Noite após noite, 37 novos mortos aparecem nas cidades filipinas
ANA ESTELA DE SOUSA PINTO
DE SÃO PAULO
"Mataram mais um."
Na frequência de rádio da polícia de Manila estava a senha para o 123º dia da guerra contra as drogas nas Filipinas.
O pavio foi aceso pelo presidente Rodrigo Duterte, eleito em maio de 2016 com a promessa de "varrer do país" viciados e traficantes.
"Matem os criminosos, e eu os protegerei. Abusem ou cometam crimes privados, e eu os matarei", declarou publicamente à polícia nacional (PNP).
Logo após a eleição, cadáveres começaram a aparecer com a cabeça coberta por fita adesiva e cartazes dizendo: "Era um traficante. Não seja como ele".
Os crimes, atribuídos a grupos de extermínio, entram na conta oficial como "mortes sob investigação".
Depois vieram as vítimas de operações policiais, iniciadas assim que Duterte tomou posse, em 1º de julho.
Até novembro, quando a Folha esteve na capital, Manila, quase 5.000 pessoas haviam sido mortas pela polícia ou por esquadrões da morte —sem julgamento ou prova de que fossem criminosas. Um mês depois, já são 6.000, uma média diária de 37 assassinatos.
Damir Sagolj - 29.out.2016/Reuters | ||
Arma e sachês de metanfetamina são recolhidos em operação policial que deixou dois mortos |
Às 22h15 de 2 de novembro, Noel Navarro era o "mais um" anunciado pelos repórteres e fotógrafos que registram as baixas no turno da noite.
Na versão oficial, o desempregado de 34 anos vendeu metanfetamina para um policial disfarçado, sacou um revólver ao ouvir a voz de prisão e por isso acabou morto.
Sob chuva fina, tia e avó contavam história diferente: Navarro estava dentro de casa; os policiais entraram e atiraram.
Às 23h, agentes funerários levaram o corpo. As fitas de isolamento que mantinham moradores afastados foram retiradas.
No chão do único cômodo do número 2.015 da rua Almeda ficou uma poça de sangue e um par de chinelos de borracha.
Vincent Go - 2.nov.2016/Folhapress | ||
Sangue no chão do barraco em que o desempregado Noel Navarro foi morto |
Pelo menos seis outros homens morreram naquela noite, três em enredos semelhantes e outros três baleados por atiradores desconhecidos.
Nos oito dias em que a Folha esteve em Manila, 78 vítimas engrossaram a Kill List (lista dos assassinatos, em inglês).
São cerca de dez por dia, número subestimado. A lista, criada pela direção do Inquirer.net (site de um dos principais jornais do país), não se propõe a registrar todos os assassinatos, mas a dar nomes aos números crescentes —e cada vez menos confiáveis.
"Cada morte importa, são histórias que precisam ser contadas", diz a repórter Aie, da equipe de John Nery, editor-chefe do site do "Inquirer".
"Mas o que está acontecendo agora levanta mais questões que respostas."
Num dos países mais católicos do mundo (81% da população, segundo o censo de 2010) e no qual não existe legalmente a pena de morte, a política policial de Duterte é aprovada por mais de 80% dos cidadãos e por personalidades globais como o diretor de cinema Brillante Mendoza e o boxeador Manny Pacquiao.
Os críticos da guerra às drogas esperam que pressões internas e externas forcem o presidente a mudar de rumo.
A via institucional é improvável para interromper as mortes. Durante seu mandato, Duterte não pode ser processado judicialmente, e seu controle político sobre o Congresso inviabiliza no momento um julgamento político.
Neste especial, a Folha registra batalhas de um conflito violento e complexo, em que não faltam escândalos sexuais, ameaças, disputas de poder, carisma, palavrões, abandono, solidariedade e esperança.
Ana Estela de Sousa Pinto - 2.nov.2016/Folhapress | ||
Arma e sachês de metanfetamina são recolhidos em operação policial que deixou dois mortos |
Isso tudo tem nos deixado com mais questões que respostas. Nossa única arma são perguntas, mesmo que não cheguemos às respostas corretas