Em menos de uma hora, o fogo engoliu Greenville. Na noite de 4 de agosto, uma parede de chamas desceu as montanhas e devastou 75% da pequena cidade no norte da Califórnia.
As árvores altas que cercam o município centenário, junto com o vento forte e a vegetação seca, deram mais combustível às labaredas. Prefeitura, igreja, casas e comércios viravam cinzas, enquanto os últimos dos quase mil moradores eram levados para longe dali.
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Nenhuma pessoa morreu, mas dois meses depois, quando chegamos à cidade, ainda era possível sentir o cheiro de fumaça deixado pelo Dixie, o segundo maior incêndio florestal da história da Califórnia. O cenário era desolador: carcaças, pedaços de móveis e carros derretidos em meio a grossas camadas de poeira que cobriam estruturas irreconhecíveis.
Uma delas tinha sido, durante 17 anos, a casa da ex-garimpeira Tami Spang, que perdeu para o fogo dois gatos, um carro e tudo o que tinha. Em um balde de plástico, juntava o que conseguia salvar dos escombros. Até ali, peças de um presépio e um bracelete.
"Tem gente que fala que não vale a pena procurar, que é só porcaria queimada, mas é a minha porcaria queimada", diz Tami. "Greenville era conhecida como a região das minas de ouro. Agora, seremos a cidade destruída pelo Dixie. O fogo levou a nossa história."
Os incêndios florestais são comuns na Califórnia, mas a crise do clima tem aumentado o potencial destrutivo do fogo, já que as ondas extremas de calor e seca criam condições para que as chamas se espalhem com mais rapidez e se tornem mais difíceis de combater.
Os intervalos entre as catástrofes também estão mais curtos. Dos 20 maiores incêndios na Califórnia, nove aconteceram entre 2020 e 2021, em um sinal de que o processo de reconstrução de cidades e de florestas dizimadas está próximo do insustentável.
Em 2018, a 120 quilômetros de Greenville, o incêndio florestal Camp deixou 86 mortos e destruiu o município de Paradise, que até hoje não conseguiu se recuperar completamente.
Segundo o Departamento Florestal e de Incêndios da Califórnia, de 1987 a 2019 a extensão de terreno queimado no estado nunca havia passado de 8.000 km² por ano. Em 2020, porém, esse número saltou para 16 mil km². Até outubro de 2021, já eram 11 mil km², 3.800 dos quais devido ao Dixie. O incêndio que destruiu Greenville só ficou atrás do August Complex, de 2020, o maior da história na região ao queimar mais de 4.000 km².
O Dixie começou no norte da Califórnia em 14 de julho, após uma árvore cair em uma linha de transmissão da Pacific Gas and Electric, a maior empresa de energia do estado. O fogo então se espalhou rapidamente pela Floresta Nacional de Plumas.
De acordo com levantamento do jornal The New York Times, o incêndio precisou de quase três meses, 6.500 pessoas, milhões de litros de água e US$ 610 milhões (R$ 3,35 bilhões) para ser controlado —de longe, a campanha mais cara de combate ao fogo no estado.
Enquanto o Dixie queimava áreas gigantescas, outros incêndios florestais menores se espalhavam pela Califórnia, deslocando populações e equipes de socorro. Na semana em que passamos por lá, aprendemos um mantra repetido pelos moradores como senso de sobrevivência: "You see the glow, you go", algo como "quando enxergar o clarão, corra".
No início de outubro, ainda eram poucos os que tinham voltado para conferir o estrago em Greenville. Richard Hamblin era um deles e estava desolado. A casa construída havia algumas décadas pelo avô dele estava vazia no dia do incêndio e virou pó.
Com a ajuda de voluntários, Richard tentava encontrar um anel que seu pai, hoje com 92 anos, ganhou ao se formar no ensino médio, no fim da década de 1940.
"Meu pai foi bombeiro por 70 anos", conta ele, para ilustrar que lidar com incêndios era rotina em sua casa. Por isso, ao ser questionado sobre como vai se preparar para o próximo, Richard é pragmático. "Não há mais nada para queimar aqui, mas não vou reconstruir."
Greenville foi atingida por outros incêndios ao longo dos anos, mas uma devastação nessas proporções só é comparável ao fogo de 1881, quando 500 pessoas viviam na cidade. Naquela época, a reconstrução levou menos de um ano, mas, desta vez, não há previsão.
"É impossível estimar prazos", diz Colin Dillon, da McLarens, seguradora que faz a cobertura dos prédios públicos de Greenville. "Setenta e cinco por cento da cidade foi destruída, e deve custar centenas de milhões de dólares para refazer toda a infraestrutura."
Colin estava na cidade no início de outubro para avaliar os danos e calcular os custos para a reconstrução dos prédios que abrigavam prefeitura, biblioteca, delegacia e corpo de bombeiros, em um trabalho que ele diz repetir à exaustão há 15 anos.
Por décadas, o governo investiu no combate a incêndios florestais, o que deu a muitos na Califórnia confiança para viver em áreas cercadas por florestas. O problema é que, ao mesmo tempo em que protegia as comunidades, essa política permitiu que vegetação seca se acumulasse, um fator que ajuda as chamas a se espalharem cada vez mais longe.
