro, e do calor, ainda mais intenso nos últimos anos em um estado acostumado com altas temperaturas, que podem passar de 40°C no verão.
"Moro com a minha mulher e gasto energia elétrica com chuveiro, máquina de lavar e secar roupa, mas, principalmente, com ar condicionado, que tenho ligado todos os dias."
Segundo ele, a solução para gastar menos não está no uso de fontes renováveis. Do seu gramado, aponta o telhado vizinho, coberto de painéis de energia solar, e explica por que se recusa a adotar o sistema. "A instalação é muito cara, e nunca vou terminar de pagá-la. Dizem que os painéis solares baixam a conta de luz, mas não sei, prefiro não arriscar."
A instalação de painéis nos EUA pode custar de US$ 15 mil a US$ 25 mil (R$ 84 mil a R$ 140 mil), mas há serviços de aluguel e incentivos públicos para tentar reduzir ou compensar gastos.
Para sistemas introduzidos até o fim de 2022, por exemplo, o governo federal oferece 26% do valor da instalação como crédito no imposto de renda do proprietário, e a expectativa é a de que os painéis consigam economizar até 90% por mês nas contas de luz das residências.
Para além dos painéis solares, os moradores de McCamey podem escolher qual será a composição do fornecimento de energia nas suas casas, numa cartela que varia entre 100% baseada em petróleo, 50% renovável mais 50% petróleo ou 100% proveniente de energia limpa. A partir daí, as distribuidoras aplicam as tarifas, mais caras conforme fontes renováveis entram no jogo.
As conversas com moradores já haviam sinalizado qual era a preferência deles, mas a certeza só veio após uma visita à prefeitura. A republicana Patty Jones, 54, comanda McCamey desde 2017 e, no ano que vem, deve concorrer a mais um mandato. Como cidadã, explica, escolheu que 100% da energia elétrica que consome em casa venha do petróleo.
"É a opção mais barata, e acredito que a maioria das pessoas na cidade também escolheu assim por essa razão. Se optasse por 100% renovável, teria uma diferença significativa na minha conta de luz. No verão, eu pagaria de US$ 75 a US$ 100 a mais por mês."
Apesar de finitas, fontes como petróleo e gás natural são ainda abundantes e contam com tecnologias cada vez melhores para explorá-las, o que torna produção e uso mais baratos. Estudo divulgado em setembro pela Universidade Oxford mostra, no entanto, que o preço das fontes de energia, no geral, têm convergido a cerca de US$ 100 por megawatt/hora.
Enquanto o valor das renováveis, como solar e eólica, caiu cerca de 10% ao ano nas últimas três décadas —e mantém tendência de barateamento exponencial—, o dos combustíveis fósseis não fica mais em conta. Quanto mais parques de energia solar e eólica são construídos, melhor será o custo-benefício da energia renovável, e, por isso, a indústria de combustível fóssil têm pressionado legisladores, produtores e distribuidores para atrasar o processo.
Sobre o apelido de capital eólica do Texas, a prefeita conta que o rótulo caiu sobre McCamey há quase 20 anos, quando os primeiros parques eólicos do estado começaram a funcionar por ali, mas confirma que a cidade continua baseada em petróleo e não é lugar de pedestres.
"Não estamos fazendo transição energética. Petróleo é onde está o nosso dinheiro, onde o Texas foi gerado e onde estão nossos postos de trabalho."
Patty reconhece que a produção de energia eólica e solar está crescendo em todo o estado e estimula a criação de empregos, mas ali não há competição à altura do xodó centenário.
Nem nos EUA. Há mais de cem anos, combustíveis fósseis dominam a produção e o consumo dos americanos, principalmente nos setores de indústria e transportes, os mais poluidores.
Para se ter uma ideia, no ano passado o consumo de energia nos EUA foi 35% proveniente de petróleo, 34% de gás natural, 12% de fontes renováveis —sendo 39% disso biomassa, 26% eólica, 22% hidrelétrica, 11% solar e 2% geotérmica—, 10% de carvão e 9% nuclear.
O Texas, maior estado produtor e consumidor de energia do país, funciona como o grande motor dessa engrenagem. Segundo a Agência de Informação de Energia americana, o estado representou 43% da produção de petróleo bruto e 26% da de gás natural comercializada nos EUA no ano passado. As 31 refinarias do Texas conseguem processar 5,9 milhões de barris por dia, ou seja, 31% da capacidade americana.