Ao sul de Greenville e perto da Baía de São Francisco, por exemplo, as vinícolas do Napa Valley —coração da produção de vinho dos EUA— veem os incêndios se tornarem uma grave crise. Turistas ainda lotam o mercado gourmet e os restaurantes no centro de Napa, mas, no alto das montanhas, encontramos produtores cercados por árvores queimadas, com pouco acesso a água e a expectativa de que esse panorama só vai piorar.
Stuart Smith nos recebeu em 10 de outubro na vinícola Smith-Madrone, que ele comprou em 1971. Dirigindo um carrinho de golfe, mostrou as plantações verdes e bem alinhadas de uvas que costumavam produzir de 4.000 a 5.000 caixas de vinho por ano.
Por mais de três décadas, a vinícola não sentiu os impactos da crise do clima. Em 2008, no entanto, o cenário mudou. A fumaça de incêndios florestais que atingiam outras partes da Califórnia chegou até o Napa Valley e contaminou as uvas de Stuart.
Antes de engarrafar parte do vinho tinto, o irmão dele, Charlie, provou e fez careta. "O gosto muda, a fumaça suga a fruta, deixa o vinho avinagrado e menos interessante", diz Stuart.
Naquele ano, eles ainda conseguiram vender algumas garrafas —a fumaça prejudica, principalmente, a uva para os tintos, cuja casca é usada na produção—, mas agora o fogo tem chegado cada vez mais perto. O incêndio Glass, no ano passado, queimou árvores dentro da propriedade de Stuart e chegou a poucos metros do vinhedo. As chamas não atingiram as uvas, mas a proximidade da fumaça deixou todas elas inutilizáveis.
Neste ano, Stuart conseguiu produzir vinho, mas em quantidades menores. A culpa, diz ele, é da seca, o maior problema para sua vinícola. "Estamos aterrorizados com os reservatórios secos, sem chuvas substanciais, sem saber o que fazer para o próximo ano", afirma, destacando que já recorre a medidas para economizar água que logo serão insuficientes.
Os produtores do Napa Valley venderam US$ 829 milhões (R$ 4,6 bi) em uvas para vinho tinto em 2019. Em 2020, com o incêndio Glass, o valor caiu para US$ 384 milhões (R$ 2,1 bi).
"Você acorda cansado, trabalha cansado, dorme cansado. Estamos deprimidos", diz Stuart. Quando questionado se vale a pena enfrentar a crise do clima e a má gestão florestal para produzir vinhos, responde: "Espere até a próxima colheita para bebermos uma taça do nosso próprio vinho. Tem que ser resiliente".
Do outro lado do vale, Susan Boswell não teve a mesma sorte de Stuart, que viu as labaredas cederem antes de atingirem suas parreiras. Em setembro do ano passado, o fogo do Glass devastou a vinícola Château Boswell, construída pelo marido dela em 1979.
"Acordei de madrugada, olhei pela janela e vi uma bola laranja chegando. Peguei meus cachorros, minha bolsa, pulei no carro e acelerei", conta Susan. "O fogo atingiu em cheio a minha propriedade, de três direções diferentes. Eu não tinha chance."
Ela diz ter perdido a casa em que morava, o prédio no qual funcionava o escritório e a sala de degustação da vinícola, além de parreiras e da cave, com centenas de barris e milhares de garrafas de vinho —toda a produção de 2018, 2019 e 2020.
Quando chegamos ao Château Boswell, pouco mais de um ano depois do incêndio, Susan ainda não havia reaberto o espaço, hoje em processo de reconstrução. "Considerei o custo financeiro e emocional de reconstruir e tive uma equipe que me apoiou. Queremos mostrar ao público que somos os mesmos de antes."
Susan restaurou a parte interna da cave e vai usar pedra, aço e vidro para refazer outras construções, comprou regadores gigantes para cercar o terreno, espalhando água e aumentando a umidade em épocas de seca, e diz adotar medidas para que tudo seja feito de forma sustentável.
Antes do estrago, a Château Boswell produzia 3.000 caixas de vinho por ano e foi a primeira vinícola da região a ganhar o selo verde do Napa Green Winery Program, que, desde 2004, estimula produtores a se comprometerem com a gestão ambiental e ação climática.
Assim como Stuart, Susan cobra melhor gestão das florestas por parte do governo e prefere não adotar medidas alternativas para proteger as uvas do calor intenso. Borrifar protetor solar sobre as plantações virou moda neste verão, mas parte dos produtores que o fizeram diz que o resultado não é satisfatório.
O retrato de calamidade no terceiro maior estado americano —e o sexto visitado nesta série de reportagens— completa o quadro de emergência ambiental nos EUA.
O enfrentamento da crise do clima exige mudanças no sistema de desenvolvimento e no modo de vida americano, sem tempo para soluções paliativas ou individuais. A busca pelo lucro e a falta de senso coletivo, porém, ainda são obstáculos para transformações urgentes.