Mas o estado também tem se destacado em fontes renováveis e é líder nacional em geração de energia eólica, com 28% de toda a eletricidade produzida por esse meio no país em 2020.
Apesar dos superlativos, o Texas viveu um dos piores apagões de sua história no início deste ano, estimulando, outra vez, o debate sobre como a energia eólica —e outras fontes renováveis— podem deixar o sistema energético do estado mais eficiente.
Em fevereiro, ondas de frio extremo chegaram do Ártico empurradas pela crise do clima e cobriram de neve o Texas, acostumado a temperaturas mais amenas no inverno. Centenas de pessoas morreram de frio ou em decorrência dele, e milhões ficaram sem luz, aquecimento e água potável.
À época, o estado perdeu 40% de sua capacidade de produção de energia, com o congelamento de diversas estruturas, e o prejuízo material foi estimado em US$ 20,4 bilhões, espalhados desde a capital, Austin, até McCamey.
O episódio reflete a realidade sombria do segundo maior estado dos EUA. Com 29 milhões de habitantes, o Texas não tem estrutura para aguentar baixas temperaturas sobre as casas de grande parte da população nem sobre sua rede de energia elétrica.
Desde 2002, o estado é o único do país a operar uma rede elétrica isolada, na tentativa de evitar regulação e supervisão do governo federal, o que significa que não exporta excesso de energia produzida e tampouco consegue ajuda de outros estados em casos de emergência.
Assim, o traumático apagão foi resultado da combinação do frio incomum —que afetou a geração e o transporte de todos os tipos de combustíveis— com a incapacidade da rede elétrica de obter suprimentos de outros lugares.
A crise foi uma brecha para que negacionistas e políticos conservadores fossem a programas de TV e redes sociais com a tese falsa de que a culpa pela queda de energia era das fontes renováveis. O Conselho de Segurança Elétrica do Texas, que gere o sistema, foi a público para afirmar que "as condições climáticas extremas fizeram com que muitas unidades geradoras —em todos os tipos de combustível— desligassem e ficassem indisponíveis".
O órgão acrescentou que as fontes térmicas, como carvão, gás e nuclear, perderam quase duas vezes mais energia devido ao frio do que as renováveis.
As teorias conspiratórias, claro, não consideram fatos nem a ciência nem a avaliação de especialistas. E as que circundam a crise do clima são fomentadas, principalmente, por lobistas da indústria de combustíveis fósseis que, muitas vezes, convencem parte da população a repetir teses estapafúrdias.
A que ouvimos mais de uma vez sugere que o rastro de fumaça branca no céu deixado por aviões não é fruto de condensação, mas de produto químico para alterar o clima da Terra. Quem faz isso e por qual razão eram pontos pouco claros para os nossos interlocutores.
O mecânico Gary Rodríguez rechaça qualquer tipo de conspiração sobre a crise do clima. Nascido na Califórnia e morador de McCamey há nove anos, trabalha em uma empresa de produção e reparação de equipamentos utilizados na indústria de petróleo e gás.
Com a paciência de quem tem o assunto na ponta da língua, diz ter clareza que o apagão de fevereiro foi causado por um conjunto de fatores, cuja raiz é o sistema obsoleto de geração e distribuição de energia no Texas. "Eles não têm tecnologia para continuar a funcionar no inverno. As turbinas eólicas congelaram, os painéis solares não funcionaram bem porque estava nublado e com neve [sob essas condições, os painéis ainda operam, mas com menos eficiência do que em um dia ensolarado, quando não há obstrução de luz], e as estações de gás —movidas a água— também congelaram."
Enquanto consertava bombas de petróleo em sua oficina, Gary afirmou que uma transição energética só será possível caso haja diversificação das fontes de energia. Ele concorda que há muita resistência sobre o tema em McCamey, mas, para além das questões financeiras, explica que muitas pessoas, inclusive ele, precisam confiar mais nas alternativas.
A prefeita Patty faz coro. "Se a energia limpa fosse mais conveniente e mais barata, acho que haveria mais abertura para a transição energética. O ponto de virada será quando providenciarem um sistema no qual eu não precise me preocupar caso haja períodos de tempo nublado ou os painéis solares fiquem cobertos de neve."