No Vale do Silício, sede de gigantes de tecnologia e startups de inovação, visitamos duas empresas que buscam soluções para uma economia mais sustentável. Fundada em 2013, a Turntide produz sistemas de motores inteligentes para otimizar gastos de energia em grandes edifícios e nos setores de agricultura e transporte. Já a QuantumScape trabalha, desde 2010, no desenvolvimento de baterias mais baratas e duráveis para carros elétricos.
Em comum, elas têm o discurso de que sustentabilidade é também uma oportunidade de negócio e que, para uma mudança sistêmica, é preciso convencer os americanos de que a adoção de medidas contra a crise do clima vai gerar lucro e beneficiá-los pessoalmente.
"Mesmo se o clima não estivesse mudando, se você não tivesse que se preocupar com a emissão de poluentes, [adotar sistemas de motores inteligentes] seria um investimento a se fazer porque se paga rapidamente e você fica à frente no jogo", diz Eric Meyerson, vice-presidente de Comunicação e Marketing da Turntide. "Não é algo que você faz porque precisa, mas porque quer. Se não fizer, seu concorrente vai fazer e passar na sua frente."
A QuantumScape, por sua vez, passou os últimos dez anos pesquisando como produzir uma bateria para carros elétricos que dure mais tempo e seja mais barata do que as que existem hoje. Com milhões de dólares de investidores que vão de Bill Gates à Volkswagen, a empresa tem 500 funcionários e pretende começar a comercializar as baterias em 2025.
"Eletrificar a frota é, provavelmente, a maior mudança na indústria de transporte e automotiva dos últimos cem anos", afirma Asim Hussain, diretor de marketing da QuantumScape. "Mais de 25% das emissões de poluentes do mundo vêm do setor de transporte. Se a gente não mudar esse setor e o uso do petróleo, não tem muitas maneiras de impactar significativamente a mudança climática."
Os carros elétricos representam apenas 3% do mercado americano. Apesar de as vendas e a aceitação desses veículos terem aumentado nos últimos meses, eles ainda são considerados caros e sofrem críticas devido à baixa durabilidade de suas baterias e ao tempo que leva para carregá-las —geralmente uma hora.
A média de preço de veículos novos e não elétricos nos EUA é de US$ 20 mil a US$ 30 mil, enquanto o modelo mais barato da Tesla —montadora de carros elétricos mais famosa do país, capitaneada pelo midiático Elon Musk— não sai por menos de US$ 40 mil. Asim explica que a bateria da QuantumScape usa lítio em estado sólido, o que melhora sua eficiência em 85% e exige apenas 15 minutos para a carga, em carros que devem custar até US$ 30 mil.
Ele diz acreditar que o custo-benefício apresentado para o consumidor vai ser suficiente para fazer com que mais pessoas queiram comprar carros elétricos.
Gerenciar a crise do clima exige a reorientação da economia global, repensar a cadeia produtiva, os sistemas de moradia e fornecimento de energia em países que, por muito tempo, ignoraram o aquecimento global e seus efeitos.
O palco mais recente para esse debate foi a 26ª conferência global do clima das Nações Unidas, realizada em Glasgow, na Escócia, no início de novembro. Um dos objetivos era que os países apresentassem compromissos mais ambiciosos para enfrentar a crise do clima, mas os resultados ficaram aquém do esperado.
Após duas semanas de reuniões, quase 200 negociadores bateram o martelo sobre a conclusão do livro de regras do Acordo de Paris, que regulamenta o tratado de 2015, com mecanismos de transparência e prazos para revisões das metas climáticas. A falta de novos compromissos de financiamento por parte das nações mais ricas, porém, bloqueou a disposição do resto do mundo de ir além com metas de redução de emissões de poluentes.
Ao deixar objetivos mais arrojados, de novo, para o futuro, os acordos firmados em Glasgow não devem impedir que a temperatura global aumente, no mínimo, 2,4°C em relação à era pré-industrial —patamar muito acima do 1,5°C estabelecido como limite para evitar cenários ainda mais catastróficos.
"O que estamos fazendo coletivamente não é suficiente", diz Yoca Arditi-Rocha, diretora-executiva do Instituto CLEO, que atua na proteção à crise climática.
"A crise que estamos vivendo deve ser vista no modo emergência, algo que nunca vivemos antes, e precisamos tratá-la com a abordagem e o foco que tivemos diante da pandemia."
Ao cruzar os EUA, é fácil perceber que a maneira abstrata como discutimos a crise do clima —"uma ameaça existencial ao planeta e à humanidade"— falhou em capturar a urgência do momento. "Não é sobre urso polar ou coisas que estão longe da nossa realidade", diz Yoca. "Como você conecta esses pontos à vida das pessoas é o que vai fazer diferença."
O caos climático já nos atinge em cheio. Está evidente nas cidades que viraram escombros pela força da água ou do fogo, nas plantações destruídas pela seca ou pelo vento e nos rostos de pessoas que tiveram suas vidas transformadas de forma drástica —a maior parte delas, sem nenhum recurso para uma segunda chance.