Bernadette Del Chiaro é diretora-executiva da California Solar & Storage Association, que trabalha para ampliar a implantação de energia limpa no país e tem firmado diversas parcerias no Texas. Ela explica que muitas tecnologias permitem que os painéis solares funcionem também sob neve e baixas temperaturas e dá exemplos da eficiência dos equipamentos no Alasca, na Finlândia e na Suécia, locais acostumados ao frio extremo.
Para ela, é preciso quebrar a narrativa de que o uso de energia limpa é um processo complexo e caro e acrescenta que, sem apoio e investimento público, não há transição.
"Se você fizer a pergunta 'como podemos nos livrar dos combustíveis fósseis?', verá muita resistência, porque há uma crença de que precisamos deles como se fossem ar. Mas se a pergunta for 'você é a favor da energia renovável?', a maioria das pessoas vai concordar", afirma. "Precisamos explorar os pontos sobre os quais todos convergem. O governo do Texas e os de outros estados poderiam contornar isso com política. Investir e apoiar tecnologias, encorajar o consumidor a usá-las, isso mudaria automaticamente a conversa."
Bernadette diz ainda que os EUA têm entre oito e dez anos para fazer a transição energética. "Não chegaremos a zero de carbono em dez anos, mas a um ponto de inflexão, em que toda a economia estará inclinada na direção das fontes renováveis como caminho, enquanto as alternativas serão os combustíveis fósseis."
Foi em cima desse roteiro que, em abril, Joe Biden anunciou uma nova e ambiciosa meta de cortar pela metade as emissões de gases do efeito estufa nos EUA até 2030 —e neutralizá-las até o meio do século.
O presidente americano esperava liderar as soluções para a crise do clima e estimular outros países a se comprometerem com metas mais ousadas para frear o aquecimento global a 1,5°C e evitar catástrofes ambientais piores, em um mundo que já aqueceu quase 1,1°C.
Em 2019, os EUA emitiram 6,5 bilhões de toneladas equivalentes de dióxido de carbono (medida que equipara a influência de outros gases, como metano, à do CO2) e hoje são o segundo maior poluente do mundo, com 12,6% das emissões. A líder é a China, com 26,7%.
Mas a tarefa de Biden não tem sido fácil. Visto como ponto-chave de sua política climática, o pacote apresentado por ele ao Congresso para acelerar a transição energética sofreu cortes nos valores e enfrentou resistência não só de republicanos, mas também do senador democrata Joe Manchin, da Virgínia Ocidental, defensor da energia fóssil.
Na contramão dos entraves políticos, pesquisas mostram que 55% dos americanos são favoráveis à aprovação do projeto —a Câmara deu aval à legislação no meio de novembro e, se o Senado fizer o mesmo, o pacote será considerado o maior sobre o clima já aprovado na história dos EUA. "Porque não se trata do clima, mas da vida das pessoas, seus meios de subsistência, seus empregos. Trata-se de ter infraestrutura para suportar eventos que vemos na Flórida, na Louisiana, no Texas, em todos os lugares", afirma Yoca Arditi-Rocha, diretora-executiva do Instituto CLEO, que atua na proteção à crise climática.
Em agosto, o IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental de Mudança do Clima da ONU) atribuiu quase todo o aumento da temperatura global à atividade humana —1,07°C de 1,09°C do aquecimento da atmosfera já medido desde o início do século 20 veio daí. No pior cenário, serão mais 4°C ou 5°C, além de catástrofes imensuráveis.
Países como os EUA atrasaram a contenção da emissão de poluentes e se mantiveram na contramão do que alertavam cientistas, subsidiando combustíveis fósseis.
Agora, tentam remediar. No início de novembro, durante seu discurso na COP26, conferência da ONU sobre a crise do clima, Biden admitiu o atraso, mas disse que os EUA vão mudar a postura e liderar pelo exemplo. "É por isso que meu governo está trabalhando horas extras para mostrar que nosso compromisso com o clima é ação —não palavras."
Está claro que há um enorme desafio para que os EUA consigam entregar uma agenda doméstica do tamanho de suas ambições globais em termos de crise climática. O relógio não é favorável, e o presidente americano vai precisar de mais do que discursos para colocar a política no lugar onde, de fato, está a vontade pública.